22 Agosto 2025
Governo brasileiro não se compromete com tratado da ONU para conter poluição de plástico em oceanos; Levantamento exclusivo da Repórter Brasil mostra que, entre 2019 e 2025, autoridades receberam representantes da indústria química e do plástico em 49 oportunidades; entidades da sociedade civil participaram de apenas cinco reuniões.
A reportagem é de Igor Ojeda, Vinícius Konchinski e Hélen Freitas, publicada por Repórter Brasil, 20-08-2025.
A postura vacilante do governo brasileiro frustrou ambientalistas que esperavam a aprovação de um acordo global para redução do lixo plástico nos oceanos durante encontro da ONU (Organização das Nações Unidas), encerrado na última sexta-feira (15) em Genebra, na Suíça. Após 11 dias de debate, a sexta rodada de negociações sobre o tema terminou em impasse.
“O Brasil, historicamente, é corajoso em discussões de tratados sobre saúde e meio ambiente. Nesse caso, tem uma postura frustrante baseada no argumento de que não pode prejudicar sua economia. E isso vem da pressão da indústria sobre o MDIC [Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços]”, diz Paula Jhons, diretora executiva da ONG ACT Promoção da Saúde.
Um levantamento realizado pela Repórter Brasil por meio da ferramenta Agenda Transparente, desenvolvida pela organização Fiquem Sabendo, identificou 87 reuniões de autoridades federais nas quais o plástico esteve em pauta, realizadas entre 26 de junho de 2019 e 6 de junho deste ano. Além do tratado global, assuntos relacionados a legislações nacionais sobre a produção de plástico, entre outros, também foram temas dos encontros.
Em 49 dessas reuniões (56% do total), algum representante da indústria estava presente. Além das associações empresariais das indústrias química (Abiquim) e do plástico (Abiplast), esses encontros chegaram a contar, em algumas ocasiões, com representantes das indústrias de alimentos, de refrigerantes e de tintas. Já organizações da sociedade civil que defendem o banimento da produção e do uso de alguns tipos de plásticos estiveram representadas em apenas cinco reuniões – 6% do total.
Iniciado em 2022, o debate sobre o tratado global na ONU tem colocado em posições opostas dois grandes grupos de países. De um lado, mais de 100 nações defendem o banimento de produtos plásticos de uso único — os “descartáveis” — e de algumas substâncias químicas nocivas usadas em sua fabricação.
De outro, estão os países produtores de petróleo, que se opõem a qualquer restrição à fabricação e propõem como solução alterações no design dos produtos, além de adequações na coleta, tratamento e reciclagem.
“A posição da delegação brasileira em Genebra deixou a desejar ao não se alinhar ao grupo com mais de 100 países que defendeu propostas avançadas para estancar a hecatombe plástica”, criticou, em comunicado no dia 15, a Coalizão Vida Sem Plástico, rede brasileira de organizações da sociedade civil que lutam contra a poluição plástica nos oceanos.
Oitavo maior produtor mundial de lixo plástico, o Brasil despeja anualmente cerca de 1,3 milhão de toneladas desse resíduo no mar, o que representa 8% do volume global, segundo um estudo da ONG Oceana Brasil de 2020. No entanto, pressionado por sua própria indústria, especialmente a química e a do plástico, o país deixou de apoiar um documento final mais ambicioso.
A maior parte dos encontros com a presença do setor industrial ocorreu com autoridades do MDIC. Comandada pelo também vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), a pasta foi a responsável por ordenar a retirada de uma proposta brasileira para banimento de determinados materiais na quinta rodada de negociações do tratado sobre poluição plástica, em Busan, Coreia do Sul, em novembro de 2024.
A história foi revelada em reportagem da Agência Pública. O recuo teria atendido um pedido da Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química) e da Abiplast (Associação Brasileira da Indústria do Plástico).
“A escuta ao setor produtivo é legítima e importante, desde que equilibrada com a participação de outros atores da sociedade. O que preocupa é quando essa influência da indústria é desproporcional”, pontua Michel Santos, gerente de Políticas Públicas da WWF-Brasil.
“Essa tentativa de conciliação se traduz em um discurso genérico que, na prática, posterga decisões urgentes ou cede desproporcionalmente às pressões do setor produtivo, sem considerar os impactos socioambientais da poluição plástica”, completa.
Em nota, o MDIC afirma que o debate sobre a posição do Brasil no tratado global busca o equilíbrio entre os diferentes setores da sociedade, incluindo a sociedade civil e o setor produtivo, e que o diálogo é “parte legítima e necessária de qualquer democracia, especialmente diante de um desafio que exige transição industrial justa e sustentável”. Leia aqui a resposta na íntegra.
De acordo com um estudo da organização não governamental Oceana Brasil, de 2024, resíduos plásticos representam uma grave ameaça a animais marinhos, não só por serem confundidos com alimento, mas também por gerarem riscos à locomoção de diferentes espécies, além de contaminação química e destruição de habitats.
