Bancada "cristã" ameaça a democracia. Artigo de Frei Betto

Foto: PMDB Nacional /Flickr

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30 Outubro 2025

"Não há nada de errado em que parlamentares com convicções religiosas participem da atividade legislativa. O que gera preocupação são as prerrogativas institucionais que podem transformar essa representação em instrumento de poder político exclusivo por vínculo religioso", escreve Frei Betto.

Frei Betto é escritor, autor da tetralogia sobre os evangelhos “Jesus Militante” (Marcos); “Jesus Rebelde” (Mateus); “Jesus Revolucionário” (Lucas); e “Jesus Amoroso” (João), entre outros livros.

Eis o artigo.

A 22 de outubro de 2025, a Câmara dos Deputados aprovou em regime de urgência o Projeto de Resolução 71/2025 (PRC 71/25), que pretende criar formalmente no parlamento federal a Bancada Cristã, unificando integrantes das já existentes frentes parlamentares evangélica e católica. O requerimento do regime de urgência foi aprovado por 398 votos a favor, 30 contra e 3 abstenções.

O projeto prevê que a nova bancada tenha direito a voz e voto no Colégio de Líderes da Câmara, bem como tempo de fala na sessão de comunicações da liderança. Os autores são os deputados Gilberto Nascimento (PSD-SP), ex-delegado da Polícia Civil e bolsonarista, presidente da Frente Parlamentar Evangélica, e Luiz Gastão (PSD-CE), presidente da Fecomércio do Ceará e da Frente Parlamentar Católica.

O tema gera polêmica porque altera o delicado equilíbrio entre representação religiosa e institucionalidade laica do Estado. Historicamente é catastrófica toda tentativa de confessionalização da política ou partidarização das confissões religiosas. O obscurantismo prevalece quando se subjuga a esfera política aos princípios de uma determinada crença religiosa, como ocorre no Estado de Israel, que é teocrático, pois até hoje prescinde de Constituição.

Bem advertiu a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ): “O espaço político não pode privilegiar com voz e voto, no Colégio de Líderes, uma fé professada.” Outro crítico, o deputado Mário Heringer (PDT-MG), afirmou que “quando fazemos essa escolha, estamos discriminando as outras religiões”.

Sim, por que não formar uma bancada de religiões de matriz africana ou espírita ou muçulmana ou judaica?

A criação da Bancada Cristã, em princípio, representa o desejo de um segmento: parlamentares que se definem como cristãos (evangélicos e/ou católicos) desejam reunir-se numa bancada formal, com prerrogativas institucionais, como participação no colégio de líderes e tempo de fala privilegiado. Não há nada de errado em que parlamentares com convicções religiosas participem da atividade legislativa. O que gera preocupação são as prerrogativas institucionais que podem transformar essa representação em instrumento de poder político exclusivo por vínculo religioso.

O Brasil, conforme a Constituição de 1988, adota o princípio da laicidade do Estado: nenhuma religião deve ser favorecida ou imposta pelo Estado, e o poder público tem que tratar todas as crenças com igualdade. Quando se cria uma bancada que, por definição, agrupa membros de uma só tradição (cristã) e lhes atribui privilégios formais (voz/voto no colégio de líderes), abre-se a porta para o favorecimento institucional de uma fé, o que conflita com o princípio da neutralidade estatal em matéria religiosa.

É válido que grupos parlamentares se formem com base em convicções. Existem, por exemplo, bancadas de mulheres, negras/os, evangélica/evangélicos, católica/os etc. A diferença aqui é a Bancada Cristã pretender obter prerrogativas formais que a distinguem como órgão de poder interno: participar da definição de pautas, contar com prioridade de fala, ter assento no colégio de líderes. Tais vantagens extrapolam a mera representação temática ou de interesse e alcançam status de poder institucional, o que exige um exame rigoroso da compatibilidade com o regime democrático e laico.

Quando se privilegia quem professa determinada crença, criam-se dois problemas principais: a) exclusão de quem professa outras crenças (ou nenhuma), que ficam fora dessa estrutura de poder formal; b) o risco de que a lógica de poder seja transformada em disputa de identidades religiosas, em vez do embate de ideias e políticas públicas, o que fragiliza a visão pluralista e inclusiva típica de democracias modernas.

Alguns críticos argumentaram exatamente isso: “privilegiar uma fé professada” é violar a laicidade.

A proposta prevê que o líder da Bancada Cristã tenha assento no colégio de líderes, que decide a pauta de votações. Isso significa que a fé ou visão religiosa que sustenta o grupo pode influenciar diretamente a agenda legislativa, não apenas por meio de proposições apresentadas, mas por definir o que será votado ou não. Isso concentra poder, e pode tornar mais difícil o debate plural, pois algumas pautas poderão ser privilegiadas ou barradas a partir de convicções religiosas, em vez de apenas critérios públicos, seculares e de bem-comum.

Ainda que 80% da população brasileira se declare cristã, democracia não é apenas regra da maioria, mas também respeito aos direitos das minorias e à igualdade formal perante o poder público. Criar uma bancada com prerrogativas institucionais diferencia-se de apenas garantir representação parlamentar; trata-se de moldar estrutura de poder segundo identidade de fé.

A criação da Bancada Cristã no Congresso brasileiro merece atenção crítica. Por um lado, há o direito legítimo de parlamentares se reunirem segundo convicções religiosas e apresentarem pautas coerentes com seus valores. Por outro, a forma prevista — com voz e voto institucionais em instâncias de poder, tempo de fala privilegiado e influência na agenda — representa risco para o princípio do Estado laico, para a igualdade de crenças e para a pluralidade política.

Ao criar este ambiente de tensão a proposta revela suas ambiguidades, pois pretende dar visibilidade e poder a um segmento (cristão) da sociedade, e ao fazê-lo através de canais privilegiados que não são oferecidos a outras convicções religiosas ou filosóficas, coloca-se em questão a justiça institucional desse tratamento.

Em resumo, a política precisa equilibrar representação e universalismo, de modo que todas as crenças (ou ausência de crença) possam conviver, participar e influenciar sem que nenhuma detenha privilégios formais por motivo de fé. A institucionalização de uma bancada baseada em fé específica altera esse equilíbrio e exige debate amplo, transparente e atento ao futuro de nossa democracia plural.

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