16 Abril 2025
"Dom Bernardino amou as lutas e os compromissos do povo e da Igreja Povo de Deus no caminho ao lado dos empobrecidos. Sempre havia um abraço forte, um beijo no rosto ou na testa dos anciãos e jovens e até um carinho personalisado para as pessoas mais simples e os/as trabalhadores/as."
O artigo em homenagem a dom Angélico Sandalo Bernardino, é escrito pelo Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, PUC-SP, publicado em seu facebook, 15-05-2025.
Angélico fez sua páscoa hoje no coração da Semana Santa, aos 92,23 anos. Nosso querido dom tinha como mote episcopal a frase: Deus é amor. Dom Angélico Sândalo Bernardino completara 92 anos em 19 de janeiro. Nascera em Saltinho de Piracicaba, em 1933, em um lar de muito amor, gerado por Duilio e Catarina. Conversar com dom Angélico me transportava aos tempos de Santo Agostinho, e me via ouvindo o teólogo da graça em suas Confissões, livro X, 6: “Mas, que amo eu quando te amo? Não uma beleza corporal ou uma graça transitória, nem o esplendor da luz, tão cara a meus olhos, nem as doces melodias de variadas cantilenas, nem o suave odor das flores, dos unguentos, dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão suscetíveis às carícias carnais. Nada disso eu amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo a luz, a voz, o perfume, o alimento e o abraço, quando amo o meu Deus: a luz, a voz, o odor, o alimento, o abraço do homem interior que habita em mim, onde para a minha alma brilha uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa uma voz que o tempo não destrói, de onde exala um perfume que o vento não dissipa, onde se saboreia uma comida que o apetite não diminui, onde se estabelece um contato que a sociedade não desfaz. Eis o que amo quando amo o meu Deus.”
Dom Angélico sempre falava com audácia carregada de amor. O amor que recebeu dos pais e das irmãs. Conhecia o amor pessoalmente. E amava e era amado. Amamos Angélico por nos ensinar a falar de pais e mães, de família, de irmãos e sobretudo de Jesus, o Nazareno. Sempre soube que além do nome angelical tinha um sobrenome de perfume: Sândalo. Ah! Vale lembrar que morou depois de aposentado no Jardim Primavera! São muitos sinais de Deus em sua vida.
Dom Bernardino amou as lutas e os compromissos do povo e da Igreja Povo de Deus no caminho ao lado dos empobrecidos. Sempre havia um abraço forte, um beijo no rosto ou na testa dos anciãos e jovens e até um carinho personalisado para as pessoas mais simples e os/as trabalhadores/as.
Aprendemos dele a colocar no centro das missas e das pastorais os últimos da cidade e da sociedade. Ninguém se sentia excluído, pois na missa e as orações de Angélico, como um outro Cristo, sempre cabiam todos e todas. Esse amor sem fronteiras nem paredes. Amor sinodal. Amor radical. Amor rizomático. Amor que construiu pontes e não se fixava insensível diante das normas e leis (mesmo aquelas dos funcionários religiosos de tantas cúrias e burocracias) que sufocavam e enrijeciam os corações. Angélico era homem livre, diante de uma criança e diante do papa de Roma. Amor em gestos e palavras com coragem, sem perder a ternura jamais. Fora do amor, ele nos dizia que não há salvação. Amamos a esperança rebelde e teimosa.
Dom Angélico sempre traz marcado a fogo a memória de profetas como dom Paulo Arns, dom Luciano Mendes, dom Helder, Frei Gorgulho, padre Toninho orionita, Santo Dias da Silva, Madre Cristina do SEDES SAPIENTIAE, Alexandre Vannuchi Leme, Madre Maurina, Manoel Fiel Filho, padre Ticão, Carlos Strabelli e tantas gentes que marcaram a sua vida já em Ribeirão Preto, depois em São Miguel Paulista, na amada Brasilândia (que ele às vezes chama de Brasalândia – o fogo de Deus), e de forma esponsal na sua Blumenau, que ele chamava sempre de sua Bela e Santa Catarina. Dom Angélico pouco falava de si.
Teria feito terapia para evitar o narcisismo clerical ou era dom pessoal? Seria uma reza forte mergulhando em seu interior para saber-se conhecedor de suas belezuras bem como de seus pecados e fragilidades? Creio que sempre buscou Deus nas estradas e meandros da vida, sem imposição ou arrogancia. Ao buscar Deus, Angélico não se perdia. Deus se deixa encontrar e lhe confidenciava segredos de amor. Ao falar de companheiras/os de viagem, fez a travessia nas águas do mar da vida conduzido pelo Espírito do Ressuscitado. Com ele cantei a melodia do Roberto Carlos, emocionado: Meu querido, meu velho, meu amigo! E chorei quando padre Pedro Ricardo gravou um salmo que ele declamava como poeta vigoroso. E quem não ficava pasmo ao ouvir as bem-aventuranças de Mateus?