Já os seres humanos estão expostos a microplásticos presentes na carne de peixes e frutos do mar. “Globalmente, nove das dez espécies de peixes mais capturadas para o consumo humano apresentam ingestão de plástico”, diz o texto. Esses materiais são hoje detectados no sangue e no leite materno e em diversos órgãos vitais humanos, como cérebro, pulmão, coração e testículos.
Um relatório divulgado pela WWF às vésperas do início das reuniões de Genebra, baseado em estudos da Universidade de Birmingham, da Inglaterra, aponta que resíduos da poluição plástica disseminados pelo planeta têm elevado os riscos de câncer e infertilidade.
Até agora, a visão das indústrias química e do plástico tem prevalecido tanto na posição brasileira sobre o tratado global quanto em relação à legislação nacional. O setor do plástico é parte relevante da indústria química nacional, quarta maior do mundo nesse segmento. Ela é responsável por cerca de 12% do PIB (Produto Interno Bruto) do país, emprega 2 milhões de pessoas e fatura cerca de R$ 1 trilhão por ano.
A Abiquim e a Abiplast batem na tecla da “economia circular”, mas sem limitação à produção. Basicamente, defendem que a inovação de produtos, o descarte correto dos resíduos e a ampliação da reciclagem seriam suficientes para conter a poluição.
“A gente tem que tomar cuidado com questões muito ligadas ao nosso contexto socioeconômico. A primeira coisa que a gente tem levado ao governo brasileiro, e o Brasil tem se mostrado protagonista nesse assunto, é a transição justa”, diz Paulo Teixeira, presidente-executivo da Abiplast.
“Quando falamos em transição justa, estamos falando sobre qual é o impacto que um tratado vinculante vai ter nos catadores, ou seja, em quem quem faz a recuperação dos resíduos. Ou nas micro e pequenas empresas, porque os recicladores de plástico e uma boa parte dos transformadores de plásticos são micro e pequenas empresas”, argumenta.
Na avaliação de Teixeira, o financiamento para a transição é outro ponto fundamental do debate. Ele defende que os países ricos garantam recursos econômicos para nações em desenvolvimento migrarem para uma economia circular.
“Um dos principais requisitos para combater a poluição plástica é produzi-los de uma forma que tenham circularidade, isto é, sempre pensando em redesign, reuso, reparo, reciclagem, recondicionamento. Essa transição exige dos países do Sul investimento em ciência, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento”, defende.
Segundo Teixeira, a Abiplast propõe que um eventual banimento de produtos plásticos seja feito de maneira técnica. “A gente é contra se for uma lista [de produtos a serem eliminados] sem critério técnico e arbitrária. Queremos discutir critérios para se montar uma lista, não discutir a lista”, afirma.
Ele explica que um dos critérios a se adotar seria a realização de análises de ciclo de vida dos produtos, ou seja, desde a extração da matéria-prima até o descarte ou eventual reutilização. “Para que a gente evite coisas como, por exemplo, o produto A ser substituído pelo produto B, de outro material, mas que em todo seu ciclo de vida emita mais gases de efeito estufa”.
Para o presidente-executivo da Abiplast, a sociedade civil e organizações ambientais defendem o banimento de produtos porque consideram a reciclagem inviável. “Mas, caso se invista no aumento da circularidade, evita-se o banimento. Claro que a maneira mais fácil é banir. Até porque há também uma parte do setor privado que quer substituir o plástico”, argumenta.
Um relatório de 2024 da organização ambiental CCI (Centro para a Integridade Climática), dos Estados Unidos, afirma que a reciclagem não é técnica nem economicamente viável para dar conta do volume de produtos plásticos produzidos. Segundo a CCI, embora as indústrias petrolífera e do plástico saibam disso há 50 anos, elas vêm “enganosamente” promovendo-a como uma solução para a gestão de resíduos plásticos.
“O problema da poluição de plástico é como uma banheira cheia e transbordando água. Não adianta você ficar tirando água com um balde se você não fechar a torneira”, compara Paula Johns, da ACT Promoção da Saúde.
De acordo com dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de 2022, o mundo estava produzindo duas vezes mais lixo plástico do que duas décadas atrás e apenas 9% do total dos resíduos era, de fato, reciclado.
“À medida que o aumento populacional e de renda provoca um aumento implacável na quantidade de plástico usado e descartado, as políticas para conter seu vazamento no meio ambiente estão falhando”, diz o documento.
Paulo Teixeira, da Abiplast, argumenta que essa baixa porcentagem ocorre quando se leva em conta todo o plástico que é consumido, incluindo produtos de ciclo mais longo ou utilizados na composição de outros itens. Em relação aos plásticos de ciclo curto, essa proporção seria maior.
A Repórter Brasil solicitou entrevista com André Passos Cordeiro, presidente-executivo da Abiquim, mas não obteve retorno.