18 Julho 2025
Responsáveis por retirar 90% do excesso de calor da atmosfera, os oceanos estão esquentando e se tornando ambientes inóspitos para várias espécies. Estudos de pesquisadores da região Sul revelam o impacto das mudanças climáticas nos ecossistemas marinhos e como elas alteram a pesca.
A reportagem é de Ricardo Romanoff, publicada por Matinal, 16-07-2025.
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A combinação de ondas de calor, águas mais ácidas e escassez de clorofila se tornou mais frequente em regiões do Oceano Atlântico próximas às costas do Brasil e da África. Esses eventos triplos, sem registros entre 1999 e 2008, passaram a ocorrer a partir de 2009 com potencial devastador para os ecossistemas marinhos e a pesca, conforme estudo publicado em abril na revista Nature Communications.
Em entrevista à Climática, a oceanógrafa Regina Rodrigues, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), destaca o papel crucial para o equilíbrio do clima desempenhado pelos oceanos, responsáveis por absorver cerca de 30% das emissões de CO2 e 90% do excesso de calor da atmosfera.
“Esses dois dados são importantes e desconhecidos de muitas pessoas. Se os oceanos não absorvessem todo esse calor e dióxido de carbono, a temperatura global da atmosfera estaria muito maior e seria impossível vivermos na Terra”, explica a pesquisadora, doutora em oceanografia física e líder do estudo.
A acidificação das águas, um dos três fatores analisados, decorre da captura das emissões de CO2 oriundas da atividade humana, que cresceram sobretudo a partir de meados do século 20. “O pH da água é muito estável, mesmo em períodos glaciais e interglaciais. A acidificação atual não tem precedentes nos últimos 300 milhões de anos”, ressalta Rodrigues.
Já o aquecimento dos oceanos reduz a quantidade de oxigênio e os nutrientes essenciais para a base da cadeia alimentar. “A maioria dos organismos marinhos são de sangue frio, ou seja, não têm autorregulação de temperatura interna como os mamíferos e são muito vulneráveis às variações de temperatura”, explica a pesquisadora.
A elevação da temperatura provoca o branqueamento de corais, prejuízos na reprodução e no crescimento dos organismos – incluindo aumento na mortalidade – e a migração de espécies que buscam águas mais frias. O quadro de ondas de calor e acidificação se agrava quando há baixa concentração de clorofila, terceiro fator investigado pela pesquisa, indicativo da redução do fitoplâncton que alimenta os organismos marinhos.
O combo onda de calor, acidificação e escassez de clorofila persistiu ao longo de 17 a 49 meses em áreas que variaram entre 4% e 18% das regiões investigadas, ocorrendo anualmente desde 2016. A adaptação dos organismos a esse conjunto de alterações é dificultada pelo ritmo acelerado das mudanças climáticas. “É um combinado desastroso para os ecossistemas marinhos que aumentou significativamente no Atlântico Sul”, diz Rodrigues.
Os dados abrangem seis regiões. Do lado brasileiro, o Atlântico Equatorial Ocidental e Subtropical e a Confluência Brasil–Malvinas. Do lado africano, o Atlântico Equatorial Oriental, a Frente de Angola e o Vazamento das Agulhas.
A pesquisadora destaca ainda que o aumento da frequência e intensidade dos eventos nessas regiões tem o potencial de impactar ambientes terrestres. À medida que as águas aquecem, pode ocorrer um processo de retroalimentação a partir dos oceanos. Isto é, mares mais quentes elevam a temperatura e a umidade da atmosfera, favorecendo eventos extremos como ciclones, furacões e tempestades.
Os efeitos do aquecimento oceânico na fauna marinha foram objeto de outro estudo, também publicado pela Nature Communications, dos professores José Angel Alvarez Perez e Rodrigo Sant’Ana, da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). A pesquisa foi feita com base em mais de 29 mil viagens de pesca industrial no Atlântico que desembarcaram nos portos de Itajaí e Navegantes, ambos em Santa Catarina, entre 2000 e 2019.
Foi observada uma associação entre o aumento das temperaturas no fundo do Atlântico e correntes vindas de regiões mais quentes em direção ao sul com mudanças nas comunidades de peixes, crustáceos e moluscos que vivem no fundo ou próximo ao fundo do oceano junto à Margem Meridional Brasileira, vizinha das regiões Sudeste e Sul do país, entre o Espírito Santo e o Rio Grande do Sul, onde ocorreu a atividade pesqueira analisada.
O estudo revela que, a partir de 2012, houve um aumento progressivo de espécies que preferem águas quentes – como corvina e camarão-rosa, entre outras – e redução na captura de espécies de águas mais frias – como a castanha e a merluza. “Chamamos esse processo de tropicalização da região subtropical”, disse Perez em entrevista à Climática, explicando que a pesca multiespécie da região de transição entre temperaturas quentes e frias serve de indicador das alterações que ocorrem no oceano.
