16 Outubro 2025
Derrota “MP da Taxação” e exoneração de aliados de partidos fisiológicos sinalizam para o fim da estratégia de “redução de danos”. O governo busca redefinir as regras do jogo, mas o que será decisivo é a mobilização popular e digital, para recolocar a esquerda no debate político.
O artigo é de Glauco Faria, publicado por Outras Palavras, 15-10-2025.
Glauco Faria é jornalista do Outras Palavras. É ex-editor-executivo de Brasil de Fato e Revista Fórum, ex-âncora na Rádio Brasil Atual/TVT e ex-editor na Rede Brasil Atual. Co-autor do livro Bernie Sanders: A Revolução Política Além do Voto (Editora Letramento). Leia outros artigos no Substack, disponível aqui.
Eis o artigo.
A derrota do governo com a retirada de pauta da Medida Provisória 1.303/25 abriu o que parece ser uma nova relação entre o Planalto e o Congresso Nacional. Determinado a retomar as rédeas da negociação orçamentária, Lula ordenou uma ofensiva e começaram a ser exonerados aliados de partidos do Centrão que ocupavam cargos no governo.
“Estamos tirando dos cargos os indicados por deputados que votaram contra a Medida Provisória 1303 porque precisamos reorganizar nossa base”, afirmou a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, na segunda-feira (13). “Quem votou contra optou por sair do governo.” Nomes ligados a indicações de legendas como PP, União Brasil, PSD, MDB e PL perderam postos de comando na Caixa Econômica Federal, Correios, Iphan, e em superintendências no Ministério da Agricultura e no Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Embora a movimentação possa parecer natural para um observador distante, está longe de ser na lógica do hoje desestruturado presidencialismo de coalizão brasileiro. Traições como estas em geral eram relevadas em nome não mais de uma manutenção da base de apoio no parlamento, mas sim dentro de uma estratégia de redução de danos, onde o objetivo é manter mesmo parlamentares que se colocam ostensivamente na oposição em uma espécie de zona de conforto para não agirem de forma direta contra interesses do governo.
Isso fica patente quando se verifica que, entre os exonerados, estão nomes como o de José Trabulo Júnior, consultor da Caixa e aliado do senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro de Bolsonaro e um dos principais articuladores da candidatura do governador paulista Tarcísio de Freitas (Republicanos) à Presidência da República. Ou a demissão da superintendente do Iphan no Maranhão, Lena Brandão Fernandes, irmã do líder do União Brasil na Câmara, Pedro Lucas (MA), que votou contra o governo e tem feito isso de forma reiterada. O deputado maranhense, a propósito, é o mesmo que aceitou ser ministro das Comunicações, em abril, e depois voltou atrás, colocando o Planalto em uma situação constrangedora.
O movimento, por enquanto, ainda poupa figuras-chave como Arthur Lira (PP-AL), responsável pela relatoria do projeto do Imposto de Renda. O ex-presidente da Câmara se ausentou da votação e estava em Alagoas no dia 8 de outubro, quando a Casa aprovou por 251 votos a 193 a retirada de pauta da MP. Hugo Motta (Republicanos-PB), atual presidente da Casa, ainda permanece como depositário de algum respeito por parte da articulação política governista, o que não impediu que tivesse que escutar, nesta quarta-feira (15), um discurso duro por parte de Lula, durante a cerimônia de comemoração pelo Dia dos Professores e de anúncios relativos ao Programa Mais Professores para o Brasil.
“O ano que vem tem eleição. Eleição não é brincadeira. A gente não vota porque recebe um papelzinho na porta da escola. É preciso pesquisar quem são as pessoas, quem tem compromisso com a gente. Quem é que tem compromisso com as coisas que você acredita que precisa ser feito nesse país?”, disse Lula, se voltando naquele momento para o presidente da Câmara, presente no ato. “Hugo é presidente desse Congresso. Ele sabe que esse Congresso nunca teve a qualidade de baixo nível como tem agora.”
