11 Abril 2025
Assassinos infantis, mostra série, surgem também em ambientes “normais”. Jamie – como seu pai – é fruto de ideais de masculinidade massacrantes, que destroem suas vidas e a de tantas mulheres. O remédio não é individual: está na construção coletiva organizada.
O artigo é de Leandro Modolo e Alexandre Pinto, publicado por Outras Palavras, 08-04-2025.
Leandro Modolo é sociólogo da saúde, doutorando em Saúde Coletiva na Unicamp, pesquisador da Fiocruz, cofundador da Estratégia Latino-americana em Inteligência Artificial (ELA-IA) e pai da Nina.
Alexandre Pinto é doutorando em Sociologia/Unicamp. Pesquisa Economia dos dados e Capitalismo Contemporâneo. E é membro do Núcleo de Estudos em Economia, Tecnologia e Sociedade (NETS).
Muitos de nós já ouvimos um ditado antigo “Se para trazer uma criança ao mundo basta dois, para nutri-la é preciso toda uma aldeia”. Essa nos parece ser a ideia força que atravessa toda a série Adolescência (Netflix). O produtor, roteirista e o pai na série, Stephen Graham, disse ao portal britânico Independent: “Quem é o culpado? Quem é responsável? Talvez sejamos todos responsáveis pela família, escola, sociedade, comunidade, meio ambiente”. Não por coincidência, atualmente talvez estejamos em um dos momentos mais críticos na história moderna quanto a confiança de que nossas instituições – que criamos para formar os novos cidadãos e cidadãs – estão de fato correspondendo às nossas expectativas ao nutrir nossas crianças e adolescentes.
Simbolicamente essa crise tem uma data de nascimento. Logo após as eleições gerais 1987 do Reino Unido, a vitoriosa pela terceira vez Margaret Thatcher disse à revista Woman’s Own: “quem é a sociedade? Não existe tal coisa! Existem homens e mulheres individuais e famílias”. Donde todos que lembram dessa famosa frase devem lembrar também do começo da fala de Thatcher: “Eu acho que passamos por um período em que muitas crianças e pessoas foram dadas a entender ‘Eu tenho um problema, e é o trabalho do governo lidar com isso!’ (…) e então estão lançando seus problemas na sociedade”.
Depois de décadas, a fala da “Dama de Ferro” se tornou realidade. As sociedades neoliberais são coleções de indivíduos e famílias que na maior parte do tempo só se encontram, só estabelecem laços sociais, mediante a troca de mercadorias, dinheiro, partilha de bens… Mas, a concepção expressa por tais discurso não é só uma defesa ideológica da soberania do indivíduo frente ao coletivo, do individualismo como modo de vida; ela também implica em uma determinada compreensão – enraizada na cultura atual – de como olhamos para os nossos problemas e a que(m) endereçamos as responsabilidades. Inclusive a saúde das nossas crianças e adolescentes.
Na última cena da série, o pai de Jamie termina dizendo: “Me desculpe, filho. Eu devia ter feito mais!”. Não seria por menos, pessoalmente há sempre algo que nos foge e que, sobretudo, quando voltamos os olhos para o passado, aparece retroativamente como uma falta, um vacilo, um déficit. É sempre assim.
Acontece que a família de Jamie é o que entendemos como “normal”, nem mais nem menos do que imaginamos. Uma família na luta por levar a vida dentro do que lhe foi dado como possível, e sobreviver de modo alegre, na medida das circunstâncias. Mesmo Eddie, o pai do menino, de quem esperamos a raiz da violência contra mulheres, não é uma “caricatura” do homem bruto, agressivo, etc. Ele se esforça para ser um bom pai, mas tem enorme dificuldades para lidar com seus sentimentos. Gostaria de estar mais presente, mas o trabalho toma todo seu tempo. É muito carinhoso com sua companheira, mas no geral não tem amigas mulheres. É calmo e compreensivo, mas ao se sentir ameaçado se fecha, se irrita, tem explosões de raiva. Em suma, Eddie é um homem “normal”.
Reside aí, ao nosso entender, a grande força reflexiva da série. Embora estejamos habituados a facilmente condenarmos o pai, a família, a escola, o bullying, as redes… Ou a rapidamente taxarmos o agressor com um diagnóstico médico x ou y… A série nos força a não cair na visão de Thatcher, a não jogar o peso do problema em uma “falha” ou “desvio” particular. Claro que Jamie cometeu uma atrocidade, e ele é responsável por ela. Mas, como sabemos, ele não é um caso isolado. Assim como ele diversos meninos e homens violentam, agridem ou assassinam meninas e mulheres, diariamente [1]. Então, sempre que tentamos dar uma resposta que aponta para apenas uma causa, que individualiza o problema, a narrativa expõe outras contradições, e não permite que sejamos conclusivos – pois de fato não há soluções nessa ordem dos fatos.
Jamie foi socializado como um homem “normal” e, mesmo assim, cometeu um crime bárbaro. É isso que nos dilacera vendo os episódios: como nossa “normalidade” produz algo que buscamos evitar. A socialização de Jamie, do seu pai, dos seus amigos, do detetive etc., destes que aqui escrevem, de todos nós, é baseada na construção da masculinidade. Através dela aprendemos, desde pequenos e ao longo da vida, os comportamentos necessários para “ser homem”. Parafraseando a conhecida frase de Simone de Beauvoir: “Não se nasce homem, torna-se homem”. Jamie aprendeu, como nós homens aprendemos, que ele deveria corresponder aos atributos da masculinidade: ser assertivo, forte, racional, decidido, orgulhoso, aventureiro, dominador, frio, seguro, autossuficiente, etc. Enquanto homem, portanto, ele é assombrado, mais ou menos frequentemente, pela necessidade de corresponder a essas expectativas.
O resultado é que, tal como o seu pai, Jamie é cheio de contradições e conflitos internos. É inseguro com relação a sua aparência, como acontece com vários homens. Sofre violência na escola, mas tem um grupo de amigos, e com eles também “produz” violências. Não frequenta grupos misóginos de “incels” na internet, mas também não tem amigas mulheres, só respeita a autoridade de figuras masculinas, consome pornografia e posta fotos de modelos no Instagram. Acha que o colega (Fidget) foi “idiota” por espalhar os nudes da Katie, mas não acha que ele errou por expor ela, e sim porque não receberia mais fotos, de outras meninas. Como o pai, também tem enorme dificuldade de falar de seus sentimentos e vulnerabilidades. Sofre ao entender que não atende às expectativas do pai com relação aos esportes; ou ao pensar que não é bonito o bastante para ser desejado pelas mulheres. Se irrita, fica agressivo e explode quando se sente frustrado, ameaçado, frequentemente recorrendo a violência.
Na estrutura social do gênero binário, essa masculinidade que ensina Jamie o que é “ser homem” coexiste com o seu “complemento”, a feminilidade, cujos atributos definem o que as mulheres devem ser: sensíveis, emotivas, delicadas, submissas, fiéis, castas, generosas, carinhosas, inseguras, carentes, inocentes, etc. Na própria formação dos “papéis de gênero” eles são “complementares” porque são construídos com base no pressuposto de que se relacionam entre si para formar uma unidade familiar.
Por isso a formação desse “sistema de gênero” já supõe a “heterossexualidade compulsória”, excluindo outras formas de sexualidade. Além disso, a relação que se estabelece entre eles não é uma relação de igualdade. Porque as próprias características dos “papéis de gênero” – que se materializam através de práticas sociais concretas – já estabelecem que há aí uma relação de dominação, a dominação masculina. A mulher deve ser “insegura” para que o homem garanta sua segurança, proteção. Deve ser frágil para que ele seja forte, deve ser emotiva para que ele seja racional, e por aí vai.
Por isso que, para Jamie, a rejeição por parte de uma mulher aparece sempre como insuportável. É como se ele não conseguisse se adequar àquilo que ele aprendeu que deve ser. A mera insinuação de que a psicóloga desaprova seu comportamento o deixa furioso, de um jeito que ele não fica com o pai, ou com o detetive. Quando descobrimos que foi a rejeição de Katie o gatilho para o menino lhe desferir diversas facadas, novamente isso fica evidente.
