09 Outubro 2025
George Mitchell, o grande promotor americano do acordo de paz na Irlanda do Norte, descreveu a diplomacia como 700 dias de fracasso e um de sucesso. A tragédia de Gaza é que houve 730 dias de fracasso e nem um único dia de sucesso. A destruição, o número de vítimas fatais e a propagação do conflito para outros países são um monumento à vergonha da diplomacia e do que resta do direito internacional. Pode-se dizer que é o ponto mais baixo que a profissão atingiu desde 1939.
A reportagem é de Patrick Wintour, publicada por The Guardian e reproduzida por El Salto, 09-10-2025.
Há quem diga que o fracasso é inevitável, que um conflito tão enraizado e impermeável à possibilidade de um ponto de encontro só pode ser resolvido à ponta de arma. Ou seja, reprimindo ou eliminando uma das partes.
Mas por mais enraizado que esteja o ódio mútuo, um consenso está sendo gestado no Ocidente em torno de uma ideia: o conflito foi gerenciado de uma maneira terrivelmente errada. Os líderes europeus, que inicialmente cederam suas responsabilidades aos EUA, pensam o mesmo, onde o anterior governo do Partido Democrata idealizava o Israel moderno e não soube ver de que maneira o Executivo de Benjamin Netanyahu reagiria ao horror de 7 de outubro, nem como essa reação polarizaria o Ocidente.
Na antiga equipe de Joe Biden, as desculpas e as justificativas saíram em profusão. "Eu havia rogado a Joe, quando falou em público sobre este tema, que concedesse ao sofrimento dos civis inocentes de Gaza a mesma empatia que havia mostrado com o sofrimento dos ucranianos", escreveu Kamala Harris no livro sobre sua fracassada candidatura presidencial. "Ele não pôde fazê-lo: podia afirmar apaixonadamente 'sou sionista', mas seus comentários sobre os palestinos inocentes pareciam insuficientes e forçados". Netanyahu nunca correspondeu à lealdade que Biden lhe mostrou, escreve Harris, porque preferia Donald Trump no assento da frente.
Na melhor das hipóteses, os democratas não souberam ler as dinâmicas de poder. "Não agimos como uma superpotência", disse recentemente Andrew Miller, ex-subsecretário do Departamento de Estado para Assuntos Israelo-palestinos. "Em vez de partir da premissa de que eram problemas que podíamos resolver, nos convencemos de que podíamos fazer pouco para influenciar nosso aliado na região, Israel".
Trump não teve esse complexo de inferioridade e usou sua imprevisibilidade como a melhor arma diplomática. Mas, assim como aconteceu com Biden, o enviado especial de Trump, Steve Witkoff, atolou-se buscando uma fórmula que garantisse a libertação de todos os reféns antes que Israel retomasse os combates, como finalmente fez em março de 2025.
O plano para "O Dia Seguinte"
França e Arábia Saudita tomaram a iniciativa à medida que variações das propostas de Witkoff começaram a surgir. Decidiram utilizar uma conferência da ONU sobre a solução de dois Estados para impulsionar a diplomacia de uma maneira diferente, rompendo o monopólio americano sobre o processo de paz e abordando finalmente um tema até então esquecido: o autogoverno palestino.
Antes da conferência da ONU, que deveria ser realizada em junho, mas foi adiada um mês pelo ataque de Israel contra o Irã, Macron obteve uma carta de Mahmud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, apoiando um plano para o dia seguinte ao cessar-fogo. De acordo com este plano, o Hamas entregaria as armas e seria inabilitado para exercer cargos públicos, formando-se um órgão transitório de especialistas para governar a Palestina "sob o guarda-chuva" de uma Autoridade Palestina reformada.
A ideia de reformar a Autoridade Palestina, uma fórmula diplomática geralmente vazia de conteúdo, concretizou-se desta vez com detalhes específicos, como o compromisso de Abbas de realizar as muito postergadas eleições e de cumprir com uma série de mudanças internas. Também se falava de uma força composta por soldados internacionais.
Desde 2024, havia muitos planos em circulação para "o dia seguinte" em Gaza. Um deles havia sido publicado pelo Wilson Center e elaborado por especialistas de Israel e dos EUA. A Rand Corporation havia redigido outro, o Egito havia desenhado o seu, e os Emirados Árabes Unidos tinham um conjunto de princípios.
O plano franco-saudita incorporou muitas das ideias em circulação no que se tornou a declaração de Nova York, aprovada em julho pela conferência da ONU e respaldada em setembro pela Assembleia Geral, com o voto contrário de Israel e dos Estados Unidos.
"Embora a mídia tenha dado muita publicidade ao tema do reconhecimento do Estado palestino, esse não foi o verdadeiro avanço diplomático", diz um diplomata europeu. "Conseguimos convencer os americanos de que era preciso vincular os compromissos do cessar-fogo a um plano para o dia seguinte, e que se dessem conta de que focar apenas no cessar-fogo não ia funcionar".
"Também os convencemos de que não podiam continuar jogando dados esperando que sempre saísse um duplo seis", acrescenta o diplomata em referência à confiança excessiva que os Estados Unidos depositam no poderio militar israelense como forma de impor sua vontade.
Uma reunião-chave
Um momento crucial em todo este processo foi a reunião na Casa Branca no final de agosto, na qual Jared Kushner, Tony Blair e Witkoff convenceram Trump de que a expulsão massiva dos palestinos de Gaza não era necessária nem sensata. "Trump não tinha ilusões sobre a confiabilidade de Netanyahu e tinha interesses a zelar nos países do Oriente Médio; estava convencido de que para países como Jordânia e Egito a perspectiva de ondas de refugiados palestinos cruzando suas fronteiras era uma linha vermelha", diz uma das pessoas presentes no encontro. "Trump aceitou eliminar o deslocamento forçado e massivo da agenda".
A outra grande mensagem daquela reunião foi que uma convergência entre a perspectiva da Casa Branca e a da França parecia factível pela primeira vez. O ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Noël Barrot, descreveu-o assim durante uma conferência em Harvard em setembro: "O presidente Trump pediu a alguns de seus assessores mais próximos que fossem aos países árabes, França e Reino Unido para compilar todas as ideias que todos nós temos gerado durante meses e anos sobre o plano para o dia seguinte".
Segundo Barrot, a conferência da ONU e a votação da Assembleia Geral tiveram como objetivo eliminar os obstáculos à solução de dois Estados, conseguindo que os países árabes condenassem os atentados de 7 de outubro e apoiassem na declaração a exclusão do Hamas na Faixa de Gaza. "Até essa votação, não havia condenação internacional do Hamas, nem chamado internacional para que entregassem as armas, nem objetivo internacional para que os excluíssem de qualquer papel no futuro governo de Gaza e da Palestina", disse Barrot. "Isso já foi alcançado, mudamos a mentalidade; agora todo mundo vê o Hamas como o que é: uma organização terrorista".
O segundo obstáculo, explicou, era superar a reticência dos governos árabes em declarar em público que tinham o objetivo de estabelecer relações diplomáticas com Israel. Barrot afirmou que o novo texto da ONU foi mais longe do que nunca. "Conseguimos que dissessem que não apenas aspiram a ter uma relação normal com Israel, mas a entrar em uma arquitetura regional comum seguindo o modelo da ASEAN, na Ásia; ou da OSCE na Europa", disse. "Conseguimos que dissessem coisas que nunca haviam dito".
Ao contrário do que parecia, as semanas e os dias que antecederam a Assembleia Geral se concentraram na aproximação das nações árabes a Israel. O Hamas, que rejeita a solução de dois Estados, estava sendo excluído do poder político na Palestina, um destino que sua maltratada liderança aceitou a contragosto.
O plano de Trump
Mas a declaração de Nova York, com suas referências inequívocas a um Estado palestino e ao papel que desempenharia uma Autoridade Palestina reformada, continuava sendo inaceitável para Israel. Quando Trump revelou seu plano aos países árabes e muçulmanos, à margem da Assembleia Geral da ONU, a declaração de Nova York havia se tornado o ponto de referência com o qual esses países iriam avaliá-lo.
Elaborado em grande parte por Blair e Kushner, o plano de Trump era necessariamente impreciso, ambíguo e sem datas. Os países árabes mantinham suas reservas, mas Blair e outros promotores argumentavam que se o plano fosse mais específico, perderia o apoio generalizado e o impulso crítico imprescindíveis. A ausência de vazamentos imediatos foi motivo de entusiasmo para os diplomatas ocidentais. Era um sinal de que os países árabes consideravam possível trabalhar com o plano.
Os representantes dos países árabes deixaram Nova York, mas Netanyahu permaneceu na cidade no fim de semana, um tempo em que realizou duas longas reuniões com Witkoff. Embora o primeiro-ministro israelense tivesse se tornado persona non grata na Casa Branca após o ataque israelense de 9 de setembro contra os negociadores do Hamas em Doha (uma traição pessoal a Witkoff e ao Qatar), Netanyahu obteve novas concessões.
A anistia para os membros do Hamas só seria concedida àqueles que se comprometessem com a coexistência pacífica e entregassem as armas diante de observadores internacionais. Mais detalhes sobre a destruição da infraestrutura do Hamas foram adicionados. A retirada das Forças de Defesa de Israel (FDI) foi diluída. No final, as FDI só teriam que se retirar para uma zona de segurança que representa mais de 17% do território até que a Faixa de Gaza estivesse "devidamente protegida de qualquer ameaça terrorista ressurgente". Por último, a retirada seria realizada "de acordo com critérios e um calendário acordados entre as FDI, a força internacional de estabilização, os garantes e os Estados Unidos".
