México: o protesto dos "chapéus de palha" tem futuro? Artigo de Julieta Bugacoff e Paul Antoine Matos

Foto: Eneas De Troya | Wikimedia Commons

24 Novembro 2025

A autoproclamada Geração Z mobilizou milhares de pessoas em 15 de novembro, com origens, idades e reivindicações muito diversas. Mas o que seus organizadores previram como uma onda imparável, alimentada por uma infinidade de queixas, perdeu força na segunda manifestação. O que está por trás desse movimento que busca desafiar um presidente com 70% de aprovação?

O artigo é de Julieta Bugacoff e Paul Antoine Matos, publicado por Nueva Sociedad, novembro de 2025. 

Julieta Bugacoff é mestranda em Jornalismo Documental pela Universidade Nacional de Tres de Febrero (UNTREF). Ela contribuiu para meios de comunicação como Página|12, Infobae e AWID.

Paul Antoine Matos é jornalista do Yucatán radicado na Cidade do México. É formado em Imprensa e Democracia pela Universidade Iberoamericana. Já escreveu artigos para a Agence France-Presse (AFP), Gatopardo e La Jornada.

Eis o artigo.

Na praça Zócalo, na Cidade do México, duas mulheres indígenas pararam em meio à multidão e ergueram um incensário cheio de copal. Ambas usavam chapéus de palha. “Queimamos incenso pela paz, porque há muita violência neste país”, explicou uma delas. Enquanto a fumaça branca se dissipava, outra mulher gritou para elas: “Vocês são responsáveis ​​pela ascensão de López Obrador ao poder e precisam assumir essa responsabilidade”. A cena ocorreu durante a primeira grande manifestação contra o governo de Claudia Sheinbaum e resume algumas das tensões atuais.

Em dezembro de 2018, durante a posse do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO), representantes de 68 comunidades indígenas realizaram um ritual semelhante como sinal de apoio. Seis anos depois, os problemas enfrentados pelo governo do Movimento de Regeneração Nacional (Morena) — agora liderado por Claudia Sheinbaum — continuam enormes.

Nos primeiros seis meses de seu governo, o número de desaparecimentos forçados no México atingiu um recorde histórico. Segundo dados oficiais, 14.765 pessoas desapareceram no país até 1º de outubro de 2025, 16% a mais do que no último ano do mandato de seu antecessor. Esse aumento não só gerou alarme entre organizações de direitos humanos e coletivos de busca, como também corroeu a legitimidade do governo entre os setores mais afetados. Mesmo assim, a presidente ostenta um índice de popularidade de 70%, de acordo com algumas pesquisas. Foi nesse contexto que surgiu, inesperadamente, o primeiro protesto significativo contra seu governo.

A "Marcha da Geração Z", realizada em 15 de novembro de 2025, foi um evento aparentemente apartidário voltado principalmente para jovens, adolescentes e universitários. Essa geração cresceu em meio à "Guerra às Drogas", lançada no final de 2006 pelo governo de Felipe Calderón, e suas experiências de vida são marcadas pela normalização da violência e pela crescente militarização dos territórios. Embora o evento fosse direcionado a essa faixa etária, pessoas de diferentes gerações compareceram: millennials, membros da Geração X e até mesmo baby boomers.

Embora não houvesse um slogan único e definido, a manifestação reuniu uma ampla gama de setores contrários ao governo vigente. Além da Cidade do México, a mobilização foi replicada em diversos estados, incluindo Guanajuato, Yucatán e Puebla.

Como surgiu a primeira marcha?

Em meados de outubro, líderes empresariais, políticos e influenciadores de direita — como Carlos Bello e Alejandro Moreno (presidente nacional do Partido Revolucionário Institucional (PRI)) — usaram as redes sociais para convocar uma mobilização "politicamente neutra" para protestar contra "tudo o que está errado no México". Muitas dessas postagens circularam com a imagem de uma bandeira pirata do anime One Piece. Inicialmente, a convocação não obteve muito apoio.

Neste ponto, é importante mencionar que a oposição mexicana atravessa uma grave crise. Nas eleições presidenciais de 2024, a Fuerza y ​​Corazón por México (composta pelo Partido da Ação Nacional (PAN), o Partido Revolucionário Institucional (PRI) e o Partido da Revolução Democrática (PRD)) obteve apenas 27,45% dos votos, enquanto a Sigamos Haciendo Historia (formada pelo Morena, o Partido Trabalhista (PT) e o Partido Verde Ecologista do México (PVEM)), que tinha Sheinbaum como candidata, alcançou 59,75% do eleitorado, percentual superior ao obtido pelo próprio AMLO nas eleições presidenciais de 2018 (que conquistou 53,19%). Além disso, nos últimos sete anos, diversos políticos que faziam parte de partidos de oposição — como Miguel Ángel Yunes Márquez (ex-PAN) e Jorge Carlos Ramírez Marín (ex-PRI) — foram incorporados ao governo do Morena.

