05 Mai 2012
No último dia 3, teve início em Bolonha, na Itália, um ciclo sobre a relação civilização/barbárie. O Centro "A Permanência do Clássico" da Universidade de Bolonha organiza a XI edição do Ciclo dos Clássicos, cujo tema deste ano é Barbárie. O evento teve início no último dia 3 e irá se estender até o dia 31, com o diálogo entre Massimo Cacciari, Franco Cardini e Stefano Rodotà sobre o tema "Esperando os bárbaros".
Publicamos aqui um trecho da conferência do filósofo italiano Massimo Cacciari, ex-prefeito de Veneza e professor da Università Vita-Salute San Raffaele. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 01-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Estamos agora, talvez, irremediavelmente acostumados a entender "bárbaro" como a expressão máxima do inimicus – do hostis ao qual sempre será, por princípio, impossível atribuir o caráter de hospes. Bárbaro não é só o nosso inimigo, mas também o inimigo do gênero humano. Rude, feroz como uma fera intratável, impossível de "domesticar" – com ele, a única paz consiste em destruí-lo.
Consequentemente, para "nos salvar" dos seus apetites e chegar à meta da sua necessária eliminação, todos os meios serão lícitos. A relação com o bárbaro é a de amigo-inimigo em estado puro, de algum modo até mesmo pré-político. A história permite que se veja com maravilhosa regularidade como o recurso a esse esquema pode se tornar uma arma de extraordinária eficácia para realizar a guerra contra o próprio inimigo, para justificá-la em termos absolutos, para além de qualquer cálculo custo-benefício, para não reconhecer no adversário nenhuma dignidade.
Todavia, não é necessária uma grande ciência para saber que essa ideia do bárbaro não é, de fato, original. O termo, não homérico, se aplica eminentemente à língua. O equivalente sânscrito de barbaros significa simplesmente balbus, balbulus, ou seja, designa uma pessoa que fala como se fosse gaga [balbuciando]. Não que seja impossível entendê-la, mas a sua língua nos soa semelhante à pronúncia de quem sofre de gagueira.
Ao contrário, se conjecturarmos que o termo provém da área sumério-acádica, mesmo nesse não se encontra nenhuma referência a ideias de ferocidade desumana: “bar” – indica apenas o estrangeiro ou o limítrofe e, por isso, mais uma vez, aquele que simplesmente fala uma língua diferente da nossa.
A separação mortal com o bárbaro começa a se assomar somente depois das Guerras Persas. Mas basta dar uma olhada nos Persiani eschilei para compreender como essa separação é vivida em chave cultural e política, certamente não no sentido de uma luta entre civilização e incivilização, muito menos entre humano e animal. O que distingue o grande e nobre poder do "bárbaro" império dos Medos? Qual é o seu demônio? É o sentido do não limite: terras ilimitadas, intermináveis, estendidas como as do mar aberto, exercícios ilimitados, poder ilimitado do seu Rei. Nada de articulado. Não uma harmonia que é composta de distintos, e também contraditórios, elementos, mas sim unidade informes. Não um logos, que reúne em si diversas vozes e em que cada palavra assume o seu próprio significado graças à sua conexão com as outras, mas sim um Comando que silencia todo colóquio, toda dialética.
Não por nobreza de sangue, não por coragem, não por grandeza de obras e de gestos, Europa se opõe à Ásia, mas sim por isto: pelo poder com que determina toda unidade abstrata, pela medida em que sabe conferir a todo elemento, pela exatidão com que a sua linguagem se refere à coisa. O grego também conhece o ilimitado – mas é o não limite a partir do qual provêm os cosmos, as ordens, as formas e a beleza, no fim, que podemos admirar e devemos conhecer.
Bárbaro é "coagular", unificar sem saber distinguir, ou distinguir confusamente, sem ser capaz de ver o "comum" que torna possível a própria diferença. Bárbara é uma multidão que não sabe se fazer pólis. Bárbara é a ideia de um tornar-se infinito, sem limites, onde tudo se iguala no ser sempre-novo, ou no ser sempre-outro, ou seja, em que é impossível identificar uma ordem, um sentido, uma lei. Bárbara é uma língua que não seja em si mesma colóquio, que não permita que cada um busque nela um idioma próprio, que se extraia do seio dos seus possíveis, e permanecendo em tal matriz, a própria expressão, a própria palavra. Quero dizer: bárbara é uma língua que não guarde em si a energia poética que se esconde em cada um.
A barbárie assim entendida, então, deixar de aparecer como o abstratamente outro da "civilização". Barbárie é um possível sempre "aberto" do nosso ser civil. Ou, bem mais dramaticamente, como Vico ensina, não há nem origem nem termo da civilização que não sejam barbárie.
Extrair das minas indistintas da fantasia, das superstições, das representações, das paixões – mais abissalmente ainda: da língua muda dos sinais e dos gestos do corpo, da infância do corpo – a arma do logos é um esforço imenso, trabalho imenso realizado na sua história pelo animal homem. Mas o fim desse esforço, de fato, não está assegura de uma vez por todas. Ao contrário, justamente a ciência é obrigada, para Vico, a reconhecer o recurso necessário à barbárie. Que não significa retorno do igual, repetição do mesmo.
A barbárie em que ela declina, e justamente no auge do seu refinamento intelectual, o mundo greco-romano (a flor não está completa enquanto não murcha, nos lembra a sabedoria oriental), a nórdico-germânica, através da qual se universaliza o Anúncio cristão, tem significado e destino completamente diferentes dos quais o arquipélago das “poleis” havia se separado, das quais a última e mais poderosa foi Roma.
Assim, essa "barbárie da reflexão" que Vico via avançar no seio das monarquias muito civilizadas, em que "a Europa cristã fulgura de tanta humanidade", certamente não tem o caráter daquela da alta Idade Média, do seu "tormento infinito", da sua "tremenda paixão", quando o próprio bárbaro podia se retratar como o Crucificado (Hegel).
O infinito, o informe da barbárie por vir não serão mais nem os de tal tormento, nem os do império soberbo de um Grande Rei de terras e mares. A barbárie futura será, talvez, ao contrário, a confusão que nasce do colapso da própria ideia de império, do desencanto com toda possível "res publica mundial", e da submissão complementar e universal às "leis" do mercado e da troca, coroadas em leis de natureza.
Será a ausência de formas derivantes da equivalência universal de todo ente enquanto mercadoria. Será a barbárie da pretensão de comunicar ilimitadamente, a apoteose da ideia de que comunicar é o barulho do falar-informar dentro de um espaço que, por sua própria natureza, confere igual "valor" a toda palavra. Se comunicar tem o limite da forma do colóquio – em que cada um na língua comum busca escavar o próprio idioma –, na barbárie por vir, ao invés, o "simples" de uma única Língua dirá a "verdade" de todos.
E o destino é que apenas aqueles que interpretem Dante "balbuciando" em inglês deverão ser, então, acadêmica-cientificamente reconhecidos.
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O bárbaro que virá. Artigo de Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU