01 Julho 2025
Por décadas, a região Norte foi sinônimo de fronteira, de destino, de abrigo para quem buscava novas terras e oportunidades. Era o ponto de chegada de muitos, um polo de atração que historicamente recebia mais gente do que enviava para outras localidades. Mas o Censo 2022 traz uma novidade: pela primeira vez desde 1991, a Amazônia registra um saldo migratório negativo em relação ao fluxo nacional.
A reportagem é de Eduardo Nunomura e Nicoly Ambrosio, publicada por Amazônia Real, 27-06-2025.
Aproximadamente 432 mil pessoas da região Norte fizeram as malas e partiram para outras partes do Brasil entre 2017 e 2022. Já o fluxo de chegada, dos que decidiram partir rumo à região amazônica, foi menor: cerca de 231 mil imigrantes. O “déficit” de 201 mil pessoas é uma reversão no padrão regional. A Amazônia, agora, mais envia do que recebe gente.
Se antes gaúchos, paranaenses e catarinenses partiam rumo ao Centro-Oeste e continuavam subindo até o Norte, fazendo avançar a fronteira agrícola, a diáspora nortista passa a chamar a atenção. O Censo 2022 detectou que cerca de 129 mil pessoas vindas do Norte escolheram a região Sul para recomeçar suas vidas. No último levantamento censitário, esse número não passava de 22 mil indivíduos. Estados como Acre e Amapá já exibem taxas negativas nessa balança migratória – apenas o Tocantins se preserva como terra de chegada na região amazônica.
A desaceleração econômica, com atividade econômicas atrativas para as migrações perdendo fôlego (como a mineração, o agronegócio em algumas áreas ou a própria Zona Franca de Manaus), a busca por qualidade de vida em outras paragens, e até mudanças climáticas (que têm se tornado mais recorrentes e impactantes nos últimos anos) podem estar por trás dessa reversão da migração.
Em 2022, 14,3% da população brasileira vivia em um Estado (Unidade da Federação) diferente daquele de onde nasceu. Mas há uma nova dinâmica em curso. Essa movimentação migratória do Norte segue um padrão já iniciado em grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro. Os dois maiores Estados brasileiros também constataram um inédito escoamento de parte de sua população. Já Minas Gerais e Paraná se tornaram atrativos para quem está de mudança.
Uma distinção nesse mosaico de fluxos populacionais da região Norte é a migração intrarregional. Ela sempre foi forte, com paraenses partindo para o Amapá (78,3% de seus migrantes vêm do Pará) ou amazonenses e rondonienses indo para o Acre, por exemplo. Mas agora a interconectividade ganha novos vetores:
A região Norte é a maior do Brasil em área e a menos populosa – portanto, com a menor densidade demográfica. A presença de grandes rios, como o Amazonas e seus afluentes, molda as rotas de transporte, de comunicação e de migração, já que a mobilidade entre Estados vizinhos é possível.
No geral, houve uma redução de migrantes nascidos em outras regiões (principalmente de nordestinos e sudestinos) entre 2010 e 2022, o que fez com que a população natural da região amazônica aumentasse de 85,1% para 87%.
A história migratória do Norte ganha ainda um novo capítulo que vem de fora. Um olhar mais detido nos dados de migração internacional dos últimos Censos (de 2000 a 2022) revela a região como a principal porta de entrada para povos vizinhos, especialmente os venezuelanos. Em 2000, apenas Roraima constatava migrações vindas da Venezuela dentre todas as migrações internacionais para o Brasil. Dez anos depois, no Censo 2010, a Guiana ainda superava a Venezuela em Roraima, mas o país vizinho já estava em ascensão migratória.
A grande transformação, já detectada pela população local e agora apontada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se deu no Censo 2022. A Venezuela surge como o país de origem mais frequente para imigrantes em Rondônia, Amazonas, Roraima e Pará. No Acre e no Amapá, a Venezuela aparece como a segunda origem mais comum.