Após a publicação do plano, Netanyahu gravou um vídeo para sua audiência em casa assegurando que as linhas vermelhas de Israel haviam sido mantidas: Gaza continuaria separada da Cisjordânia, a Autoridade Palestina não voltaria a Gaza, não se abriria um caminho para uma "solução de dois Estados", e as forças de segurança israelenses não se retirariam da maior parte da Faixa de Gaza. Tentando contentar os ultras em sua coalizão de governo, Netanyahu também fez todo o possível para convencer o Hamas a rejeitar o plano para assim continuar com sua ofensiva militar contra a cidade de Gaza.
A resposta do Hamas
Embora o plano não estabeleça um calendário para que a junta de tecnocratas entregue o poder a um governo palestino eleito democraticamente, Turquia, Qatar e Egito instaram o Hamas a aceitar muitas das inconvenientes ambiguidades, que seriam abordadas mais tarde, para que a guerra termine.
Segundo fontes diplomáticas, os combatentes do Hamas dentro de Gaza, um grupo de jovens saturados pelos sacrifícios realizados, foram mais receptivos a essa mensagem do que a ala política do Hamas em Doha. Com um texto redigido pelo Qatar, a resposta do Hamas foi na verdade um "sim, mas" que permitia muitas interpretações possíveis.
Para grande consternação de Netanyahu, Trump decidiu interpretar a resposta do Hamas como um "sim" rotundo. A prova era que o Hamas estava disposto a renunciar à sua maior vantagem: os reféns ainda em seu poder.
Segundo Tahani Mustafa, do Conselho Europeu de Relações Exteriores, a política palestina adotou uma abordagem mais pragmática desde o ataque de 7 de outubro. "Os palestinos buscam alguém que possa tornar a vida mais suportável, mantê-los em sua terra e melhorar suas vidas; o que o povo pede é o mínimo mais básico, a maioria dos palestinos no terreno resignou-se ao seu destino".
Partindo dessa base, o organismo tecnocrático presidido por Trump e provavelmente dominado por Blair e algumas figuras da diáspora palestina poderia obter sua legitimidade de sua eficácia.
Blair trabalhará em um contexto desestabilizador, com eleições próximas em Israel e na Palestina. Uma das primeiras tarefas do organismo será entrar em contato com a política palestina. O ex-primeiro-ministro britânico tem contatos estreitos com as elites do Oriente Médio, mas nenhuma relação com a rua, e é possível que ceda a países como o Egito o trabalho de mediação no diálogo intrapalestino sobre a unidade palestina, um processo que a China lidera e que o idoso e autoritário presidente da Autoridade Palestina tentou sabotar.
Se as eleições se realizarem, tal como prometido, podem ocorrer mudanças. A última vez que se tentou realizar eleições foi em 2021, na Cisjordânia. O apetite democrático estava presente: além das facções tradicionais, houve 36 listas. A pergunta chave é o que acontecerá se as eleições produzirem um resultado que não agrade à junta tecnocrática de Blair.
A reputação de Israel foi destroçada à medida que a guerra de Gaza avança com uma devastação cada vez maior. Para o mundo árabe, Israel é agora uma ameaça à segurança maior que o Irã. No sul global, o comparam com a África do Sul do apartheid; e em toda a Europa se reproduzem as manifestações e acusações de genocídio. Nos EUA, uma maioria cada vez mais importante de judeus e membros do Partido Democrata desaprovam as ações de Israel.
Robert Malley, negociador americano que participou dos acordos de Oslo, é coautor de um livro recente sobre a impossibilidade de encontrar uma resposta diplomática racional ao conflito. Segundo ele, os possíveis mediadores externos se concentraram demais "em conseguir que [as partes] se ponham de acordo sobre o significado da existência de um Estado palestino, meras palavras no papel, sem chegar a um acordo sobre a natureza do conflito, a natureza desta besta, que foi um choque de relatos de proporções históricas".
"Da perspectiva israelense, eles ganharam em 1948 e 1967; e os palestinos se consideram vítimas de uma injustiça histórica em 1948, com a expulsão de 700 mil pessoas e a perda de suas terras", diz. "Por isso, para as partes nunca funcionaria que chegássemos nós, os americanos, dizendo: 'Bem, vamos ignorar estas diferenças, vamos esquecer o direito ao retorno, esquecer as reivindicações históricas de Israel e Palestina, vamos colocar um laço e chamá-lo de paz".
"Da perspectiva israelense, eles ganharam em 1948 e 1967; e os palestinos se consideram vítimas de uma injustiça histórica em 1948, com a expulsão de 700 mil pessoas e a perda de suas terras", diz. "Por isso, para as partes nunca funcionaria que chegássemos nós, os americanos, dizendo: 'Bem, vamos ignorar estas diferenças, vamos esquecer o direito ao retorno, esquecer as reivindicações históricas de Israel e Palestina, vamos colocar um laço e chamá-lo de paz".
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