12 Março 2025
Localizado na capital, único presídio feminino do estado que conta com Unidade Materno-Infantil perdeu servidores recentemente. Diretora da instituição teme risco de fechamento, hipótese negada pelo governo gaúcho.
A reportagem é de Sofia Utz, publicada por Matinal, 11-03-2025.
“Nenhuma mãe quer ganhar o seu filho dentro de uma cadeia”, diz Alessandra*, com um bebê de três meses na barriga. Quando ela recebeu a reportagem no Presídio Madre Pelletier, em Porto Alegre, estava presa havia 16 dias. Ela e outras três gestantes dividem uma cela com quatro camas de solteiro, uma pequena cozinha, com uma pia e uma mesa, e um banheiro com chuveiro e vaso sanitário. A instituição penal em que estão reclusas é a única do Rio Grande do Sul que dispõe de uma Unidade Materno-Infantil (UMI), localizada no térreo, ao final do pátio com paredes rosas, pintadas pelas próprias presas. A galeria abriga mais duas mulheres puérperas com seus bebês-recém-nascidos.
Mesmo vivendo em uma galeria exclusiva para gestantes e puérperas, as apenadas do Madre Pelletier não recebem o apoio interno de pediatras e nem de ginecologistas, assim como as gestantes dos outros cinco presídios femininos do estado, que também não contam com estes profissionais em sua equipe.
Dois dos seis presídios femininos do estado não têm consultórios e nem salas de atendimento. Metade das instituições não abriga sala de procedimento ou local para realizar curativos, suturas, vacinas ou posto de enfermagem. Nutricionista, só no Madre Pelletier. Os dados estão disponíveis no site da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Sisdepen) e se referem ao primeiro semestre de 2024.
Além da carência de profissionais da saúde, o Madre Pelletier enfrenta risco de fechamento, segundo a diretora da unidade prisional, Suelen Teixeira. À reportagem, ela afirma que existe um projeto de encerramento das atividades da penitenciária, o que explicaria a transferência de cerca de metade dos agentes penitenciários do Madre Pelletier a outros estabelecimentos da 10ª Delegacia Penitenciária Regional, que compreende a Região Metropolitana do estado.
No entanto, a assessoria do secretário de Sistemas Penal e Socioeducativo do Rio Grande do Sul, Luiz Henrique Viana (PSDB), negou a existência de um planejamento oficial de fechamento do Presídio Madre Pelletier. Leia mais sobre o posicionamento do secretário abaixo.
O fluxo de grávidas e puérperas no sistema penal do Rio Grande do Sul nos últimos dez anos tem apresentado oscilações, como demonstram os dados coletados pela Sisdepen. Em 2014, quando estas informações começaram a ser disponibilizadas, 12 gestantes e 19 lactantes viviam em unidades prisionais do estado. Nos anos seguintes, foi registrada uma queda, especialmente das apenadas gestantes. Em 2019, o índice voltou a subir, com 17 gestantes e 18 lactantes encarceradas. A maior alta é observada em 2020, no auge da pandemia, quando 23 gestantes e 11 puérperas passaram pelo sistema prisional do estado. Os anos seguintes registraram baixas, porém, a partir de 2023, observa-se uma retomada no pico que se mantém em 2024, quando 10 gestantes estiveram reclusas em unidades carcerárias gaúchas, em um universo de 3 mil mulheres encarceradas no estado.
A impressão das servidoras do Presídio Madre Pelletier com quem a reportagem conversou é de que, nos últimos anos, a maioria desse perfil específico de presas não permanece no regime fechado por um longo período. “Elas até vêm, mas ficam pouco tempo”, conta Viviane Cáceres, psicóloga da UMI no Presídio Madre Pelletier.
Alessandra, 33 anos, recicladora e moradora de uma cidade na Região Metropolitana de Porto Alegre, foi uma das mulheres que entrou no sistema um pouco antes da pandemia. Ela é parda e cumpre pena por um crime que nega ser autora. Seu ex-marido, que, segundo ela, era envolvido com o tráfico de drogas, furtou uma mochila enquanto ela o esperava em um ponto de ônibus. Vendo ele correr em sua direção e gritar para que corresse junto, ela foi atrás, sem saber o que havia acontecido. Quando a vítima prestou depoimento, afirmou que os dois estavam envolvidos no assalto. Alessandra foi presa e enviada à galeria D do Madre Pelletier por sete meses, até ter a liberdade domiciliar concedida.
Com o isolamento, o fórum a que comparecia para assinar a declaração de que estava cumprindo os requisitos do regime penal fechou. Sem saber o que fazer, Alessandra não se apresentou por meses e foi presa novamente, mas em regime semiaberto. Nesse período, ela engravidou e sofreu abortos espontâneos por três vezes, um deles após uma gestação de sete meses e meio. Depois desses episódios, se tornou usuária de crack e acabou descumprindo as regras do regime semiaberto. A recicladora ficou foragida por dois anos até ser presa novamente e encaminhada para a Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba Julieta Balestro, há pouco mais de um ano.
Na mesma cela, cheia de escritos nas paredes e fotos de parentes nas mesas de cabeceira, mora Joana*, gestante há cinco meses do primeiro filho e presa há 30 dias. Moradora de uma cidade a 60km da Capital do estado, ela tem 29 anos, é branca e cumpre pena por ser cúmplice de um homicídio. Joana conta que seu marido cometeu o crime por ciúmes.
O projeto de encerramento das atividades do Madre Pelletier, onde as duas gestantes residem, tem causado impacto significativo nas atividades da unidade prisional, afirma a diretora do presídio. De acordo com ela, o planejamento foi estruturado pelo Executivo estadual e vem sendo executado desde 2024, quando 100 apenadas da instituição foram transferidas para a Penitenciária Feminina de Guaíba, na Região Metropolitana.
As consequências da diminuição no número de internas foram o fechamento do terceiro piso do presídio e a transferência de 26 servidores. Suelen explica que os funcionários deixaram a instituição por medo de que a unidade encerrasse suas atividades.
Contudo, as operações do estabelecimento prisional seguiram normalmente, sem reposição de pessoal por parte do poder público. A falta de efetivo impacta diretamente nas atividades da UMI, o que é percebido por Alessandra, que esteve encarcerada no Presídio Madre Pelletier antes das mudanças.
Segundo Suelen, o Presídio Madre Pelletier hoje conta com 26 agentes penitenciários que atuam nas escoltas e na segurança geral da instituição. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a Susepe informou que a instituição possui 38 agentes penitenciários em seu quadro de funcionários.
Em nota, a Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo justifica que a redução do número de servidores se deu em razão da transferência de apenadas a outras instituições penais. O secretário Luiz Henrique Viana ainda afirmou que foram repassados R$ 2,4 milhões para manter o funcionamento do Madre Pelletier em 2024.
Em questionamento à Susepe, via LAI, os valores investidos pelo governo do estado no presídio nos últimos cinco anos não foram informados dentro do prazo estipulado pela legislação.
A diretora do presídio destaca que o maior problema de um eventual fechamento é a ausência de alternativas para o remanejamento das apenadas e dos servidores. “Hoje, não existe um plano B”, declara. A assessoria do secretário, que foi nomeado ao cargo em 2023, afirmou que estuda novas vagas em penitenciárias femininas, especialmente devido aos problemas estruturais que o prédio do Madre Pelletier apresenta.
Caso o fechamento do Presídio Madre Pelletier seja confirmado, a Unidade Materno-Infantil precisará ser realocada. É o que explica Carolina Reis, funcionária da Divisão de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos, ramificação do Departamento de Tratamento Penal. Segundo Carolina, o estado deve ofertar pelo menos uma UMI em funcionamento – podendo ser anexada a outra instituição penal ou funcionar independentemente, como um pequeno presídio exclusivamente para encarceradas gestantes e puérperas, como ocorre em outros estados do Brasil.
Enquanto segue funcionando, o Presídio Madre Pelletier permite que crianças recém-nascidas permaneçam com as mães apenadas até completarem um ano. Encarceradas grávidas de todo o estado podem cumprir pena no estabelecimento, se desejarem. Segundo dados de 2024 do Sisdepen, 10 gestantes vivem nas penitenciárias gaúchas. De acordo com Carolina Reis, o sistema prisional do estado abriga 24 apenadas grávidas.
Em outros presídios do Rio Grande do Sul, elas convivem com as demais presas em celas bem menores, sem cozinha individual, utilizando o banheiro coletivo e dormindo em beliches. Além disso, gestantes que dão à luz em estabelecimentos sem uma Unidade Materno-Infantil devem entregar o bebê a um responsável, podendo vê-lo apenas nos dias de visitação. Ainda assim, a maioria prefere continuar nas instituições próximas à região onde moram, para contar com o apoio de familiares. No Rio Grande do Sul, os presídios exclusivamente femininos estão localizados na região metropolitana e no centro do estado. Gestantes das demais áreas são alojadas em unidades prisionais mistas.