Em seguida, Lula parabenizou aqueles que fizeram mobilizações contra a chamada PEC da Blindagem, um momento que marcou o retorno de uma manifestação mais expressiva do campo da esquerda, e que pôde agregar ainda outros espectros ideológicos insatisfeitos com o Legislativo. “E a gente precisa se manifestar. Por isso, eu quero dar parabéns ao Rio de Janeiro pela manifestação que vocês fizeram em defesa da defesa política desse país. Só vocês podem consertar esse país”, celebrou. “E quero que vocês saibam que eu estou nessa.”
Crise das emendas A mudança de postura do Planalto também vai em outras direções. De um lado, já existe a perspectiva de que Lula vetará qualquer tentativa de incluir no Orçamento de 2026 um calendário fixo de pagamento das emendas parlamentares, mecanismo que reduziria ainda mais o controle do Executivo sobre a execução dos recursos. De outro lado, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, anunciou no Senado que o governo poderá bloquear até R$ 7,5 bilhões em emendas, como forma de compensar as perdas causadas pela derrubada da MP.
O tema das emendas, ponto nevrálgico da relação entre o Executivo e o Legislativo desde o início do governo, permanece em pauta no Judiciário. O Supremo Tribunal Federal e a Polícia Federal seguem investigando seu uso político e possíveis desvios. Na terça (14), uma nova operação bloqueou valores e apreendeu o celular do deputado Dal Barreto (União Brasil), aprofundando o desgaste de parte do Congresso Nacional e expondo como a falta de transparência e de controle sobre uma fatia considerável dos recursos públicos pode gerar prejuízos à sociedade.
Ainda existem 40 mil emendas parlamentares entre 2020 e 2024, despachadas por deputados e senadores a seus redutos eleitorais, muitas vezes por meio de colegas, que agora precisam ser examinadas com lupa, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. Há casos como o relatado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que denunciou três nomes do PL — Josimar Maranhãozinho (MA), Pastor Gil (MA) e Bosco Costa (SE) — por cobrarem propina de R$ 1,6 milhão do então prefeito de São José de Ribamar (MA), em troca de uma emenda de quase R$ 7 milhões para o município. As investigações da Polícia Federal apontam para uma “estrutura armada” a serviço da organização criminosa, que pressionava prefeitos a devolver parte do dinheiro das emendas.
Já foi dito aqui o quanto o Brasil acabou se tornando um caso extremo no qual o Legislativo passou a concentrar poder orçamentário em escala inédita entre democracias, tensionando as instituições e subvertendo princípios de execução orçamentária. O fato de parte das emendas se caracterizarem pela obscuridade e irem parar nas páginas policiais reforça um sentimento da população de que foram criados mecanismos não para aproximar o poder público das realidades locais, como alguns parlamentares tentam defender, mas sim para aumentar as possibilidades de burlar controles e, ainda que sem irregularidades em sua aplicação, consolidar sua força política ignorando reais necessidades dos cidadãos.
Assim, a resposta de Lula combina enfrentamento e cálculo político. O presidente aposta na recuperação de sua popularidade e na pressão social sobre o Congresso, a mesma que, recentemente, levou à derrota da chamada “PEC da Blindagem”, proposta, aliás, diretamente ligada ao avanço das investigações sobre o uso das emendas e ao esforço de parlamentares para se proteger de responsabilizações futuras.
Como pano de fundo, a disputa pelo Orçamento de 2026 escancara um embate que revela o esforço do governo para redefinir as regras de um sistema político que se estruturou, nos últimos anos, sob o império das emendas parlamentares.
Força nas redes Além da mobilização popular, exaltada por Lula no evento do Dia do Professor e celebrada pelo campo progressista, um outro instrumento de pressão fundamental para o governo buscar mudar a relação de forças são as redes sociais, um habitat onde a extrema direita nasceu e cresceu, contando com os algoritmos que favorecem discursos de ódio, além da completa desregulação que permite, e em alguns casos premia, a circulação de desinformação e fake news.
Um levantamento realizado pela consultoria AP Exata aponta que o campo progressista conseguiu organizar seu discurso, explorando os erros da direita nos últimos meses, o que a levou a dominar os temas em discussão no ambiente digital e superar a direita em menções positivas nas redes sociais. E foi a reação à queda da MP que determinava o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) que abriu espaço para a virada, com a proposição do tema da justiça tributária como mote para o governo e a esquerda/centro-esquerda. À época, segundo a AP Exata, Lula chegou a 64% de menções positivas, iniciando uma nova etapa.
