27 Agosto 2025
As regras das instituições que definem nossas vidas se dobram como juncos quando se trata de Israel. Tanto que toda a ordem mundial está à beira do colapso.
A reportagem é de Moustafa Bayoumi, publicada por El Salto, 25-08-2025.
Sereen Haddad é uma jovem brilhante. Aos 20 anos, acaba de se formar em Psicologia na Virginia Commonwealth University (VCU). Embora a graduação normalmente dure quatro anos, ela a concluiu em três e obteve as notas máximas. No entanto, apesar de suas conquistas, ela não tem o diploma. A universidade reteve seu diploma, diz a jovem: “Não porque eu não tenha completado os requisitos, mas porque defendi a vida palestina”.
Haddad, que é palestino-americana, tem feito campanha em seu campus em torno da luta palestina pela liberdade como membro do grupo "Estudantes pela Justiça na Palestina". No seu caso, a luta também é pessoal. Sua família é de Gaza e mais de 200 de seus parentes morreram como resultado dos ataques de Israel.
Em abril de 2024, ela fez parte de um grupo de estudantes e apoiadores da VCU que tentaram acampar no campus para protestar. A universidade chamou a polícia naquela mesma noite: os manifestantes foram pulverizados com gás pimenta e maltratados, e 13 foram detidos. Haddad explica que não há acusações contra ela, mas foi levada para o hospital "por um traumatismo cranioencefálico". "Eu sangrava. Tinha hematomas e cortes por todo o corpo. A polícia me jogou contra o concreto pelo menos seis vezes", conta.
Na verdade, a tentativa de acampamento do ano passado nem sequer foi a razão pela qual Haddad não pôde obter seu diploma universitário, mas sim uma comemoração pacífica que ocorreu este ano. E a forma como a situação se desenrolou, com a Universidade e a Polícia do campus mudando constantemente as regras, ilustra algo preocupante muito além dos limites arborizados de um campus americano.
As bases da ordem internacional
A guerra de Israel em Gaza está minando grande parte do que — nos Estados Unidos, mas também em nível internacional — havíamos considerado aceitável: desde as normas que regem nossa liberdade de expressão até as próprias leis dos conflitos armados. Não parece um exagero afirmar que as bases da ordem internacional dos últimos 77 anos estão ameaçadas por essa mudança nas obrigações que regem as responsabilidades jurídicas e políticas mútuas entre os Estados.
Esse colapso começou com a falta de determinação das vozes progressistas para conter a guerra de Israel em Gaza. Ele se intensificou quando ninguém moveu um dedo para impedir o bombardeio de hospitais. Ele se espalhou quando a fome se tornou uma arma de guerra. E está atingindo seu auge em um momento em que a guerra total não é mais considerada uma aberração humana, mas a política deliberada do Estado de Israel.
Para a política internacional, regional e até mesmo nacional, as implicações desse colapso são profundas. Ele implica a repressão da dissidência política, o controle e a fiscalização da linguagem política e a progressiva militarização das sociedades tradicionalmente liberais contra seus próprios cidadãos.
Muitos de nós ignoramos o quanto a situação mudou nos últimos 20 meses. Estamos ignorando o colapso da ordem mundial que definiu nossas vidas por gerações e o fazemos assumindo um risco coletivo.
Normas em mudança nas universidades
Em 29 de abril de 2025, um grupo de estudantes da VCU se reuniu no jardim do campus para relembrar o desmantelamento à força de um acampamento erguido brevemente no mesmo espaço no ano anterior. A reunião não era um protesto: o encontro, na verdade, parecia um piquenique, no qual alguns estudantes usaram faixas de manifestações anteriores como cobertores; outros trouxeram cobertores de verdade. Os estudantes sentaram na grama e estudaram para seus exames finais, jogaram com seus laptops, cartas ou xadrez. Alguns dos cerca de 40 estudantes usavam uma kufiya (o lenço tradicional da Palestina).
Acontece que os cobertores eram um problema. Depois de quase duas horas de piquenique, um representante da universidade confrontou os estudantes por causa de uma publicação nas redes sociais que informava sobre a reunião: “Venham em comunidade uns com os outros para comemorar o primeiro ano desde a brutal resposta da VCU ao acampamento de solidariedade G4Z4. Tragam cobertores de piquenique, deveres/finais, material artístico, lanches, música, jogos”, havia publicado um grupo local de solidariedade com a Palestina.
Devido a essa postagem, a universidade considerou o piquenique um "evento organizado" e, como os estudantes não haviam registrado o evento, considerou que eles haviam violado as normas. Na verdade, as regras na VCU vinham mudando devido aos protestos por Gaza desde fevereiro de 2024. O representante explicou aos estudantes que eles não podiam continuar acampando na grama, mas que podiam ir para a área de livre expressão do campus, uma área que havia sido estabelecida em agosto de 2024 por causa dos protestos daquele ano – segundo a descrição de Haddad, "um anfiteatro ao lado de quatro contêineres de lixo".
A organização de defesa da liberdade de expressão no campus Foundation for Individual Rights and Expression (Fire) considera que as zonas de liberdade de expressão "funcionam mais como quarentenas para a liberdade de expressão, relegando estudantes e professores a locais marginais que podem ser minúsculos, estar nas margens do campus ou (frequentemente) ambas as coisas".
Em vez de ir para essa área, os estudantes anunciaram o fim formal de sua reunião e optaram por ficar, tranquilamente, na grama do campus. Mas, segundo o relato de Haddad, como as faixas sobre as quais eles estavam sentados expressavam um ponto de vista político, o representante da universidade lhes disse que eles teriam que levá-las para a zona de livre expressão. Os estudantes argumentaram que o jardim deveria ser para todos. Seguiram-se várias conversas com agentes de polícia do campus e com diferentes representantes da VCU, que foram citando normas distintas.
Mais de uma dezena de agentes de polícia do campus apareceram naquela mesma tarde. "Vocês foram solicitados a não ter cobertores na grama. Têm um minuto para recolher os cobertores e deixar o jardim. Caso contrário, serão detidos por invasão", lhes disse um agente. Os policiais foram mudando as regras: primeiro, lhes disseram que tinham que retirar os cobertores e ir embora; minutos depois, que podiam ficar se tirassem os cobertores.
Os estudantes tiraram os cobertores e, enquanto os agentes se afastavam, começaram a gritar: "Palestina livre, livre!". Um deles levantou um cartaz, em referência aos manifestantes do ano passado que foram pulverizados com gás pimenta pela polícia, no qual se lia: "Vão nos gasear de novo, malditos monstros". Ele foi detido. Os outros ficaram zangados e frustrados.
"Sabem por que isso acabou se tornando uma manifestação?", gritou um estudante à polícia. "Porque vocês trouxeram a porra da polícia para um piquenique! Foi isso que o transformou em uma porra de manifestação".
Oito dias depois, Haddad e outro estudante, identificados pela universidade como líderes, receberam um aviso de infração da regulamentação do campus por terem convocado um evento organizado sem autorização. Foi então que seus diplomas universitários foram retidos.
"Quando os estudantes expõem a violência da ocupação e o genocídio de Israel, as instituições como a VCU, que têm vínculos profundos com os fabricantes de armas e os doadores corporativos, ficam temerosas", assinala Haddad. "Então elas distorcem as regras, reescrevem as políticas e tentam nos silenciar... Mas tudo é uma questão de poder. Nossas demandas por justiça são uma ameaça para a sua cumplicidade".
A mudança estratégica das regras não é exclusiva da VCU. Está ocorrendo em todo os Estados Unidos à medida que os órgãos de gestão das universidades reprimem os protestos em apoio aos direitos dos palestinos. Em um de muitos outros exemplos, dezenas de professores e estudantes foram suspensos temporariamente da biblioteca de Harvard no fim de 2024, depois de se sentarem tranquilamente para ler na biblioteca com cartazes que apoiavam a liberdade de expressão ou se opunham à guerra em Gaza, embora um protesto similar em dezembro de 2023 não tivesse resultado em tal sanção.
Se algum desses estudantes tivesse protestado contra a guerra da Rússia contra a Ucrânia, muito provavelmente as universidades teriam aplaudido o gesto. Afinal, as universidades se orgulham de ser o campo de testes dos valores coletivos da sociedade. Como lugares de contemplação e exploração, funcionam como incubadoras de futuros líderes. Mas quando se trata da questão da Palestina, o padrão é diferente. Em vez de ouvir os estudantes que querem que Israel preste contas por seus atos, aqueles que ocupam cargos de poder na universidade optam por mudar as regras.
Impunidade internacional
Essas duvidosas mudanças normativas não afetam apenas nosso corpo discente. Em um demolidor relatório publicado em janeiro, o veículo de investigação ProPublica detalhou as múltiplas formas em que o governo de Joe Biden (à frente dos Estados Unidos até janeiro de 2025) foi mudando as regras do jogo a favor de Israel após os ataques do Hamas de 7 de outubro de 2023.
Lembram-se das ameaças de sanções contra Israel pela invasão de Rafah? ("É uma linha vermelha", disse Biden). Ou o ultimato de 30 dias para que Israel aumentasse drasticamente a ajuda alimentar? Nada aconteceu. Salvo por uma breve pausa nos envios de 1.800 bombas de 900 quilos e 1.700 de 220 quilos, o fornecimento de armamento militar continuou sem interrupções.
A lei Leahy exige restringir a ajuda às unidades militares de governos estrangeiros envolvidos em graves violações dos direitos humanos. Nunca foi aplicada a Israel. Em abril de 2024, tudo parecia indicar que o então secretário de Estado, Antony Blinken, iria sancionar o Netzah Yehuda, um notório batalhão das Forças de Defesa Israelenses, sob a lei Leahy. No fim, ele voltou atrás e o batalhão não só se livrou das sanções americanas, como, segundo a rede de televisão CNN, seus comandantes até foram designados para treinar forças terrestres e dirigir operações em Gaza.
"É difícil evitar chegar à conclusão de que as linhas vermelhas foram apenas uma cortina de fumaça", disse a Stephen Walt, professor de Assuntos Internacionais na Harvard Kennedy School, ao ProPublica. "O governo Biden optou por se envolver completamente e apenas fingiu estar tomando medidas."
A Lei Leahy não é a única lei americana que a impunidade de Israel está levando ao limite. No final de abril de 2024, as principais agências do governo dos EUA em matéria de ajuda humanitária concluíram que Israel estava bloqueando deliberadamente a entrada de alimentos e medicamentos em Gaza. A Lei de Assistência Exterior exige a suspensão da ajuda militar a qualquer país que "restrinja, direta ou indiretamente, o transporte ou a entrega de ajuda humanitária americana". Blinken simplesmente ignorou as provas apresentadas por seu próprio governo. "Atualmente não consideramos que o governo israelense esteja proibindo ou restringindo o transporte ou a entrega de ajuda humanitária americana", informou ao Congresso.
As regras se dobram como juncos quando se trata de Israel, que em março de 2025 também quebrou o cessar-fogo que o governo de Donald Trump havia promovido em janeiro. E agora assistimos a um novo nível de crueldade: o uso da inanidade como arma de guerra. Enquanto isso, alguns políticos israelenses chamam abertamente a limpeza étnica. Bezalel Smotrich, ministro das Finanças de extrema-direita, gabou-se de que Israel está "destruindo tudo o que resta da Faixa de Gaza" e que "o exército não está deixando pedra sobre pedra". E acrescentou: "Ocuparemos, limparemos e permaneceremos em Gaza até aniquilar o Hamas". E sua ideia de Hamas é ampla. "Estamos eliminando ministros, burocratas, manipuladores de dinheiro, todos os que sustentam o governo civil do Hamas", explicou. Matar membros civis do governo que não são combatentes é um crime de guerra.
Mais uma vez, os Estados Unidos e a comunidade internacional não fazem nada.
Cada dia, não só se fala em voz alta do que antes era inaudito, mas também se age em conformidade, precisamente porque suscita pouca reação. Em um artigo publicado na edição hebraica do jornal israelense Haaretz, dois pilotos aposentados das Forças Aéreas israelenses escreveram que "um membro da Knesset até se gabou de que uma das conquistas do governo é a capacidade de matar 100 pessoas por dia em Gaza sem que ninguém se escandalize".
Essa mudança constante das linhas vermelhas e do que consideramos "aceitável" resultou em políticas e práticas criminosas de deslocamento forçado, sofrimento em massa e genocídio, tudo isso levado a cabo sob a aquiescência passiva ou a cumplicidade ativa de países poderosos.
Até mesmo a Cruz Vermelha, normalmente relutante em denunciar publicamente, já que prefere resolver situações a portas fechadas, se mostrou horrorizada. "A humanidade está falhando em Gaza", declarou recentemente Mirjana Spoljaric Egger, presidenta do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, a Jeremy Bowen, da radiotelevisão pública britânica BBC. "O fato de estarmos vendo como um povo é completamente despojado de sua dignidade humana deveria chocar nossa consciência coletiva", lamentou.
No entanto, a indignação oficial é, na melhor das hipóteses, silenciosa, enquanto tudo o que antes era considerado institucionalmente sólido está se evaporando.
O "anacronismo" de Israel
O que Israel tem que lhe permite sair impune? Por muito tempo, os EUA protegeram Israel das críticas internacionais e o apoiaram militarmente. As razões oferecidas para esse apoio geralmente vão desde o vínculo "inquebrável" que ambos os países compartilham até o poder do Comitê Americano-Israelense de Assuntos Públicos (AIPAC) em Washington. Poder-se-ia argumentar razoavelmente que a única coisa diferente da guerra atual é a escala.
Mas não se trata apenas de Washington. Israel e a questão da Palestina produzem divisões e muitas tensões em grande parte do mundo ocidental. A Dinamarca proibiu recentemente as crianças que se preparavam para votar em uma eleição juvenil em nível nacional de debaterem sobre a soberania palestina. Por quê?
Em uma conversa com Ezra Klein, do jornal The New York Times, a professora de direito internacional de direitos humanos Aslı Bâli ofereceu uma explicação sobre o que torna o caso da Palestina diferente. Em 1948, ela assinalou, a Palestina foi "o único território que estava previsto que se descolonizaria no momento da criação das Nações Unidas... e que [até hoje] ainda não foi descolonizado".
A África do Sul esteve uma vez nessa categoria. Por décadas, a Palestina e a África do Sul foram "entendidas como exemplos contínuos de uma descolonização incompleta que continuou muito depois de o resto do mundo ter se descolonizado por completo". Atualmente, a Palestina é a última exceção a esse processo histórico; um vestígio claramente visível para os povos que um dia foram objeto de colonização, mas que o mundo ocidental se recusa a reconhecer como uma aberração.
Não se trata apenas de Washington. Israel e a questão da Palestina produzem divisões e muitas tensões em grande parte do mundo ocidental
Em outras palavras, para muitos nos Estados Unidos e em grande parte do mundo ocidental, a criação do Estado de Israel é entendida como o cumprimento das aspirações nacionais judaicas. Para o resto do mundo, o mesmo cumprimento das aspirações nacionais judaicas fez com que a descolonização da Palestina ficasse incompleta.
Em 2003, o historiador Tony Judt escreveu que o problema de Israel é que "chegou tarde demais". "Ele importou um projeto separatista característico do final do século XIX para um mundo que avançou, um mundo de direitos individuais, fronteiras abertas e direito internacional. A própria ideia de um 'Estado judeu' (um Estado no qual os judeus e a religião judaica têm privilégios exclusivos dos quais os cidadãos não judeus estão excluídos para sempre) tem suas raízes em outro tempo e lugar. Israel, em resumo, é um anacronismo".
A ideia de Judt de que Israel é uma relíquia de outra época requer entender como o impulso global de descolonização se acelerou significativamente depois de 1945. O resultado foi um mundo novo, mas que abandonou os palestinos, deixando-os em campos de refugiados em 1948. Este novo mundo, surgido das cinzas da Segunda Guerra Mundial, se tornou o que hoje chamamos de "a ordem internacional baseada em normas", da qual o direito internacional é um componente-chave.
O direito internacional também foi muito mais codificado nesse período. O ano de 1948 não foi apenas a data da Nakba palestina ("catástrofe", em árabe) e da independência de Israel. Também foi o ano em que foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Juntamente com a Carta das Nações Unidas de 1945, a DUDH constitui a base principal do direito internacional dos direitos humanos.
Mas, de que serve uma "ordem internacional baseada em normas" se essas normas não param de mudar?
Instrumentalizando o Direito Internacional
A verdade é que nunca vivemos realmente em uma "ordem internacional baseada em normas" ou, ao menos, não na que a maioria das pessoas imagina quando ouve essa expressão. A ideia de que o direito internacional estabelece limites para as ações dos Estados não impediu o genocídio de Ruanda. A "ordem internacional baseada em normas" não impediu a invasão "ilegal" do Iraque por parte dos EUA em 2003. Muito antes de 2023, Israel violava sistematicamente as resoluções do Conselho de Segurança. Não impediu que o Hamas cometesse seus crimes de guerra em 7 de outubro.
O problema com o direito internacional não é apenas a falta de um mecanismo de aplicação que obrigue os Estados infratores a cumprirem. O problema com o direito internacional é que "é mais provável que sirva como ferramenta dos fortes do que dos fracos", escreve Ian Hurd, teórico jurídico e professor de Ciências Políticas da Northwestern University, em seu ensaio How to Do Things with International Law (Como fazer coisas com o Direito Internacional), publicado em 2017.
Tendemos a pensar na lei como um limite acordado para as ações dos humanos. Como disse o presidente americano Dwight D. Eisenhower: "O mundo não vai mais poder escolher entre a força e o direito. Se a civilização quer sobreviver, deve escolher o império da lei".
Mas, e se a lei fosse entendida melhor como um sistema que, sim, restringe o comportamento, mas sobretudo valida o que é possível? Quem define os limites define o que é aceitável. Como tal, é muito mais provável que os poderosos mudem o terreno do aceitável em seu benefício. Como explica Hurd, o direito internacional "facilita o império no sentido tradicional porque os Estados fortes... configuram o significado das normas e obrigações internacionais através da interpretação e da prática".
Embora o direito internacional proíba, em geral, a guerra, ele estabelece uma exceção para a legítima defesa, e os Estados poderosos são os que podem mudar a linha do que constitui legítima defesa. (Israel reivindica amplamente a legítima defesa em sua agressão ao Irã, por exemplo, assim como a Rússia reivindica explicitamente a legítima defesa para atacar a Ucrânia).
Em seu ensaio, Hurd examina como os EUA justificaram o uso da guerra com aviões não tripulados e até mesmo a tortura apelando para o direito internacional. O direito internacional, para Hurd, não é um sistema que está acima da política. É política.
O que extraio de Hurd não é que o direito internacional não exista ou que não seja valioso. É claro que são necessárias normas para salvar os civis e evitar a guerra. O Direito Internacional Humanitário também é algo vivo que se adapta e se expande. Em 1977 foram adotados protocolos adicionais aos Convênios de Genebra. O Estatuto de Roma pelo qual foi criado o Tribunal Penal Internacional foi aprovado em 1998.
Mas o direito internacional também é submetido repetidamente a pressão, é violado de forma rotineira e é sistematicamente posto a serviço de Estados fortes. Como tal, o direito internacional na prática é entendido melhor como uma linha de comportamento aceitável que muda constantemente. Pode ser que agora estejamos chegando a um ponto em que essa linha se afastou tanto das intenções fundacionais do direito internacional que o próprio sistema está à beira do colapso.
A campanha de Israel em Gaza implica a aterrorizante possibilidade de um deslocamento tão radical dos limites do aceitável que transforme o genocídio em uma arma de guerra legítima.
Se você acha que estou exagerando, considere o que escreveu Colin Jones no The New Yorker no início deste ano. Jones consultou juristas proeminentes do estamento militar americano sobre suas opiniões a respeito da campanha de Israel em Gaza. O que ele descobriu foi um Exército americano profundamente preocupado em ser limitado pelo direito internacional na hora de travar uma futura guerra contra uma grande potência como a China; tanto que "o relaxamento dos limites em torno das baixas civis" por parte de Israel desloca convenientemente os limites do permitido para futuras ações militares dos EUA.
Para o Exército americano, Jones escreve: "Gaza não só parece um ensaio geral do tipo de combate que os soldados americanos podem enfrentar. É um teste da tolerância da opinião pública americana aos níveis de morte e destruição que esse tipo de guerra acarreta". Em que distopia estamos vivendo?
Em seu ensaio, Hurd também ilustra uma diferença fundamental entre os regimes jurídicos nacionais e internacionais. A expectativa que temos do direito interno, ele diz, é que seja "claro, estável e conhecido de antemão", enquanto o direito internacional depende do consentimento dos Estados.
O desprezo de Trump pelas instituições do direito internacional não poderia ser mais evidente. Ele impôs sanções a juízes e juristas da Corte Penal Internacional depois que foram emitidos mandados de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant. (Ele desafiou a Carta da ONU bombardeando o Irã, um país soberano que não representa um risco iminente. A resposta mundial? Uma leve repreensão do presidente francês, Emmanuel Macron, e o apoio em alto e bom som do secretário-geral da OTAN, Mark Rutte).
Seu desdém pelas instituições jurídicas nacionais é igualmente visível. Ele invocou falsas emergências para reivindicar "poderes de emergência" como nenhum presidente fez antes dele, o que lhe permite contornar o Congresso e, essencialmente, governar por decreto. Ele desdobrou soldados na Califórnia e em Washington, e um tribunal de apelação até autorizou sua decisão. Ele está desafiando abertamente várias ordens judiciais.