Entre 2009 e 2012, os desembarques revelavam uma proporção de 1,5 espécie de água quente para cada uma de água fria. Em 2019, a relação entre elas quase triplicou: foram pescados 4,1 de águas quentes para cada espécie de água fria capturada. Perez observa que dados de anos mais recentes, não publicados no estudo, seguem corroborando as constatações das primeiras duas décadas de análise. Além disso, uma pesquisa de referência realizada na Zona de Pesca Comum Argentina-Uruguaia, onde as águas são mais frias que no litoral brasileiro, indica um processo similar de mudança na composição das espécies.
A região do Atlântico que banha as costas das regiões Sudeste e Sul do Brasil é um dos pontos mais críticos de aquecimento oceânico do planeta. “Essas anomalias foram produzidas por um deslocamento em direção aos polos dos padrões de vento sobre o Atlântico Sul, levando a uma expansão para o sul das águas quentes da Corrente do Brasil, que criou, nas últimas décadas, uma região de aquecimento ao longo de seu caminho”, explicam Perez e Sant’Ana.
“Em diferentes escalas espaciais, espera-se que alterações na diversidade e funções das espécies perturbem o funcionamento dos ecossistemas marinhos e os serviços que eles fornecem à sociedade, incluindo a pesca”, completam.
A Margem Meridional Brasileira é a região de maior produção pesqueira do país, respondendo por 57% do total nacional entre 2000 e 2015, informa o relatório A pesca demersal nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, organizado por Perez e Sant’Ana. Houve um aumento contínuo dos desembarques de pescado entre as décadas de 1960 e 2000, alcançando mais de 100 mil toneladas em um único ano e permanecendo entre 75 mil e 90 mil toneladas nos anos 2010. A partir de 2011, houve declínio e, em 2019, os desembarques não chegaram a 35 mil toneladas anuais.
A queda reflete uma tendência global: nas últimas três décadas, entre 40% e 50% do suprimento de pescado está estagnado ou em declínio, devido a regimes insustentáveis de pesca e a alterações como o aquecimento e acidificação das águas. A sobrepesca e as mudanças climáticas, aliadas a outros fatores, como a poluição, produzem uma “tempestade perfeita” em termos de segurança alimentar e no setor pesqueiro.
Segundo a Organização da ONU para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2019 a demanda proteica mundial era suprida em 7% pelo pescado – taxa igual ou superior à de aves, porcos ou gado bovino. Com a perspectiva de a população mundial ultrapassar os 9 bilhões de pessoas até 2050, seria necessário aumentar a produção de pescado em cerca de 50%. Além disso, a pesca é responsável por aproximadamente 520 milhões de empregos diretos e indiretos no mundo todo.
As pesquisas recentes sinalizam que o setor da pesca terá que se adaptar à disponibilidade dos estoques e às regiões onde ocorrem as capturas, exigindo medidas de gestão pesqueira, inclusive transnacionais, relacionadas a objetivos ecológicos e econômicos. Na visão de Perez e outros especialistas que assinam o artigo “Uma proposta de reforma da gestão da pesca demersal no Sudeste e Sul do Brasil”, a Margem Meridional Brasileira exige um “manejo pesqueiro baseado no ecossistema”.
Diferentemente do modelo que se consolidou a partir dos anos 1960, com foco em espécies-alvo, sustentabilidade das capturas e benefícios econômicos, esse tipo de manejo leva em conta padrões espaciais e temporais dos estoques, das frotas pesqueiras e dos ecossistemas, incluindo as interações com atividades humanas, para conciliar a atividade pesqueira com objetivos de conservação – o detalhamento da proposta pode ser consultado aqui.
Os possíveis cenários futuros descritos pelos pesquisadores variam conforme as técnicas e objetivos da pesca, dependendo ainda das medidas de gestão pesqueira que sejam adotadas no contexto de emergência climática. Embora parte da atividade possa se beneficiar de espécies de água quente mais abundantes em suas áreas de atuação, o aumento desse tipo de captura pode se revelar ecologicamente insustentável ou gerar conflitos relacionados ao aumento da competição por espaços entre diferentes atores do setor.
Em outros casos, a atividade pode se tornar inviável devido à migração de espécies para regiões de águas mais frias. Os pesquisadores citam como exemplo a pesca da corvina argentina no litoral da região Sul do Brasil, onde a persistência do aquecimento das águas pode fazer com que a espécie desapareça, preferindo latitudes mais próximas da Antártica.
“A questão é saber como a atividade produtiva vai se organizar diante das oportunidades dessa biodiversidade, mas não temos nem ideia de um certo nível de desdobramento dos problemas costeiros que podem acontecer. É uma situação bastante preocupante”, afirma Perez.
Para a professora Regina Rodrigues, a conservação dos ecossistemas é fundamental para mitigar os efeitos da emergência climática, bem como o desenvolvimento de modelos de previsão dos eventos extremos nos oceanos, em paralelo à redução rápida das emissões de gases de efeito estufa. “Precisamos lutar para zerar as emissões, com medidas como a transição para energias limpas e a redução do desmatamento, mas ainda haveria muito calor nos oceanos, mesmo que zerássemos as emissões agora. Enquanto isso não ocorre, devemos preservar os ecossistemas marinhos que estão sob pressão.”