O salto da migração venezuelana é vertiginoso: de 2.869 residentes em 2010, o número disparou para 271.514 em 2022 – um aumento de quase 94 vezes em 12 anos. A comunidade portuguesa, que fez parte da origem do Brasil, encolheu 24% no mesmo período, caindo de 137.972 para 104.345 pessoas. Uma mudança que encerra a hegemonia dos portugueses no ranking de imigrantes no território brasileiro.
Os números totais de estrangeiros na região Norte impressionam: o Amazonas passou de pouco mais de 2 mil imigrantes em 2000 para mais de 35 mil em 2022; em Roraima, de 1.226 para 60.225 no mesmo período. Esse fluxo migratório, já coberto pela agência Amazônia Real desde sua fundação, tem moldado o perfil demográfico de Roraima, do Amazonas e de Estados vizinhos.
Em contraste com a dinâmica migratória, que revela uma “exportação” de sua população, a região Norte segue uma trilha particular quanto o assunto é fertilidade. Se no Brasil, a regra é as mulheres terem filhos mais tarde (o chamado “envelhecimento da curva da fecundidade”), com o pico nacional deslocando-se dos 20 a 24 anos para os 25 a 29 anos, a Amazônia se mantém fiel a um perfil mais jovem.
O Norte é a única grande região do País onde o pico da fecundidade ainda se concentra no grupo etário de 20 a 24 anos. No Sudeste e no Sul, as gestações agora se concentram entre os 25 e 34 anos. Esses números indicam uma transição demográfica mais gradual, que preserva uma base populacional com maior proporção de crianças e adolescentes.
A idade média da fecundidade no Norte, em 2022, foi de 27 anos. Entre 2000 e 2022, a região teve o menor aumento na idade média da fecundidade do País (1,2 anos).
Rayane Lacerda, de 31 anos, é mãe de três filhos, artista e moradora do bairro Compensa, na periferia de Manaus, no Amazonas. Teve seu primeiro filho aos 21, o segundo aos 24 e a caçula aos 28 — idades que espelham a concentração da fecundidade no Norte nas últimas décadas. Entre a criação dos filhos e a rotina de trabalho como comissária de serviço em um restaurante, ela também mantém o Slam Poesia AM, projeto independente voltado para o fortalecimento da cultura hip-hop e da poesia na cidade.
Seu percurso foi marcado pela maternidade ainda jovem, interrupção dos estudos universitários e divisão do tempo entre trabalho, arte e cuidado das crianças. Ela reflete com precisão o perfil das mães da Região Norte apontado pelo Censo Demográfico 2022.
A jovem artista chegou a ingressar na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no curso de Ciências Sociais, mas precisou interromper a graduação após as gestações. Uma decisão que, segundo ela, foi atravessada pela sobrevivência. “Chegou um momento da minha vida em que eu tive que escolher entre colocar comida na mesa ou estudar. Eu decidi trabalhar”, conta.
Hoje, sua rotina envolve deslocamentos e tarefas divididas com a rede de apoio que formou com familiares, para cuidar das crianças enquanto trabalha fora. Apesar disso, Rayane afirma que o tempo é escasso, especialmente para a filha mais nova, com quem só consegue passar tempo em um único dia da semana, na sua folga do trabalho.
“A questão que mais me marca em relação à maternidade sendo uma jovem periférica é a ausência. Me marca ter que abdicar do tempo com as crianças para poder não deixar faltar nada para eles”, diz.
Mesmo diante da sobrecarga, Rayane insiste em não abrir mão da sua existência para além da maternidade. “A gente se alterna entre ser mãe, ser mulher, ser poeta. A gente se vira nos 30 para não deixar faltar nada para eles [filhos], mas também para a gente ter o nosso tempo como pessoa, ser artista, trabalhar. Ser melhor no que a gente faz.”