08 Setembro 2019
“As causas das causas da saúde ruim não operam isoladas umas das outras e tendem a se formar na intersecção de poderosas forças políticas e econômicas. Para reverter os efeitos duradouros da política social punitiva, portanto, é insuficiente agir sobre um único determinante da saúde, mesmo que esse determinante de saúde esteja causando danos importantes por si mesmo”, escrevem Elias Nosrati, do Merton College, Universidade de Oxford, e Michael Marmot, da Universidade College London, em artigo publicado por Viento Sur e reproduzido por Rebelión, 06-09-2019. A tradução é do Cepat.
"Mandarei um homem para a prisão por pedir comida quando estiver com fome", foi a confissão de um juiz no Reino Unido, antes de condenar um sem-teto a quatro meses de prisão por mendicância persistente. Este não é um incidente isolado. Em toda a Europa, um número crescente de pessoas vulneráveis é alvo das autoridades públicas pelo chamado comportamento antissocial, que inclui uma vontade aparentemente irreprimível e inexplicável de dormir nas calçadas, em vez de camas, e de exibir em público objetos próprios da pobreza.
Tal comportamento e seu tratamento punitivo pelo Estado é o sintoma de uma dinâmica política de maior alcance. Na Europa pós-recessão, um aspecto dessa dinâmica recebeu muita atenção, a austeridade fiscal, cujos efeitos nocivos à saúde foram bem estabelecidos. Tal conclusão faz parte de uma literatura científica emergente que examina como o nível macro de forças políticas e econômicas exerce efeitos poderosos sobre a saúde da população.
Mas, junto com a redução do bem-estar, também devemos considerar o efeito sobre a saúde da população da legislação e políticas disciplinares pelas quais se limita e controla a instabilidade causada pelo declínio econômico. A política social punitiva combina o desmantelamento do estado de bem-estar com a expansão do Estado penal e seus correlatos institucionais.
Está associada à regulação da pobreza e à fragmentação social nos redemoinhos de choques políticos e econômicos, como recessões, declínio industrial e o aprofundamento das desigualdades. A política social punitiva também reflete as oscilantes preocupações do Estado, que vão desde oferecer apoio social aos pobres até suprimir sua incômoda, mas visível presença na esfera pública.
Um modelo desse padrão é visto na recente história estadunidense, onde o crescimento das diferenças de renda entre os que estão acima e os que estão abaixo na ordem socioeconômica tem sido acompanhado por uma diminuição nos benefícios sociais para a maior parte daqueles que necessitam deles.
De 1970 a 1996, os benefícios para famílias pobres com crianças caíram mais de 40%, em termos reais, na maioria dos estados. Por exemplo, a média mensal do pagamento de benefícios sociais para mães solteiras provenientes da Ajuda para Famílias com Filhos Dependentes (AFDC), medida em dólares constantes, caíram de 221 dólares, em 1970, para 119 dólares, em 1995, o que equivale a uma diminuição líquida de mais de 50% no poder de compra.
Desde a reforma do Estado de bem-estar social de 1996, realizada durante o mandato do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, análoga às atuais transformações do Estado de bem-estar britânico, as transferências sociais caíram ao menos outros 20%, até tal ponto que, a partir de julho de 2016, os benefícios da Assistência Temporária para Famílias Necessitadas para uma família de três pessoas, sem qualquer outra renda, permaneceram abaixo da metade da linha da pobreza oficial, em todos os estados dos Estados Unidos. Na maioria dos estados, os benefícios foram inferiores à linha da pobreza de 30%.
Ao mesmo tempo, desde o início dos anos 1970, nos Estados Unidos, os encarceramentos dispararam para um pico de quase oito detentos para cada 1.000 habitantes, com um número absoluto de mais de 2,3 milhões de pessoas atrás das grades, com o seu máximo em 2006, com uma quantidade atual que beira muito próximo a esse número, o que equivale a um aumento de sete vezes, em torno de quatro décadas.
A população correcional total, que inclui aquelas pessoas em liberdade provisória e liberdade condicional, que em grande parte são extraídas de populações socioeconomicamente pobres e não brancas, atingiu quase 7 milhões de pessoas nos Estados Unidos.
Esse crescimento punitivo não é uma função linear do crime, uma vez que as taxas de encarceramento são três vezes mais altas em lugares onde a pobreza se concentra, do que em comunidades com taxas similares de criminalidade. Em 1972, a porcentagem de homens afro-americanos com menos de 40 anos e com mais de 12 anos de estudo concluídos, que estavam atrás das grades, era de aproximadamente 4%. Em 2010, esse número mais que quadruplicou, chegando a quase 18%. Para os estadunidenses de origem europeia, com no máximo um diploma de ensino médio, a taxa de encarceramento, durante o mesmo período, aumentou de cerca de 1% para aproximadamente 4%.
Se observamos apenas aqueles que nunca concluíram o ensino médio, o número aumentou de 12% para 35% para os afro-americanos e de 2% para cerca de 13% para os europeus. Por outro lado, para pessoas com ao menos alguma formação universitária, as taxas de encarceramento permaneceram praticamente inalteradas nos dois grupos, cerca de 2% e 0,5%, respectivamente.
A comparação de coortes de nascimentos de indivíduos nascidos entre 1945-1949, por um lado, e nascidos entre 1975-1979, por outro, revela que as probabilidades de encarceramento estimadas durante o curso da vida para aqueles sem diploma do ensino médio aumentaram de 4% para pouco menos de 30% para os estadunidenses de origem europeia e de cerca de 15% para mais de 60% para os afro-americanos.