Uma semana após o apelo inicial à ação, Carlos Alberto Manzo Rodríguez, prefeito de Uruapan, no estado de Michoacán, foi assassinado em meio às comemorações do Dia dos Mortos. Em 2024, ele havia sido eleito representante de La Sombreriza, o movimento independentista que fundou. Sua campanha foi caracterizada por uma forte ênfase em políticas de segurança e, em particular, em uma "luta frontal contra o narcotráfico". Uma vez no cargo, promoveu a reforma policial e incorporou a Guarda Nacional e o Exército na luta contra os cartéis. Frequentemente utilizava as redes sociais para mostrar sua participação direta em diversas operações policiais. Embora o assassinato de Manzo não tenha sido o catalisador da mobilização da oposição, contribuiu para ampliar seu alcance e atrair um público mais diversificado.

Na véspera do protesto, o apelo à ação se ampliou ainda mais. Trabalhadores do setor de saúde, professores, agricultores e algumas "mães em busca de ajuda" juntaram-se à marcha para denunciar a falta de medicamentos nos hospitais e os desaparecimentos forçados, e até mesmo para exigir a revogação da Lei ISSSTE de 2007 (Instituto de Segurança e Serviços Sociais para Trabalhadores do Estado), que privatizou o sistema previdenciário.

Diante dessa situação, Sheinbaum declarou em coletiva de imprensa que a manifestação não havia surgido espontaneamente, mas fazia parte de uma estratégia digital orquestrada por grupos de direita "estrangeiros" e "as mesmas caras de sempre". Enquanto isso, centenas de memes minimizando o protesto e até ridicularizando os participantes circularam em veículos de comunicação e círculos políticos alinhados ao Morena.

Insegurança: um dos principais slogans

Na Cidade do México, a mobilização começou às 10h da manhã do dia 15 de novembro no Anjo da Independência, o icônico monumento localizado no Paseo de la Reforma. Logo cedo naquela manhã, já era possível ver pessoas usando chapéus de palha no transporte público , a peça que se tornaria o principal emblema da marcha. Entre a multidão, cartazes exibiam slogans como "Nem apoiadores do PRI nem do PAN, pelo amor ao México" e "Nem esquerda nem direita, aqui o crime usa as duas mãos".

Como se pode inferir, uma das principais reivindicações dos participantes foi a melhoria das políticas de segurança. No entanto, mesmo entre aqueles que compartilhavam dessa preocupação, as opiniões divergiam. Román, um estudante de química de 26 anos da Universidade Nacional Autônoma do México, enfatizou que, para ele, a única maneira de resolver o problema da violência era por meio da implementação de um modelo semelhante ao de Nayib Bukele em El Salvador. Em contrapartida, Verónica, uma policial federal aposentada de 50 anos que também participou da marcha, concordou que o principal motivo da mobilização era a insegurança, mas, para ela, a militarização das ruas só traria mais violência.

Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI), entre junho de 2006 — ano em que o ex-presidente conservador Felipe Calderón declarou a “guerra às drogas” — e junho de 2023, ocorreram mais de 437 mil homicídios em todo o país. Além disso, de acordo com dados da Comissão Nacional de Busca, foram registrados mais de 110 mil desaparecimentos forçados no mesmo período. Ao longo de quase duas décadas, três partidos governaram o México (PAN, PRI e Morena), mas nenhum conseguiu conter a violência.

O que significa o chapéu?

A socióloga Vanessa Bittner usa o termo "extensão icônica" para se referir aos elementos que permitem ao público se identificar como parte de um determinado processo político. Para ela, esses objetos atuam como catalisadores emocionais na esfera pública, condensando emoções, moldando percepções e possibilitando formas de reconhecimento mútuo entre aqueles que compartilham uma causa comum. Seu poder reside na capacidade de ativar múltiplos significados e articulá-los em torno de uma experiência política compartilhada, mesmo quando esses significados podem ser instáveis, contraditórios ou contestados.

Um fenômeno semelhante ocorreu com o chapéu. Algumas pessoas, como Karen, uma enfermeira de 27 anos, associaram-no à luta de Carlos Manzo contra a insegurança. Nas redes sociais, o prefeito era conhecido como "O do Chapéu" porque frequentemente usava essa peça de roupa típica das comunidades rurais do México em eventos públicos. Outros, no entanto, o associaram a Luffy, o pirata protagonista do anime One Piece. Na série, o personagem personifica a busca pela liberdade e a resistência contra um governo despótico e corrupto.

Recentemente, a iconografia de One Piece tem aparecido em diversos movimentos sociais ao redor do mundo. Em agosto de 2025, a bandeira pirata foi usada em uma série de protestos contra o governo indonésio. O mesmo ocorreu no Peru, onde jovens ativistas hastearam o emblema para protestar contra a reforma da previdência. No Nepal, uma situação semelhante se desenrolou em setembro. Em resposta a alegações de corrupção, grupos de oposição invadiram o Parlamento, hasteando a bandeira dos Piratas do Chapéu de Palha — o grupo liderado por Luffy — e derrubaram o governo.