Em seguida, o tarifaço de Donald Trump contra o Brasil, que teve como um de seus articuladores o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), e o 7 de Setembro, com a emblemática bandeira gigante dos Estados Unidos sendo desfraldada na manifestação bolsonarista da Avenida Paulista, mantiveram os direitistas na berlinda e expuseram rachas no campo, com extremistas defendendo a anistia aos condenados do 8 de Janeiro, dita ampla, geral e irrestrita e que alcançaria o ex-presidente, e os integrantes do Centrão buscando articular uma candidatura à Presidência que se livrasse em parte do peso da rejeição carregada pelo bolsonarismo.
Mas não bastariam os erros e cisões do campo da direita para fazer com que a esquerda se sobressaísse no debate público. Fazendo a velha analogia com o futebol, não é suficiente a defesa adversária errar, é preciso finalizar e marcar o gol. E a oportunidade foi agarrada não só com a pauta da justiça tributária e a isenção do Imposto de Renda e taxação dos super-ricos, como também com a perspectiva de se pautarem questões concretas e relacionadas ao bem-estar da classe trabalhadora, como a tarifa zero e o fim da jornada 6×1, dois temas em debate no governo. Isso pode evidenciar ainda um relativo cansaço de parte da população em relação a questões que pouco interessam à maioria da sociedade, como a anistia, demarcando um distanciamento desse espectro político das demandas da população.
Atualmente, o cenário é bem distinto do que era há seis meses. O campo progressista retomou o controle de parte da pauta política e conseguiu definir discursos e bandeiras que trouxeram a possibilidade de uma ação mais coesa nas redes, facilitando a mobilização digital, que ajuda a fomentar eventuais manifestações nas ruas, aumentando assim o poder de pressão sobre o Parlamento. E dá base ao governo para tentar transformar sua relação com o Congresso Nacional em algo que tenha como componente real a participação popular, que tanto assombra parte dos parlamentares.
E é só com essa potência mobilizadora que será possível à esquerda enfrentar outro desafio central, as eleições parlamentares de 2026. Raramente, nos últimos anos, o panorama foi tão favorável. Mas é preciso não perder o ritmo diante de uma direita e extrema direita que ainda controla uma fatia considerável das instituições, do orçamento público e dos meios de comunicação.
Leia mais
- “Centrão” e bolsonarismo: simbiose letal. Artigo de Glauco Faria
- Eleições 2026: a luta de classes, outro nome para o conflito pela divisão das riquezas e oportunidades na nossa sociedade, está no centro da agenda. Entrevista especial com Marina Basso Lacerda
- Ultradireita: o PL já não é tão fiel a Bolsonaro. Artigo de Glauco Faria
- Votos da base aliada de Lula garantiram aprovação da PEC da Blindagem na Câmara
- O parlamentarismo da chantagem paralisa o país. Artigo de Marcelo Menna Barreto
- A PEC da Bandidagem e a erosão da democracia. Artigo de Glauco Faria
- O poder do “centrão” está enraizado no nepotismo das oligarquias. Entrevista com Ricardo Costa de Oliveira
- O Centrão e sua capacidade de encurralar. Artigo de Cândido Grzybowski
- Diálogos democráticos estratégicos. Artigo de Cândido Grzybowski
- Visões políticas e contradições sociais. Artigo de Cândido Grzybowski
- Entre adversários e inimigos. Artigo de Cândido Grzybowski
- Só as ruas podem fazer o Centrão ‘largar o osso’ e frear o processo de destruição. Entrevista especial com José María Gómez
- Bolsonaro, o Centrão e nós. Artigo de Luiz Werneck Vianna
- Centrão civil versus Centrão fardado
- O imprevisto, o Centrão e a política
- A democracia em risco. Artigo de Frei Betto
- Golpe, não! Democracia, sim! Artigo de Francisco de Aquino Júnior
- De candidato a condenado: os detalhes incômodos da trajetória de Jair Bolsonaro
- A queda de Bolsonaro: as chaves de uma condenação histórica