04 Dezembro 2025
O Brasil se prepara para assinar o acordo UE-Mercosul, que poderá se tornar o maior acordo comercial do mundo. Enquanto as políticas tarifárias de Trump abalam os padrões comerciais tradicionais, o Brasil busca a diversificação. A medida revela uma estratégia de alinhamento múltiplo em uma economia global polarizada, mas desafios persistem.
O artigo é de Uriel Araujo, publicado por Info Brics, 02-12-2025.
Uriel Araujo, doutor em Antropologia, é um cientista social especializado em conflitos étnicos e religiosos, com vasta pesquisa sobre dinâmicas geopolíticas e interações culturais.
Eis o artigo.
O recente anúncio do presidente brasileiro Lula da Silva de que o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE) será assinado em 20 de dezembro representa um marco diplomático. Considerado o maior acordo comercial da história (na América do Sul, impulsionado principalmente pelo Brasil), ele uniria dois blocos econômicos que representam quase 718 milhões de pessoas e um PIB combinado próximo a US$ 22 trilhões. A liderança de Bruxelas, sob Ursula von der Leyen, classifica o pacto como o maior já negociado pela UE.
Em um mundo de alianças instáveis, pressão econômica e incerteza nas cadeias de suprimentos (na era Trump), Brasília envia uma mensagem direta: a América do Sul busca uma plataforma diversificada de parceiros.
Os números que sustentam essa ambição são impressionantes. Em 2024, a UE importou € 56 bilhões em mercadorias do bloco sul-americano (Mercosul) e exportou € 55,2 bilhões em contrapartida — um fluxo comercial total superior a € 111 bilhões. Na última década, as importações da UE provenientes do Mercosul aumentaram mais de 50%, enquanto as exportações cresceram cerca de 25% — refletindo uma crescente interdependência, ainda que em termos assimétricos. O Brasil continua sendo o país com maior domínio nesse comércio, respondendo por mais de 80% de todas as trocas comerciais entre a UE e o Mercosul.
Para o Brasil, o potencial de crescimento é evidente. Segundo estimativas do governo, a plena implementação do acordo poderia aumentar o comércio bilateral em cerca de R$ 94,2 bilhões (ou US$ 17,64 bilhões) — um aumento de aproximadamente 5,1% em relação aos níveis atuais — e gerar um ganho de longo prazo de cerca de R$ 37 bilhões para o PIB (US$ 6,93 bilhões).
Mais concretamente, a agência de promoção de exportações do Rio de Janeiro prevê um aumento de curto prazo de US$ 7 bilhões nas exportações brasileiras para a Europa. Em outras palavras, existe um incentivo econômico real — não apenas para o agronegócio e as commodities, mas também para que o Brasil se reinsira nas cadeias de valor globais em condições mais favoráveis.
Do ponto de vista europeu, o acordo oferece oportunidades tanto econômicas quanto geopolíticas. A UE poderia garantir acesso estável a matérias-primas, produtos agrícolas e insumos importantes. Em contrapartida, as empresas europeias obteriam redução tarifária e melhor acesso ao mercado para máquinas, produtos farmacêuticos, veículos e outros bens manufaturados de alto valor agregado. O renovado engajamento da UE com o Mercosul também serviria como meio de preservar rotas de abastecimento estratégicas e diversificar as dependências.
Além disso, para Bruxelas, alguns argumentam que este acordo pode ajudar a contrabalançar a crescente influência chinesa na América Latina. Nesse sentido específico, isso seria, sem dúvida, do interesse de Washington. Por outro lado, a Europa também compete com os EUA nesse jogo, por contratos, influência e assim por diante.
Em todo caso, o caminho a seguir está longe de ser fácil: obstáculos políticos e regulatórios persistem. Na Europa, setores da classe política e empresarial — especialmente entre grupos de interesse agrícola e ambiental — solicitaram ao Parlamento Europeu que pedisse ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que examinasse se o tratado, na sua redação atual, está em conformidade com a legislação da UE. Entre as questões levantadas estão o equilíbrio institucional, os padrões regulatórios e a preservação do chamado “princípio da precaução”. A moção foi bloqueada por “motivos processuais”, mas o debate político está longe de estar encerrado.