O significante "liberdade"

A marcha chegou ao Zócalo pouco depois das 14h do sábado, 15 de novembro. A essa altura, o clima já estava tenso. Ao fundo, tocava "Gimme the Power", música que a banda mexicana Molotov compôs na década de 1990 contra a hegemonia do PRI. Diferentemente da maioria dos protestos — em que a praça principal permanece aberta —, a área estava cercada e o acesso restrito; havia policiais com escudos posicionados nos cantos da frente. Como resultado, muitos manifestantes optaram por retornar por ruas laterais e se reunir a vários quarteirões de distância do ponto de encontro designado.

“Que tipo de liberdade é essa de que falam, se o governo pode fazer o que quiser na praça e nos tira o direito de protestar?”, questionou Ciela, uma estilista de 23 anos que participava da manifestação carregando um cartaz com a frase atribuída a Emiliano Zapata: “Se não há justiça para o povo, que não haja paz para o governo”. Apenas uma semana antes, o Zócalo havia sido usado para exibir um show de Juan Gabriel, como parte de uma estratégia de marketing da Netflix para promover a série documental sobre o falecido artista mexicano.

Um dos aspectos mais marcantes do protesto foi a diversidade de seus participantes. Nas ruas, grupos de mulheres exibiam imagens da Virgem de Guadalupe. Ao lado delas, um homem caminhava com sua filha de 16 anos. A adolescente carregava uma bandeira de One Piece com a frase "Acorda, México". Ele, por sua vez, exibia um exemplar de El Machete , jornal fundado pelo Partido Comunista Mexicano em 1925, com o título "Lutar pela Humanidade".

Entre os participantes, havia também mulheres que se identificavam como feministas. Era o caso de Lucía, de 22 anos, que compareceu ao protesto usando um lenço verde, símbolo do movimento da "onda verde" em apoio à legalização do aborto, amarrado ao pescoço, e um chapéu de palha. "No dia em que Sheinbaum assumiu o cargo, ela disse que, se ganhasse, todos nós ganharíamos. Isso é uma grande mentira, porque as mulheres assassinadas durante seu governo não poderiam estar aqui hoje. Estou marchando porque a liberdade delas foi tirada", declarou.

Nos últimos tempos, diversos partidos de direita internacionais têm utilizado o termo "liberdade" como uma categoria que surge da combinação de elementos associados à liberdade individual, à autossuficiência e à desconfiança no Estado. Contudo, no México, esse significado ainda parece ser contestado. Embora algumas figuras — como o empresário Ricardo Salinas Pliego — tenham tentado vincular a liberdade a conceitos como progresso econômico e defesa da propriedade privada, essa versão ainda não obteve ampla aceitação. Em vez disso, os participantes da mobilização apresentaram a liberdade como a antítese da insegurança. Associaram-na também à autonomia política em relação aos partidos políticos, à rejeição das estruturas representativas tradicionais e à possibilidade de tomada de decisões fora dos canais institucionais, que consideram estar cooptados por interesses externos.

Perto do Palácio Nacional, um grupo de pessoas entrou em confronto com a polícia e derrubou algumas das cercas que circundavam o complexo presidencial. Entre os participantes da manifestação, a teoria predominante era de que "aqueles que atiravam pedras" eram provocadores contratados pelo governo para minar a legitimidade da marcha. O dia terminou com 120 feridos e 40 presos. Sheinbaum afirmou que as prisões ocorreram em decorrência dos incidentes violentos e não do protesto social em si.

Além de 15 de novembro

Um dia após a manifestação, a presidente mexicana afirmou que a maioria dos participantes não era jovem, mas sim pessoas com mais de 30 anos. Ela acrescentou que seu governo goza de enorme aprovação porque não há desconexão entre o povo e o governo, e que os jovens estão satisfeitos com as bolsas de estudo oferecidas por seu governo.

Embora a mobilização tenha sido provavelmente impulsionada por grupos pertencentes à direita mexicana, nem todos os participantes se identificavam com essa orientação política. Além de uma minoria que se definia como de esquerda, muitos indicaram que nunca haviam participado de um protesto antes e não acreditavam em partidos políticos.

Apenas um dia após a primeira manifestação, uma nova foi anunciada para 20 de novembro. Desta vez, a data coincidiu com o 115º aniversário do início da Revolução Mexicana. Apenas cerca de 200 pessoas compareceram, e quase nenhum jovem estava presente. Manchetes na mídia internacional noticiaram o fracasso desta segunda manifestação. Enquanto isso, em algumas feiras de rua, a bandeira dos Piratas do Chapéu de Palha — retirada de One Piece — ainda pode ser vista tremulando sobre as mesas de alguns vendedores.

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