02 Dezembro 2025
"Dessa forma, a instrumentalização da fé converte a religião em espetáculo ou em serviço à mercadoria simbólica. A prática religiosa se fragmenta, o compromisso coletivo se dissolve e a fé se liquefaz. A consequência é uma religiosidade desagregada, volátil, marcada pela superficialidade e pela busca de vantagens imediatas, seja de pertencimento, de bem-estar psicológico, de afirmação identitária ou de status social", escreve Robson Ribeiro, teólogo, filósofo e professor. É formado em História, Filosofia e Teologia, áreas nas quais trabalha como professor em Juiz de Fora (MG).
Eis o artigo.
A religiosidade no Brasil vive um momento de profunda transformação, não apenas no que se refere aos números, mas à própria natureza do vínculo que as pessoas mantêm com o sagrado. Dados recentes mostram um declínio expressivo da identificação com o catolicismo, historicamente majoritário, ao mesmo tempo em que cresce o número de pessoas que se declaram sem religião ou aderem a tradições mais fluidas e individualizadas. Essa transição revela não apenas a perda de hegemonia institucional de outrora, mas algo mais profundo: o esvaziamento do compromisso comunitário e da fé como laço duradouro.
Nesse novo panorama, a religião tende a perder seu papel de horizonte de vida coletivo e passa a funcionar muitas vezes como um recurso instrumental, procurada quando convém, adaptada às circunstâncias pessoais e descartada quando deixa de atender expectativas imediatas. A fé, assim, torna-se uma mercadoria espiritual: confortável, flexível, mas superficial, uma opção de consumo simbólico suscetível à lógica do conforto, da utilidade e da conveniência.
Nesse processo, surge também uma dinâmica social que revela a instrumentalização da própria participação religiosa. Em muitos contextos, atuar em uma pastoral, integrar um movimento ou pertencer a um determinado grupo dentro da Igreja transforma-se em capital social, quase um selo de prestígio. A participação deixa de ser expressão de pertença comunitária e passa a funcionar como símbolo de status, reconhecimento ou visibilidade. Muitos se engajam, mas poucos verdadeiramente pertencem; muitos ocupam funções, mas poucos estabelecem vínculos. A comunidade eclesial, que deveria ser espaço de encontro e corresponsabilidade, converte-se em cenário onde se performam identidades religiosas sem que haja real enraizamento espiritual ou comunitário.
Essa mesma lógica aparece na experiência dos retiros e encontros formativos. Cresce o número de pessoas que participam de retiros mais como experiência emocional momentânea ou como episódio de renovação simbólica do que como marco real de conversão, mudança de vida e prioridade existencial. O retiro deixa de ser um caminho e se torna um evento; deixa de conduzir à comunidade e retorna à esfera privada; emociona, mas não transforma. Assim, a experiência espiritual é vivida sem continuidade, sem discipulado e sem compromisso.
Sob esse ponto de vista, a fé líquida — expressão adequada à fluidez contemporânea — revela-se incapaz de gerar vínculos sólidos. A pertença religiosa, antes sustentada pela comunidade, pela tradição, pela memória compartilhada e por ritmos de vida coletiva, desvanece-se. As instituições religiosas perdem força; as práticas congregacionais se esvaziam; a experiência espiritual se torna privada, individualista, momentânea.
É nesse contexto que a análise de Byung-Chul Han se mostra especialmente pertinente. Han denuncia a sociedade da performance, na qual tudo, inclusive o íntimo, o espiritual e o relacional, é capturado pela lógica da utilidade, da eficácia e da autopromoção. A religião, quando colonizada por essa lógica, é convertida em vitrine identitária: o sujeito participa, aparece e se exibe, mas não se compromete. A ética da convivência, a alteridade, o mistério e a profundidade existencial são substituídos por um sujeito de si mesmo que busca nos rituais religiosos apenas conforto emocional, afirmação simbólica ou pertencimento superficial.
Dessa forma, a instrumentalização da fé converte a religião em espetáculo ou em serviço à mercadoria simbólica. A prática religiosa se fragmenta, o compromisso coletivo se dissolve e a fé se liquefaz. A consequência é uma religiosidade desagregada, volátil, marcada pela superficialidade e pela busca de vantagens imediatas, seja de pertencimento, de bem-estar psicológico, de afirmação identitária ou de status social.
Mais grave ainda é que, quando a religião se reduz à utilidade, ela perde a capacidade de gerar sentido duradouro, comunitário e ético. O sagrado, esvaziado, já não transforma, consolida, cura ou une. A fé deixa de ancorar a existência para virar uma opção circunstancial. Quando isso ocorre, até os espaços mais tradicionais — movimentos, pastorais, retiros — tornam-se apenas experiências fugazes, sem força para produzir continuidade ou conversão verdadeira.
Tal constatação exige de nós uma vigilância crítica: identificar quando a fé é convertida em um instrumento de conveniência e resistir à tentação de transformar a religião em mercadoria simbólica. Mas exige, sobretudo, a busca por formas de religiosidade capazes de reconstruir vínculos reais, comunitários, éticos e simbólicos, e de restituir à fé sua dimensão profunda de pertencimento, transcendência e responsabilidade para com o outro.
Em última instância, o diagnóstico da fé sem vínculo e da instrumentalização da espiritualidade aponta para algo mais amplo: a crise de sentido nas sociedades contemporâneas, a fragilidade dos laços comunitários e a emergência de um individualismo existencial no qual até a fé é reduzida à conveniência. A tarefa teórica, pastoral e educativa desse tempo talvez seja oferecer à religiosidade outra possibilidade, não a da fé como consumo, mas da fé como vínculo, capaz de resistir à liquidez, de sustentar a esperança e de tornar o sagrado vivo.
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