A dominação masculina reveste a estrutura do gênero binário das sociedades em que vivemos. É ela que reafirma, por diferentes caminhos, que aprender a “ser homem” é também aprender a rebaixar as mulheres, a desconsiderá-las, a entender que elas não são iguais, e que elas devem ser subalternizadas. Por isso, quando elas não se submetem, aquele que aprendeu a “ser homem” se acha no direito de manipulá-las, ofendê-las, odiá-las… e até matá-las. A misoginia é produto “normal” dessa ordem de coisas. Perpassa todos os homens, com maior ou menor intensidade, a depender de seus conflitos particulares.
Hoje, é verdade, há mais espaço para se questionar o que significa “ser homem”, e deixar de reproduzir certos traços da masculinidade. Para além disso, muitas pessoas também constroem formas próprias, no âmbito da sua “identidade de gênero”, misturando e reorganizando os atributos dos papéis de gênero, e concretamente apontando para possibilidades de organização do gênero emancipadoras.
Todavia, essa atuação no âmbito da performance, que geralmente acontece no nível individual – ou de alguns coletivos –, é insuficiente frente à forma social geral do gênero. Porque o gênero só existe e se reproduz em articulação com outras formas sociais. Se pensarmos nos processos de socialização, na divisão do trabalho, na reprodução social, na organização jurídico-política, na produção simbólica etc.; todos esses âmbitos reafirmam e valorizam – direta ou indiretamente – a estrutura binária do gênero sobre o crivo da dominação masculina. Por isso é importante conceber o gênero em sua conexão com outras formas sócio-históricas de instituição do poder econômico, político e social.
Isso fica claro quando olhamos para a família. Na formação do capitalismo a reorganização das relações de produção é concomitante com mudanças nas relações sociais. Como nos lembra Silvia Federici, o processo de subordinação das mulheres envolveu sua exclusão dos espaços de poder e decisão, e seu confinamento ao âmbito privado do lar, onde passa a ser responsável pela reprodução e criação dos filhos e pela organização dos cuidados domésticos. Nesse processo, a forma familiar se altera, fragmentando os vínculos familiares estendidos de antigamente, e constituindo a típica “família nuclear burguesa”. Nesta, a unidade familiar reposiciona a dominação masculina em outra instância. O “poder do macho” se transforma no “poder do pai”, no poder do “patriarca”.
Mas o poder do patriarca não é exercido somente no interior da unidade familiar. Na medida em que as mulheres ficam restritas ao espaço privado, são os homens que formam e organizam o poder político, são suas atividades econômicas que constituem o poder econômico, e suas ideias e concepções que estruturam o poder simbólico. Isso só acontece porque as mulheres dão base para todas essas ações, mas em posição subordinada. O que conduz ao seu apagamento e sua contínua exclusão da “ordem dos homens”. A ordem patriarcal de gênero é uma das formas que unifica a sociedade, como Patriarcado.
O último capítulo da série nos coloca em prantos porque mostra a impotência da mãe e do pai do menino para explicar como seu filho pôde fazer isso. A injunção central da séria se cristaliza: “O que fizemos de errado?”, eles se perguntam. No geral, eles não fizeram nada de errado! Justamente porque família nenhuma tem controle sobre elementos sociais tão amplos. Por todos os lados as crianças, os jovens e os adultos se deparam com situações que valorizam os atributos da masculinidade, e onde o poder da dominação masculina apresenta-se como o comportamento correto, desejado e aspirado.
Mesmo que no âmbito familiar seus cuidadores desde cedo explicassem para Jamie uma visão crítica dessa masculinidade, o menino ainda seria empurrado para ela nas relações que vão além da família. Se, ainda assim, ele seguisse esse caminho de perseguir uma “masculinidade desconstruída” – como muitos homens fazem hoje em dia, analisando os próprios comportamentos e buscando modificá-los –, nunca deixaria de estar em contradição entre: desejar atender as expectativas de “ser homem” e reprimir tais impulsos conscientemente, sempre à espreita de um ato machista.