Como se relacionam essas mudanças com as desigualdades em saúde e bem-estar? A Revision Marmot de 2010 ofereceu seis recomendações de políticas para o Reino Unido: dar a cada criança o melhor início de vida, permitir que as pessoas maximizem suas habilidades e tenham controle sobre suas vidas, criar um ambiente de trabalho justo para todos, garantir padrões de vida saudáveis para todos, criar e desenvolver comunidades saudáveis e sustentáveis e fortalecer o papel e o impacto da prevenção de doenças. Mas, a política social punitiva trabalha contra cada uma dessas recomendações, intensificando as consequências do declínio econômico para as desigualdades em saúde.
Nos Estados Unidos, os ex-prisioneiros são imersos em um contexto de baixos salários, empregos precários, quando não simplesmente desemprego crônico, e têm taxas de mortalidade quase 13 vezes maiores do que as da população comparável, especialmente devido ao suicídio, exposição à violência na vizinhança e no desenvolvimento de doenças relacionadas ao estresse.
Para uma mãe solteira que luta para ganhar o mínimo de sobrevivência enquanto o parceiro completa a sentença atrás das grades, o despejo resulta em uma nova forma de declínio social, pois pode levar à incapacidade de assegurar uma moradia digna para sua família, a um novo declínio social e um aumento do risco de acabar morando na rua sem teto.
A partir desses impactos do encarceramento, deduz-se que, na origem, a política social punitiva é determinante dos efeitos de experiências adversas na infância. Seus graves efeitos intergeracionais são ilustrados pela forma como as crianças com um pai encarcerado possui maior probabilidade, entre outros fatores, de abandonar a escola, ficar sem moradia e sofrer uma variedade de problemas de saúde.
O risco cumulativo de experimentar o encarceramento parental aos 14 anos de idade, entre crianças afro-americanas, faz com que o abandono do ensino médio seja superior a 50% e revela a magnitude desse fenômeno social, político e de saúde pública. O despejo, a mobilidade residencial descendente e a resultante instabilidade nas relações sociais agravam a exposição da infância a eventos adversos que ativamente moldam trajetórias de vida e a suscetibilidade às doenças.
Além disso, assim como a austeridade tem efeitos regionalmente diferenciados na Europa, paisagens urbanas concretas se atrofiaram com o peso do sistema de justiça criminal nos Estados Unidos, extirpando de seus bairros os homens no melhor momento de suas vidas, deixando famílias separadas, rompendo as redes sociais e aprisionando as comunidades locais em ciclos viciosos de declínio econômico, violência, mal-estar do cidadão e novos tratamentos punitivos por parte do Estado.
Nesse clima, as intervenções de saúde pública, onde não foram canceladas em razão de cortes no Estado de bem-estar social, não poderão eliminar as desigualdades na saúde, a menos que tratem e reparem seus determinantes pela raiz. Em outras palavras, por que tratar as pessoas e as enviar novamente para viver em condições que as deixaram doentes?
Tudo isso é uma peculiaridade estadunidense? Certamente, a redução das políticas de bem-estar não é. Por conta de uma estreita austeridade fiscal, durante a pós-recessão na Europa, a saúde da população sofreu um golpe. O cinturão de ajuste do orçamentário corroeu os sistemas de saúde, precipitou surtos de doenças infecciosas e tornou os padrões sociais de saúde e doenças mais articulados. Assim como a expansão criminal também não é uma singularidade estadunidense. Embora nenhum lugar se aproxime dos números absolutos dos Estados Unidos - e apesar das penas não privativas de liberdade -, as prisões europeias estão no limite de sua capacidade. Somente pouco menos de 30% das administrações penitenciárias experimentam superlotação e, desde 2009, a densidade prisional europeia permaneceu perto de 100%. Na Inglaterra e no País de Gales, o sistema penitenciário é superpovoado todos os anos, desde 1994, e a população carcerária aumentou 82%, nas últimas três décadas.
Em toda a Europa, as pressões políticas sobre o estado de bem-estar foram acompanhadas pelo tratamento punitivo daqueles acorrentados aos degraus mais baixos da ordem socioeconômica, em particular, os migrantes pós-coloniais e seus descendentes, cuja presença desproporcional nas prisões europeias faz eco aos afro-americanos do outro lado do Atlântico.
Para pesquisadores e responsáveis de políticas em saúde pública, e para outros, é urgente que adotemos um enfoque multidimensional para compreender as desigualdades e as causas determinantes em sua raiz. As ‘causas das causas’ da saúde ruim não operam isoladas umas das outras e tendem a se formar na intersecção de poderosas forças políticas e econômicas. Para reverter os efeitos duradouros da política social punitiva, portanto, é insuficiente agir sobre um único determinante da saúde, mesmo que esse determinante de saúde esteja causando danos importantes por si mesmo.
Por exemplo, colocar fim ao hiperencarceramento é pouco provável que ajude os mais vulneráveis da sociedade, a menos que a prisão seja vista em conjunto com outras importantes instituições sociais, incluindo escolas, mercados de trabalho e os sistemas de saúde e assistência social. Além disso, não se pode ajudar sem se dar conta que o intervencionismo retributivo do estado direcionado à parte inferior da estrutura de classes contrasta fortemente com o seu protecionismo benfeitor em relação àqueles acima, que se caracteriza por uma gama de generosos benefícios integrados em um regime tributário habilmente adaptado. Em suma, oferecer bem-estar aos ricos, enquanto os pobres são punidos, não é um meio de alcançar a equidade em saúde.
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Política social punitiva: um determinante radical da saúde - Instituto Humanitas Unisinos - IHU