Liberdade, no mundo mediado por redes (anti)sociais, se transformou em culto à autocracia, obscurantismo e compromisso com os mais baixos valores sociais
Há cem anos Adolf Hitler publicou a primeira parte de Mein Kampf. No texto, repetiu mais de 170 vezes a palavra “propaganda”, que tinha o sentido de uma mentira repetida muitas vezes até que se tornasse uma “verdade”. O método, percebemos, é antigo, mas as configurações da estratégia hoje, tem suas particularidades. “As plataformas sociais favorecem, enormemente, à proliferação de valores e signos próprios do fascismo. Claro que estamos falando de um fascismo modificado, mas ainda assim um fascismo na medida em que prega o ódio ao estrangeiro, o expansionismo um pouco nacionalista, uma xenofobia em conjunto com misoginia, a lógica de expandir território e uma abordagem das relações internacionais em um tom de beligerância”, explica o professor, pesquisador e escritor premiado Eugênio Bucci, em entrevista por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Se Donald Trump e Elon Musk aparecem como o par perfeito nessa união entre política da extrema-direita e plataformas digitais, Mark Zuckerberg desponta como um terceiro elemento deste casamento radical. “Foi se tornando muito evidente que as Big Techs não são neutras em relação à escalada do autoritarismo e da autocracia com a sua fisionomia mais recente, que tem em Trump, talvez, o seu ícone mais pronunciado. O Zuckerberg prometeu uma ação internacional de obscurantismo e de combate à regulação democrática”, ressalta. “Mais do que interesses econômicos, o que as leva a fazer isso, é o fato de que a comunicação que elas põem em marcha só funciona em termos de dominância, elas só são dominantes quando a sociedade está polarizada e tomada por afetos que são a raiva, a inveja, o ressentimento, entre outros”, acrescenta.
“E a lógica das plataformas sociais e da autocracia é a eliminação dos pontos de vista discordantes, a hipertrofia da obediência e da submissão, de tal maneira que a política deixa de ser a política porque ela deixa de ser dialogada. E no lugar da política que a modernidade nos legou, vai crescendo o fanatismo onde não tem espaço para o diálogo, ele é fechado, compacto, unidirecional e disciplinado como um pelotão militar”, explica o entrevistado.
Eugênio Bucci (Foto: Reprodução/Youtube | Roda Viva)
Eugênio Bucci é professor Titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Superintendente de Comunicação Social da USP, é membro da Academia Paulista de Letras, do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, do Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog e do Conselho Editorial da revista Interesse Nacional, entre outros. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto do jornal "O Estado de S. Paulo". Em 2024, ganhou o Prêmio Jabuti Acadêmico pelo livro Incerteza, um Ensaio (Editora Autêntica, 2023). Foi professor da ESPM entre 2010 e 2014, onde dirigiu o curso de Pós-Graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, de 2011 a 2013. Foi agraciados com os prêmios Luiz Beltrão de Ciências de Comunicação, Excelência Jornalística (2011), da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Esso de Melhor Contribuição à Imprensa (2013) pela Revista de Jornalismo ESPM, o Prêmio Tese Destaque USP (2017) como orientador da melhor tese de doutorado em Ciências Sociais Aplicadas (O príncipe digital: estruturas de poder, liderança e hegemonia nas Redes Sociais, de Maíra Carneiro Bittencourt Maia).
Escreveu, entre outros livros, "O Estado de Narciso" (Companhia das Letras, 2015), "A forma bruta dos protestos" (Companhia das Letras, 2016), "Existe democracia sem verdade factual?" (Estação das Letras e Cores, 2019, finalista do Prêmio Jabuti), "A superindústria do imaginário" (Autêntica, 2021, finalista do Prêmio Jabuti) e "Incerteza, um ensaio" (Autêntica, 2023, ganhador do Prêmio Jabuti Acadêmico). Seu trabalho recebeu um longo ensaio publicado na Alemanha, escrito por Thomás Zicman de Barros, com o título de "'It's All a Matter of Image!': Aesthetics and Radical Democracy in the Yellow Vests Movement, or in Praise of Eugênio Bucci".
IHU – Até que ponto podemos atualizar a frase de Clausewitz, afirmando que "A guerra é a continuação da política por outros meios", pensando-a no seguinte sentido: “As redes sociais são o fascismo por outros meios”?
Eugênio Bucci – Eu gostaria de comentar essa pergunta na seguinte perspectiva: a ideia de que a guerra é a continuação política por outros meios já foi, tempos atrás, invertida pela estratégia das ditaduras militares, inclusive a brasileira. Isso tinha muita conexão com as mentalidades da Guerra Fria. Naquele tempo, os militares, ditadores do Brasil, faziam a política como continuação da guerra. A primeira pessoa que ouvi falar isso foi Luiz Eduardo Greenhalgh, o advogado que teve um papel importante no combate à repressão e na defesa dos perseguidos políticos nos tribunais. Ali já havia uma necessidade de repensar a frase do Clausewitz.
Agora, já se vê que as plataformas sociais favorecem, enormemente, a proliferação de valores e signos próprios do fascismo. Claro que estamos falando de um fascismo modificado, mas ainda assim um fascismo na medida em que prega o ódio ao estrangeiro, o expansionismo um pouco nacionalista, uma xenofobia em conjunto com misoginia, a lógica de expandir território e uma abordagem das relações internacionais em um tom de beligerância. E o caldo de cultura para todas essas características é o ódio, a repulsa a qualquer reflexão ou pensamento. Um universo muito carregado de certezas, certezas raivosas. Isso é um ambiente muito parecido com o que nós vimos no século passado no fascismo e no nazismo.
Por isso, tenho trabalhado um pouco essa abordagem de identificar ou procurar as razões para identificar uma presença um pouco soturna, um pouco mórbida do ideário fascista nas plataformas sociais dos nossos dias. Aí sim as plataformas são o prolongamento ou a continuação do fascismo por outros meios.
IHU – O que significa o casamento entre Donald Trump e Elon Musk? Que afetos conformam esse estranho (mas nem tanto) matrimônio?
Eugênio Bucci – A principal marca dessa aproximação entre Trump e Musk é uma espécie de queda da impostura ou queda da máscara. A partir daí foi se tornando muito evidente que as Big Techs não são neutras em relação à escalada do autoritarismo e da autocracia com a sua fisionomia mais recente, que tem em Trump, talvez, o seu ícone mais pronunciado.
Esse casamento, como você coloca, tem mais de dois atores. Nele, há também, o Mark Zuckerberg, que chegou a fazer um pronunciamento amplamente divulgado por ele mesmo, com uma gravação em que ele aparece com uma camisa preta, como os fascistas apareciam de camisa preta na Itália nos anos 1920, 1930, dizendo que iria, a partir da doutrina do Trump, combater os esforços de regulação das Big Techs na Europa e no mundo todo. Zuckerberg prometeu uma ação internacional de obscurantismo e de combate à regulação democrática. Ele também deixou cair a máscara, que nesse casamento já envolve três pessoas. Mas há outras pessoas aí. A máscara que cai é de neutralidade ou de imparcialidade das Big Techs. Ficou evidente que elas não são apartidárias, elas têm compromisso com o autoritarismo e estão trabalhando para construí-lo. Mais do que interesses econômicos, o que as leva a fazer isso é o fato de que a comunicação que elas põem em marcha só funciona em termos de dominância, elas só são dominantes quando a sociedade está polarizada e tomada por afetos que são a raiva, a inveja, o ressentimento, entre outros. Essa é a forma que tenho, resumidamente, de explicar o que está acontecendo.
IHU – No começo da década de 1920, Freud publicou seu ensaio A psicologia das massas e análise do Eu, que, de certo modo, adiantava aspectos culturais que seriam materializados no nazismo anos mais tarde. Quero conectar o tema com a comunicação: em que sentido as sociedades contemporâneas romperam com um comportamento de massa e em que sentido a categoria de “massa” continua válida?
Eugênio Bucci – Na minha perspectiva, as massas continuam em ação e o conceito ou a categoria de massas não perdeu sua atualidade.
É verdade que na dinâmica própria das plataformas ditas sociais – digo que “ditas sociais” porque elas são antissociais, como já antecipou Márcia Tiburi há alguns anos – há uma dinâmica em que o individualismo ganha folego, de tal maneira que as massas aparecem como multidões heterogêneas, mas isso é apenas uma aparência. Nós podemos ter variações de figurinos, de tribos, de comportamentos, mas as ferramentas de manipulação de grandes contingentes humanos, de multidões e mesmo de massas, continuam muito eficazes.
É como se a massa compacta tivesse ganhado novas páginas, novas variações, novas individualidades e novos individualismos. Mas, o comportamento geral é um comportamento de massas indistintas. Nesse sentido, a ideia de que a sociedade de massas teria sido superada por uma sociedade de pluralidades, de diversidade não é uma ideia condizente com a realidade que encontramos hoje.
A propaganda e as estratégia de manipulação ganharam novas complexidades, novas configurações, mas continuam eficazes – e talvez mais eficazes do que foram em meados do século XX. E os resultados são percebidos em toda a parte com o êxito de campanhas claramente autocráticas, antidemocráticas e opressivas, com adesão forte de multidões que embarcam em mobilizações que contrariam seus próprios interesses, seus próprios direitos. Portanto, ainda é pertinente falarmos em massas, mesmo com a exacerbação no individualismo e do narcisismo.
IHU – Mein Kampf, de Adolf Hitler, foi publicado na Alemanha há exatos 100 anos. No documentário O Fascismo de todos os dias (1965), dirigido por Mikhail Romm, há uma frase, atribuída a Hitler, que diz o seguinte: “Qualquer cabo pode ser um professor, mas não é qualquer professor que pode ser um cabo”. No Brasil vimos recentemente um grande apelo às escolas cívico-militares. Como esses dois fenômenos, separados no tempo, nos ajudam a pensar o fascismo ontem e hoje?
Eugênio Bucci – A pergunta estabelece uma proximidade entre eventos históricos separados por um século e, no meu modo de ver, tem todo o fundamento. A ideia de que a disciplina militar é mais formativa para a juventude do que o pensamento livre, a pesquisa crítica e a investigação científica e filosófica é uma ideia cara ao autoritarismo desde muito tempo, há milênios. Se pensarmos na comparação que os historiadores sempre fizeram entre Atenas e Esparta, nós encontraremos isso. Esparta era uma sociedade mais tendente à força, ao culto do físico, do corpo, e Atenas mais tendente à preparação do intelecto, da razão. Claro que Esparta tinha filosofia e Atenas seus exércitos, mas essa dualidade é antiga. Essa bifurcação de escolhas entre preparar o corpo como máquina de guerra ou preparar a razão como possibilidade de superação da escuridão, da ignorância e da infelicidade é um dilema antigo, é uma escolha ou hesitação de muito tempo atrás.
Contudo, de uns tempos para cá, há alguns séculos (e a partir do Iluminismo de forma mais marcada) isso está associado a uma escolha de fundo entre a liberdade e a disciplina, entre a crítica e a obediência, entre a postura de aprender com as novas gerações e apostar que elas resolverão problemas que nós no presente somos incapazes de enxergar e, portanto, temos que confiar nelas, na sua liberdade? E a outra postura que é a de confinar as novas gerações ao destino de reproduzir as certezas que já temos agora.
É isso que aparece na frase atribuída a Hitler no documentário O Fascismo de todos os dias, ou seja, a frase que “qualquer cabo pode ser um professor, mas não é qualquer professor que pode ser um cabo” e é isso que aparece hoje no Brasil quando alguns governantes, autoridades, acreditam que a disciplina militar é mais benéfica para as crianças e os adolescentes do que o exercício da liberdade do pensamento. Nesse sentido podemos ter uma comparação entre as duas coisas. Eu pessoalmente acredito que a frase do Hitler, que é um absurdo, ainda é tomada como verdade por muitos agentes políticos do nosso tempo.
IHU – Há uma frase popular que diz “Propaganda é alma do negócio”. Em Mein Kampf o termo, propaganda, aparece mais de 170 vezes no texto. Como Hitler compreendeu que na comunicação de massa a repetição de uma mensagem direcionada e centrada em seus objetivos era mais eficaz que a verdade? Como isso se atualiza nos dias de hoje?
Eugênio Bucci – O aparecimento das multidões, que está associado ao aparecimento das cidades com concentração de massas trabalhadoras e, por sua vez, associa-se à Revolução Industrial, deu abertura a um período histórico em que a política passou a depender mais da propaganda e da manipulação do que anteriormente. Em parte, porque as revoluções burguesas do século XVIII tornam as massas um agente político de relevo – antes disso elas estavam excluídas das decisões políticas. Em outra parte, porque o autoritarismo se beneficia do protagonismo das massas, mas sujeitando essas mesmas massas à função, sem trocadilho, de massa de manobra.
Hitler entendeu que a política se resolvia na propaganda e que a propaganda acontecia com a transformação de mentiras em verdades. Ele chega a dizer que a propaganda dos britânicos era mais eficiente do que a dos alemães na Primeira Guerra, porque repetia de forma eficiente uma mentira muitas vezes, a tal ponto que ela era tornada ou assimilada como verdade.
Estranhamente ou sintomaticamente é que o vemos acontecer em nossos dias com as campanhas que tentavam desacreditar a vacina durante a pandemia, as campanhas promovendo um vermífugo contra o contágio pela Covid, que levaram algumas empresas farmacêuticas a lucrar milhões, mas provocaram muitas mortes. Isso também ocorre em relação à desinformação sobre o aquecimento global, na difusão das teorias conspiratórias, que de teorias não têm nada, porque são crendices planas, superficiais e obscurantistas, mas que levaram esse nome de teorias conspiratórias.
Tudo isso mostra que a máxima de que repetir uma mentira com bons instrumentos de propaganda dá certo para iludir as pessoas. O autoritarismo continuou se beneficiando disso.
IHU – Um dos aspectos centrais do fascismo comunicacional, digamos assim, é a falta de mediadores capazes de regular o que é verdade e tê-la como referente ético e prático. Como isso ocorre hoje em relação às Big Techs? Por que elas se colocam radicalmente contrárias a qualquer regulação?
Eugênio Bucci – As Big Techs são um desafio para quem estuda comunicação. De um lado, elas são contra a regulação porque são contrárias a prestar contas à sociedade sobre como elas pesquisam inteligência artificial, de que dados elas dispõem sobre as pessoas e como usam esses dados para obter lucros ou ganhos políticos, partidários. As Big Techs também não querem prestar contas da forma maliciosa como elas invadem o universo infantil.
Hoje, nós temos um problema no Brasil que são crianças e adolescentes sendo escravizados pelas empresas de apostas sem que o poder público faça coisa nenhuma. Isso é anunciado em televisão e em todos os meios de comunicação de massa, em um prejuízo escancarado a céu aberto para a formação da subjetividade de crianças e adolescentes. Sobre nenhum desses assuntos as Big Techs querem prestar contas.
Nós podemos dizer de forma mais ampla que a técnica se recusa a ser regulada pela democracia, o que cria uma dualidade de poder. Essa dualidade pode ser expressa por uma pergunta: quem dará a palavra final? A técnica, que é a tecnologia e o capital ali embarcado, ou a democracia, que é a política civilizada em que a esfera pública consegue enxergar dentro das Big Techs e, portanto, fazer com que elas operem a partir de preceitos democráticos? Essa dualidade é um grande problema para a democracia hoje.
As Big Techs se recusam a se submeter às regras democráticas, a tal ponto que podem mesmo quebrar o funcionamento da democracia. É com isso que estamos lidando hoje: uma tentativa já não dissimulada, uma tentativa assumida, declarada, de simplesmente quebrar a democracia, com o apoio do capital, do poder do Estado e, claro, com o poder da técnica.
IHU – Por que, entre os atores da esfera pública, professores, jornalistas e juízes comprometidos com o Estado de Direito tendem a ser transformados em espantalhos pela extrema direita e, por isso, passam a ser objeto do discurso de fanáticos políticos?
Eugênio Bucci – Essa resposta eu poderia dá-la de forma muito sintética: a verificação dos fatos é incompatível com a ordem imposta pelas Big Techs, por suas plataformas sociais ou antissociais e pelo autoritarismo, um fascismo repaginado que tem avançado muito nos nossos dias. Essa “doutrina” depende da crença cega das massas manipuladas. Se os enunciados forem verificados empiricamente e os fatos forem checados, essa impostura não para em pé. Logo, a estruturação desse poder, que temos visto com exemplos caudalosos, precisa combater todas as instituições que verificam os fatos.
Essas instituições são a imprensa, mas também são a ciência. A ciência tem sofrido campanhas de descréditos que eu não lembro de ter visto antes. Logo, a imprensa e a ciência são vítimas de uma perseguição. É como se dissessem “o aquecimento global não é uma evidência científica, é apenas uma narrativa, uma questão de preferência, de humor, não tem nada a ver com o achado científico”.
Além da ciência e da imprensa, também sofre muitos ataques no mundo todo a instituição da justiça ou do poder judiciário, porque a aplicação da lei depende da verificação dos fatos. O que os peritos fazem é a verificação dos fatos, e um juiz para aplicar uma lei a uma circunstância de fato precisa entender e examinar os fatos. E, no plano dos fatos, aquela situação ou aquela tipificação estabelecida na lei é verificada. Portanto a justiça também é alvo de ataques, assim como as universidades.
E as artes são alvos de ataques, não porque verificam os fatos, mas porque refletem criticamente sobre o plano dos fatos. A arte é um exercício da liberdade e não um exercício da anuência, obediência ou da aceitação passiva. Logo, ela tem presença importantíssima no pensamento crítico, que aparece na verificação dos fatos. Essa virtude também é combatida por essa “doutrina”. É por essa razão que a ciência, a imprensa, a universidade, a justiça e as artes são tão atacadas recentemente. E esses ataques têm sido bem-sucedidos.
IHU – Como a extrema direita instrumentaliza as redes sociais?
Eugênio Bucci – A extrema-direita instrumentaliza as redes sociais, fundamentalmente, porque há uma simbiose entre o universo das redes sociais e a tautologia representada pela extrema-direita. As “verdades” da direita se casam muito bem com o modelo apressado, pulsional e violento com que as plataformas sociais trabalham. A “doutrina” da extrema-direita é feita de certezas e de intolerância.
A natureza da comunicação das plataformas sociais também é alimentada por certezas. Veja que as coisas são transmitidas por imagens curtas, achatadas e cheias de certezas, elas não são problematizações, não são um exercício de argumento e contra-argumento, elas são lacrações, pois não cabe o pensamento ali. Isso leva a uma crise, a um esgotamento do modelo da política democrática moderna, porque essa política se teceu de argumentos lógicos, racionais e agora isso não tem mais vez.
Não é que a emoção prevaleça, porque a emoção e os sentimentos são atributos da razão ou estão conectados à razão; a emoção faz parte da razão pelo mesmo motivo que a estética faz parte da razão. O que estamos vendo é um assassinato da razão que vem junto com o assassinato da sensibilidade. Portanto, o que resta, que tem uma forma mais ou menos emocional, é pura selvageria, isso não é exatamente emoção, sensibilidade ou sentimento, é pura selvageria; é isso que tem prevalecido.
IHU – O que significa dizer que a mídias digitais são o prolongamento da escola nazista? De que forma a política, nesse contexto, é substituída pelo fanatismo?
Eugênio Bucci – Nós temos que entender que as plataformas sociais vendem um cenário em que elas parecem dar expressão ao que as pessoas querem dizer; isso é falso, é um embuste. Porque há todo um maquinário de direcionamento, de impulsionamento, que não é nenhum pouco democrático ou respeitoso as diferenças individuais. Há, seguramente – isso já é bastante comprovado –, uma gestão, um gerenciamento do fluxo de informações. Ocorre que essa gestão e esse gerenciamento são levados a efeito por instâncias privadas e fechadas, não visíveis, não transparentes, não declaradas.
Ou seja, o fluxo de informação pelo mundo afora é regulado e direcionado por forças privadas e centralizadas. Nunca as formas de comunicação social foram tão oligopolizadas e monopolizadas como agora. E esses oligopólios e monopólios detêm um poder sem precedentes. Isso é um dos elementos que precisamos ter presente para entender o significado do que você pergunta.
Existe um controle centralizado que não presta contas a ninguém do fluxo de informações pelo mundo afora. E o que orienta essa comunicação são estímulos meramente reflexivos ou atorreflexo, que repelem qualquer forma de pensamento crítico, de exame, de reconsideração, de elaboração e de abstração. É estímulo e reação ao estímulo, apenas isso.
A comunicação em um nível comprimido e imediatista favoreceu a propaganda nazista e fascista da primeira metade do século passado, que explorava exatamente esse aspecto. Mas essa exploração era feita por meio do rádio e pelo cinema, agora a exploração é por meio das plataformas digitais. Mas os princípios que levaram à expansão do nazismo e do fascismo continuam válidos no dia de hoje.
IHU – Quando seremos capazes de virar a página do Mein Kampf?
Eugênio Bucci – O Mein Kampf é um fenômeno intrigante, porque o Terceiro Reich foi proclamado com a promessa de durar mil anos, como o fanatismo já durou cem anos.
Eu aproveito para retomar a ampliar uma parte de uma pergunta anterior. O fanatismo substitui a política porque na modernidade a política da democracia é uma política do diálogo, do argumento, do contra-argumento, da razão, do entendimento, mesmo na discordância há a preservação de espaços para pontos de vista distintos, que podem coexistir mesmo sendo diferentes. E a lógica das plataformas sociais e da autocracia é a eliminação dos pontos de vista discordantes, a hipertrofia da obediência e da submissão, de tal maneira que a política deixa de ser a política porque ela deixa de ser dialogada. E no lugar da política que a modernidade nos legou, vai crescendo o fanatismo sem espaço para o diálogo, fechado, compacto, unidirecional e disciplinado como um pelotão militar. À medida que a política vai enfraquecendo e o fanatismo se fortalecendo, deixamos de ter um mundo em que a política seja possível. É nisso que Donald Trump está apostando e levando a melhor.
Quando vamos virar a página é difícil de saber, mas a única esperança, o único veio possível, passa pelo exercício da política e pelo fortalecimento das instituições democráticas. É por isso que hoje se deposita alguma confiança nas instituições da democracia dos Estados Unidos para frear os arroubos de Donald Trump, essas loucuras em escala que ele vem implementando. O único caminho é a política democrática.
IHU – O senhor poderia nos contar do que trata a obra, Incerteza, um ensaio (Grupo Autêntica, 2023), vencedora do Prêmio Jabuti Acadêmico 2024?
Eugênio Bucci – Como pensamos a ideia que nos desorienta e orienta o mundo digital? Ou seja, a ideia da incerteza é sempre assustadora para qualquer pessoa: ela não sabe o resultado de um exame médico que acabou de fazer, ela não sabe se contará com o amor da pessoa que prefere e por quanto tempo, ela não sabe se o emprego que ela tem será extinto pelas transformações etc. Nós não sabemos quando e como vamos morrer. Vivemos, portanto, cercado de incertezas e a incerteza nos aflige. Mas a ironia é que a cibernética não apenas sabe lidar com a incerteza, como aprendeu a calcular fatores de incerteza e fatores de risco. Mesmo assim, hoje, o ser humano tem muito mais incertezas sobre a técnica que o domina por meio das Big Techs, do que as Big Techs têm certezas sobre os seres humanos que ela subjugou. O livro procurar refletir a partir desse ponto.
Reprodução da capa de Incerteza, um ensaio (Fonte: Editora Autêntica)