Claro que isso é o mínimo que devemos exigir de todos os homens! Mas é preciso ter consciência de que há um limite em colocar a questão nos termos da crítica da “masculinidade tóxica”. Porque ela supõe que existe uma “masculinidade não-tóxica”, e assim transforma o privilégio masculino numa mera questão de “boa vontade” individual, desconsiderando que o Patriarcado se reproduz justamente porque se articula com as demais formas de dominação e exploração social.
No debate público, por exemplo, ecoa mais uma vez a “vilã” que agora é responsável por todos os males dos nossos tempos: as redes sociais. Tudo se passa como se as redes sociais fossem um ambiente totalmente diferente de todos os outros ambientes que cercam os adolescentes. Seriam elas responsáveis por ensinar os meninos a serem mais agressivos com as mulheres. Ou estariam expondo-os às influências perversas, que os corrompem e os fazem cometer esses atos medonhos. Como se fossem vírus externos e estranhos a um corpo social sadio. Desse “diagnóstico” decorrem as “saídas” equivocadas de internalizar o problema para a família e atribuir toda responsabilidade individual aos pais, pautando a questão no âmbito da vigilância sobre o uso que os adolescentes fazem das redes – reforçando as paralisias que nos assolam, oriundas dos medos, pânicos e paranoias.
Isso nos parece ser um grande equívoco! A “masculinidade” que aparece nas redes é exatamente a mesma que aparece nos filmes, nas séries, nas músicas, nas famílias, nas barbearias, nas confraternizações da igreja, nas propagandas da TV, nos locais de trabalho, nos churrascos de família, nos jogos de futebol, nas escolas, nos bares etc. Na vida concreta, a ordem correta dos fatores é inversa: por essa masculinidade existir e constituir a vida social diariamente é que se torna possível a ela ser expressa nas redes.
Portanto, novamente surge a questão que colocamos no início do texto: a quem endereçar esse problema? Como responder a ele em termos práticos, mas para além do âmbito individual? Como dissemos, a visão de mundo neoliberal de Thatcher não implica apenas em uma defesa do individualismo como modo de vida. Implica também que todas as respostas que damos aos nossos problemas devem ser feitas no nível individual ou familiar, reduzindo o peso que as estruturas políticas, econômicas e sociais têm na formação deles. Não é à toa que Thatcher defendia isso. Porque se identificarmos o problema no nível do modo de vida das nossas sociedades, a resposta precisará ser uma resposta política – coletivamente organizada – às formas como construímos nossas relações em todos espaços sociais e instituições, seja nas redes – com a urgente regulação – seja fora delas. Só assim deixaremos de produzir esse tipo de resultado e, sobretudo, de normalizá-lo.
Nem Jamie e nem seu pai estão sozinhos. Precisamos, portanto, ter em conta que o que aparece como uma falta e se desdobra no feminicídio somos nós mesmos. É esse “Nós” que já chamamos outrora de horda, tribo, comunidade, e que mais recentemente passamos a denominar de “sociedade” que é a responsável. É ela que leva a marca da ordem patriarcal de gênero. E é quem precisa passar por uma brutal transformação, se quisermos de fato resolver tais problemas e salvarmos as “Katies” diárias. A sociedade é o remetente e destinatário de problemas como esses. Nossa responsabilidade como pais, filhos, irmãos, namorados, maridos etc., em suma, como homens, é lutar politicamente para destruir o Patriarcado, em nós mesmos e na sociedade. Por isso, quando olhamos para o passado, nos cobrando sobre o que poderíamos ter feito a mais, devemos responder no presente, apontando para o futuro, que uma sociedade saudável é uma sociedade onde não exista a dominação masculina.
[1] Para ficarmos apenas no Brasil, no ano passado, três em cada dez brasileiras com mais de 16 anos relataram ter sofrido algum tipo de agressão – física, verbal ou psicológica. E 1.450 mulheres foram vítimas de feminicídio – uma média de 4 por dia.