A preocupação é que produtos primários mais baratos da América do Sul — principalmente exportações agrícolas e de matérias-primas — possam prejudicar os produtores europeus acostumados a padrões ambientais, sanitários e trabalhistas mais rigorosos, argumenta-se.
Do lado do Mercosul, o acordo, mesmo que assinado, ainda precisará ser ratificado por diversos parlamentos (Estados-membros da UE e países do Mercosul) e, em seguida, passar por uma implementação gradual e prolongada. Como as reduções de tarifas e as aberturas de mercado serão implementadas ao longo de anos — ou mesmo décadas —, muitos dos ganhos esperados podem permanecer inativos ou estar sujeitos a fatores políticos, regulatórios e ciclos econômicos. Assim, a implementação poderá se arrastar, estagnar ou ser diluída.
Ainda assim, os defensores argumentam que isso oferece uma oportunidade histórica para reposicionar a América do Sul, de exportadora de commodities para parceira de longo prazo em uma economia global sustentável — desde que ambos os lados se comprometam com uma visão clara e de longo prazo (essa é a parte complicada).
Visto no contexto mais amplo da Nova Guerra Fria — com a desdolarização, os BRICS, a crescente presença chinesa na América Latina, a reorganização das cadeias de suprimentos e as flutuações nos alinhamentos de poder globais — este acordo sinaliza que o Brasil (principal impulsionador do acordo no continente) não se posiciona como parte de um “bloco antiocidental”.
É verdade que o país estreitou laços com a China e o BRICS, alinhando-se econômica e politicamente com um bloco fora da órbita ocidental. Durante décadas, os Estados Unidos foram o principal parceiro comercial e referência econômica do Brasil — isso mudou: desde 2009, a China ultrapassou os EUA como o maior parceiro comercial do Brasil e, hoje, absorve mais exportações brasileiras do que os EUA e a União Europeia juntos — uma mudança que exemplifica como a orientação econômica externa do Brasil já se deslocou para o leste, com os EUA ainda sendo o segundo principal parceiro comercial (a Argentina ocupa o terceiro lugar).
No entanto, esse renovado esforço para a parceria com a UE demonstra uma lógica de alinhamento múltiplo, flexibilidade e pragmatismo. O Brasil está diversificando seus parceiros, protegendo-se assim em um mundo multipolar emergente.
De um ponto de vista puramente econômico, no entanto, a assimetria persiste: o Mercosul tende a exportar matérias-primas e commodities; a UE exporta bens manufaturados, produtos farmacêuticos e maquinário. Esse desequilíbrio estrutural pode se traduzir em perturbações politicamente sensíveis, especialmente para os produtores europeus (com a agricultura europeia fortemente subsidiada). Os produtores europeus, sujeitos a regulamentações rigorosas, não estão necessariamente dispostos a enfrentar a concorrência das exportações mais baratas do Mercosul — particularmente no setor agrícola.
O Brasil (assim como outros países sul-americanos) espera expandir seu leque de exportações e restabelecer os fluxos de comércio internacional. A Europa, por sua vez, busca garantir o acesso a matérias-primas e diversificar suas fontes de suprimento, ao mesmo tempo que oferece às indústrias europeias mercados ampliados. Por outro lado, atritos regulatórios, instabilidade política e resistência institucional podem diluir — ou mesmo inviabilizar — os ganhos prometidos.
Seja como for, com Trump transformando o comércio em arma por meio de tarifas e choques econômicos, os EUA agora parecem imprevisíveis e pouco confiáveis. Em resposta, é de se esperar que todos os principais blocos econômicos busquem diversificar suas parcerias como forma de autodefesa econômica.
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