A consideração das vontades das apenadas, contudo, é algo recente. Viviane, que é psicóloga da UMI no Presídio Madre Pelletier há quase 20 anos, conta que, até 2013, gestantes de todo o estado eram enviadas à instituição sem serem consultadas, o que levou a uma concentração de até 30 apenadas residindo na galeria ao mesmo tempo, ainda que o berçário da ala possua capacidade para onze bebês. Na época, crianças de até dois anos moravam no presídio, muitas sem nunca terem saído, já que as mães não possuíam rede de apoio na capital.
A mudança veio a partir de diálogos com as direções dos presídios e com as delegacias penitenciárias regionais, pautados especialmente em normativas que definem a necessidade de um “tratamento humanizado” dos indivíduos privados de liberdade. Viviane destaca que o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, ação conjunta do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça, também foi responsável por melhorias no tratamento de gestantes em todo o estado, visto que vários presídios receberam Unidades Básicas de Saúde (UBS) internas, possibilitando que apenadas grávidas em outros estabelecimentos prisionais do Rio Grande do Sul pudessem realizar o tratamento pré-natal sem transferência obrigatória.
O trabalho de parto, independentemente das estruturas dos presídios, é sempre conduzido em um hospital externo. No caso do Presídio Madre Pelletier, a instituição de referência é o Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, também localizado na capital gaúcha e onde são feitos exames mais complexos, consultas e vacinas nos bebês. As apenadas são conduzidas ao hospital em uma viatura administrativa, sem grades. Durante o deslocamento, assim como no trabalho de parto, é proibido o uso de algemas. As servidoras do Madre Pelletier ouvidas pela reportagem afirmaram que as gestantes e puérperas não são algemadas, salvo em casos de surto. No hospital, estão sempre acompanhadas por duas agentes penais. “Na rua, elas estão sob a nossa tutela. Elas cometeram um crime e estão privadas de liberdade”, explica Suelen Teixeira, diretora do Presídio Madre Pelletier.
Quando retornam ao presídio com seus recém-nascidos, as internas do Madre Pelletier ganham roupas, brinquedos, berço, carrinho e bebê conforto fornecidos pela própria instituição, que recebe os itens por doações privadas. As servidoras da penitenciária negaram a existência de qualquer item enviado pelo governo do estado.
O Brasil possui cerca de 40 mil mulheres apenadas, das quais 62% são negras. As mulheres brancas representam 29% deste total, enquanto as amarelas somam 0,68% e as indígenas 0,30%. Aproximadamente 35% das apenadas de todos os presídios mistos e femininos do país interromperam os estudos no ensino fundamental e 17% deixaram a escola no ensino médio. Do total de encarceradas, 18% concluíram o ensino médio e apenas 2% possui diploma de ensino superior. Em relação à idade, 26% das apenadas possuem entre 35 e 45 anos, enquanto 19% estão na faixa dos 25 a 29 anos e 16% têm de 30 a 34 anos. Das 348 instituições penais femininas e mistas do país, 14 unidades não possuem registros sobre raça e faixa etária das encarceradas e 18 presídios não coletam dados relacionados à escolaridade das detentas. Essas informações são disponibilizadas pela Sisdepen e dizem respeito ao primeiro semestre de 2024, registro mais recente.
Destas 40 mil detentas, 3 mil estão no Rio Grande do Sul. De acordo com dados coletados pelo Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen) em fevereiro deste ano, mais de 66% destas são mulheres brancas, enquanto as negras representam 32% – e são 20% da população do estado. As amarelas são pouco mais de 1% entre as encarceradas e as indígenas 0,93% deste total. Das 551 apenadas que completaram o ensino médio, cerca de 77% são mulheres brancas, 20% são negras, 2,4% são amarelas e 0,36% são indígenas. Apenas 10% das presas com ensino superior completo são negras, enquanto 89% são brancas. Segundo levantamento de 2024 do Observatório do Sistema Prisional do Rio Grande do Sul, cerca de 32% das apenadas têm entre 35 e 45 anos, enquanto aproximadamente 20% estão na faixa etária de 25 a 29 anos e 19% têm entre 30 e 34 anos.
Questionada via LAI, a Superintendência da Polícia Penal do Rio Grande do Sul (Susepe) não disponibilizou dados referentes à raça, a nível de escolaridade e a taxa de reincidência das apenadas gestantes e puérperas do estado. O órgão afirmou que não tem registros específicos sobre esses grupos. Contudo, segundo Carolina Reis, servidora do Departamento de Tratamento Penal, existe um documento interno na divisão em que trabalha no qual constam tais informações sobre apenadas grávidas e puérperas de todo o estado, para que haja o acompanhamento das gestações.
Carolina destaca que o departamento trabalha para que as encarceradas desses grupos não permaneçam em regime fechado. Ela afirma que o órgão envia um pleito para medidas mais brandas a esses grupos ao Judiciário, que passa pelo Ministério Público para obter um parecer dos promotores, que, na maioria das vezes, são contrários ao pedido. A resolução de cada caso varia de acordo com a interpretação do juiz responsável e da gravidade do delito cometido. Conforme as servidoras do Presídio Madre Pelletier, que acompanham os processos das apenadas, existem juízes mais propensos a aceitar o pedido de prisão domiciliar e outros mais resistentes à alternativa.
Fernanda Osório, advogada criminalista e presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalista (ABRACRIM/RS), explica que os servidores da polícia penal não conseguem agir ativamente para transformar o regime de pena destas encarceradas. “Não necessariamente a pessoa que lida com a apenada vai ter uma ingerência decisiva na questão que envolve a concessão da liberdade à apenada”, diz. E ressalta que a jurisprudência não favorece medidas descarcerizantes.
O cumprimento da prisão preventiva em domicílio por gestantes, puérperas e mães de crianças de até 12 anos é um direito previsto no artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP) desde 2016. O artigo 318-A do CPP ainda assegura que o encarceramento preventivo será substituído por pena domiciliar a gestantes e a mães de crianças que não tenham cometido crime com violência, grave ameaça à pessoa ou contra seus filhos, o que é o caso de Alessandra, que já era mãe quando foi encarcerada pela primeira vez. Segundo Gabriela Souza, advogada e CEO da Escola Brasileira de Direito das Mulheres, esse mecanismo “funciona com mulheres que possuem alguma condição financeira”, e, portanto, “não é automático e nem democrático”. “Se estas mulheres não cumprem prisão domiciliar, temos uma pena dupla: não só da mulher, como da criança, que perde a sua principal cuidadora”, pontua. Para Fernanda, “o artigo não é aplicado como deveria ser”. A advogada criminalista ainda afirma que o déficit de servidores no sistema penal não permite o ingresso de projetos que poderiam possibilitar a remição da pena por estudo e trabalho, por exemplo.
Enquanto aguardam notícias de seus processos, Alessandra e Joana se veem reféns da ansiedade. Elas leem, ouvem rádio, organizam a cela, tomam sol no pátio e pensam nos que estão do lado de fora. “A gente fica naquela cela fechada e a cabeça fica maquinando”, conta Alessandra, que ainda não teve nenhum contato com a família desde que chegou na penitenciária. Joana já recebeu duas visitas de sua irmã e tem se comunicado com seu marido por meio de recados da advogada. Contudo, ela diz ter medo de que o estresse cause complicações na sua gestação.
Viviane, psicóloga da ala, aponta que a prisão pode produzir efeitos no desenvolvimento da gestação. Mais sensíveis por causa da gravidez, as apenadas sofrem com a abstinência de substâncias químicas e podem enfrentar problemas na convivência tão próxima com outras mulheres de realidades diferentes. Elas também apresentam um risco maior de parto prematuro, sintoma que não é causado exclusivamente pelo ambiente, mas também influenciado pela saúde fragilizada que várias apresentam antes de dar entrada no presídio.
Apesar do futuro incerto, elas não deixam de traçar planos para a vida após o encarceramento. Com a gravidez ainda em estágio inicial, Alessandra espera viver o nascimento do filho fora do regime fechado. Antes de ser presa, trabalhava como recicladora acompanhando o atual marido, que é jardineiro. Ao sair do presídio, ela pensa em expandir suas funções, dando início ao seu próprio ferro velho. “Espero que o juiz olhe o meu processo com mais carinho e me conceda de novo a tornozeleira. Só desejo ser feliz com a minha família”, afirma ela, que acredita que se tornará uma pessoa melhor após deixar as dependências do Presídio Madre Pelletier.
Como sua colega de cela, Joana também deseja que o filho nasça fora da instituição penal, ainda que sua gestação já esteja mais avançada. Antes de ser presa, trabalhava como vendedora e tinha planos de mudar-se para o interior do estado com seu esposo, em busca de empregos melhores e mais bem remunerados. Agora, ela não sabe como os planejamentos se desenrolarão. “Se ele ficar, o que com certeza vai, eu não posso deixar ele sozinho”.