O que está acontecendo? É tentador pensar que vivemos em uma nova era de anarquia, mas isso não capturaria a mudança que temos diante de nós. Não se trata da ausência de lei. Trata-se de refazer a lei. O que Trump e líderes como ele buscam não é tanto destruir a lei quanto colonizá-la, possuir a lei determinando seus parâmetros para que ela sirva a seus interesses. Para eles, a lei existe para se dobrar à sua vontade, para destruir seus adversários e para fornecer um álibi para comportamentos que, em uma versão melhor de nosso mundo, seriam punidos como criminosos.
Talvez não seja surpreendente que algo tão vulnerável como o direito internacional possa se resquebraçar sob as pressões atuais. O que pode ser surpreendente é como estamos perdendo também nosso sentido interno de estabilidade, paz e segurança juntamente com ele e quão conectada está a luta pela Palestina a esse desmantelamento interno, especialmente quando se trata da liberdade de expressão.
Se não, que o digam a Sereen Haddad ou a Mahmoud Khalil, o ativista palestino que passou 104 dias detido por seu discurso político protegido pela Constituição dos Estados Unidos e que ainda enfrenta a possibilidade de ser deportado.
Uma ordem mundial em colapso
A Convenção para a Prevenção e a Punição do Crime de Genocídio foi aprovada, assim como a DUDH, no fatídico ano de 1948. Sua chegada era urgente e necessária após o Holocausto nazista do povo judeu, e o direito internacional moderno foi construído sobre o entendimento de que juntos, na comunidade internacional, trabalharíamos para prevenir futuros genocídios. Embora no passado não tenhamos cumprido essa promessa, hoje são os atos de extermínio e genocídio de palestinos em Gaza por parte de Israel, financiados e permitidos a todo momento por um Ocidente cúmplice, os que mais contribuíram para o desaparecimento da ordem mundial baseada em normas.
Tal como está hoje, o sistema não chegará aos 100 anos. E seu colapso pode ser atribuído diretamente à hipocrisia com que o mundo tratou os palestinos
Tal como está hoje, o sistema não chegará aos 100 anos. Seu colapso pode ser atribuído diretamente à hipocrisia com que o mundo tratou os palestinos. Nenhum outro grupo foi submetido a um estado de perda tão prolongado na ordem liberal posterior a 1945. Os refugiados palestinos constituem "a maior e mais antiga situação de refúgio prolongado" do mundo moderno. E as exigências impostas aos palestinos simplesmente para sobreviver se tornam mais bárbaras a cada hora.
Em Gaza, palestinos desesperados são abatidos diariamente por franco-atiradores e drones enquanto esperam por comida. A seca é iminente porque os ataques de Israel destruíram a maioria das estações de tratamento de águas residuais, sistemas de esgoto, reservatórios e tubulações da faixa. Até 98% das terras de cultivo de Gaza foram destruídas por Israel. Esta é uma forma de guerra total que o mundo moderno nunca deveria ver e, muito menos, aprovar.
Ninguém sabe o que virá para substituir o sistema internacional que atualmente se desmorona ao nosso redor, mas qualquer sistema político que priorize punir aqueles que protestam contra um genocídio em vez de deter a matança está claramente exausto.
Se há um raio de esperança em toda essa miséria que induz à raiva, ele pode ser encontrado no crescente número de pessoas em todo o mundo que se recusam a ser intimidadas a ponto de não levantar a voz. Talvez tenhamos visto um pequeno exemplo dessa coragem na cidade de Nova York recentemente, e não me refiro apenas ao fato de Zohran Mamdani ter ganhado a nomeação do Partido Democrata para a prefeitura.
Nesse mesmo dia, duas políticas progressistas do Brooklyn, Alexa Avilés e Shahana Hanif, se candidataram à reeleição. Ambas apoiavam a Palestina, ambas foram atacadas implacavelmente por seus posicionamentos sobre Gaza e ambas se recusaram a mudar de opinião. Doadores pró-Israel se dedicaram às campanhas de seus oponentes. No entanto, ambas venceram por uma ampla margem.
Em qualquer campanha política intervêm múltiplos fatores, mas qualquer apoio expresso à Palestina costumava ser uma sentença de morte. Poderia ser que estejamos na cúspide da mudança? Talvez a liberdade da Palestina já não seja um fardo, mas uma verdadeira posição vencedora na política?
Talvez a Palestina seja hoje a expressão mais clara, como Haddad me disse, de como "o poder se sente ameaçado pela verdade". Como ela expressou, "se eles têm tanto medo de um estudante com uma faixa ou uma mensagem escrita com giz ou uma petição para que se faça justiça, então somos mais fortes do que eles querem nos fazer acreditar". É melhor que ela tenha razão. Pelo bem de todos.
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