Amamos ver em Angélico seu modo despojado de ser bispo. Papa Francisco tem um jeito de Angélico ou seria Angélico que tinha jeito de Francisco? Nenhuma atenção às pompas e títulos. Havia sempre o cuidado reverente e a emoção profunda na celebração da Eucaristia, mas sem brilhos nem lantejoulas e, sobretudo sem clericalismo narcisista de tantos clérigos emplumados. Seu cajado foi sempre o braço amigo de um padre que veio de Ribeirão Preto para cuidar das ovelhas perdidas e não permitir a sanha voraz dos lobos, do capital e dos opressores. Sua mitra foi sempre o carinho e o afago de algum operário ou mesmo trabalhadora. Seu anel foi sempre a aliança com os pobres. Dom Angélico foi ordenado bispo para viver “anzolado” com os pequeninos. A singeleza de sua presença deixava o Cristo resplandecer. Sem magia nem feitiçaria. Só a pura graça divina agindo na comunidade. Gratuitamente. Angélico sempre se entusiasmava quando falava do seu amor por Jesus. Amor apaixonado. Todo de Deus. Tocava nossos corações e mentes com a sua palavra jornalística bem burilada e direta. Não havia firulas nem meias-palavras. Não havia diversionismo nem cumplicidade com os ricos e opressores. Dom Angélico sempre foi direto ao ponto: proclamar o Evangelho a tempo e contratempo. Basta dizer que o padre Júlio Renato Lancellotti o tem como um pai espiritual, assim como dezenas de padres e leigos e religiosas pelo Brasil todinho. Angélico falava de Deus falando de corpos, de desejos, de pães, de trabalho, de caminhadas, de projetos sociais e das utopias humano-divinas.
O Cristo de Angélico foi sempre o Jesus Ressuscitado que caminhava animando-nos, encorajando-nos, alegrando-nos, desejando ser pão mastigado e tornar-se corpo de Cristo em nossa carne e em nossos corações. Por seu jeito de viver entendemos o por que de Angélico ter sido nomeado em 12/12/1974 para assumir como bispo auxiliar paulistano pelo então Papa São Paulo VI sendo criado bispo titular de Tambeae, região da Bizancena, ao norte da África. Impressiona saber quem havia sido bispo da mesma titularidade episcopal antes de Dom Angélico? Foi Santo Oscar Arnulfo Romero y Galdamez, mártir de El Salvador. Que inusitada conexão amorosa ser Angélico o imediato sucessor do bispo mártir da América Latina! Escolhido pelo cardeal para ser seu bispo auxiliar na Zona Leste e depois na Brasilândia onde ele deixou plantado seu coração. Só o amor explica! Nem Freud conseguiria. Enigma celeste providencial! Na catedral da Sé foi sagrado bispo em 25/01/1975 na festa da cidade. Dupla festa. Ele tinha 42 anos. Ficou em São Paulo até completar 67,2 anos.
Recordo sua presença profética do ano 2000 até 2009 como bispo de Blumenau, SC. Resignou com 76 anos. Pode participar da IV Conferência Geral do Episcopado da América Latina em Santo Domingo, Rep. Dominicana em 1992; participou do Sínodo Especial das Américas, em Roma em 1997; participou da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina em Aparecida, Brasil, em 2007. Foi apoio crucial para apoiar a Madre Maurina, torturada pela ditadura. Acompanhou com coragem a luta para punir os assassinos do operário cristão Santo Dias da Silva e do jovem geólogo da USP Alexandre Vannuchi Leme, morto pelos torturadores do DOICODI em São Paulo. Foi redator do corajoso jornal O São Paulo no enfrentamento da ditadura e da censura. Soubemos amar nosso amigo e irmão Angélico ao final de sua vida com as imensas fragilidades, internações frequentes e dramáticas operações no Hospital Santa Catarina, sempre acompanhado da irmã Carmen Julieta e do seu fiel escudeiro padre Toninho. Tantas dores e tantas ofertas a Deus, mas ele sempre trocava seu coração pelo Coração de Jesus.
Amamos Angélico por essa sua personalidade amorosa, por seu carisma e audácia jornalísticos, pela clareza política e, sobretudo pela leveza espiritual.
Amamos Angélico por seu amor radical a Jesus. Amamos Angélico por seu amor ecumênico à Igreja de Jesus. Amamos Angélico por que esse amor nos conecta com o Deus Abbá-papaizinho, fonte de compaixão. Amamos Angélico, pois ele caminhou ao lado do papa Francisco com a convicção fraterna de um novo modo de ser Igreja missionária e sinodal. Amamos Angélico pois acreditava nos leigos e nas mulheres. Graças a Deus sentimos esse perfume do bispo Sândalo fazendo-nos inspirar o perfume de Cristo na unção da Graça Divina. Quem não sente o perfume de Jesus na companhia de Angélico? Angélico com uma bateria carregada em mil volts divinos fará falta! Damos graças a Deus por sua fecunda vida de 92 anos a serviço do Reino no seguimento de Jesus. Foram 65 anos como presbítero e 50 como bispo católico. Ficaremos com o refrão que sempre brotava de seus lábios: “Esperança sempre! ado. ado. ado. Muito Obrigado”.
Tenho o coração despedaçado, mas nessa Semana Santa, confio que Jesus fará a reparação interior de tantos de nós para nos encontrar ressuscitados no domingo.
Feliz passagem, Angélico amado. Feliz salto pascal nos braços do Amor do teu Amado Paizinho. Fique com Deus. Interceda pelo povo que tanto amaste, aqui em Sampa e na tua bela e Santa Catarina, nas terras floridas de Blumenau. Viele Danke.
Angélico (de óculos) com familiares (da esquerda para a direita): Lilian, Ernesta, Maria, Duílio, Antonio, Catarina, Inês e Irene (está ausente a irmã Cecília) | Foto: Acervo Pessoal
Com o Dalai Lama | Foto: Acervo Pessoal
Com o amigo Leornardo Boff | Foto: Acervo Pessoal
Com Paulo Freire | Foto: Acervo Pessoal