28 Fevereiro 2025
Uma análise da submissão tecnológica a partir da teoria marxista da dependência. Além de extraírem dados, corporações do Norte ampliam a pilhagem de matérias-primas e superexploração do trabalho. Inovação de lá depende da reprimarização do Sul…
O artigo é de Isis Paris Maia, graduada em História e mestranda em Políticas Públicas pela UFRGS, publicado por Outras Palavras, 26-02-2025.
Eis o artigo.
No último dia 24 de fevereiro de 2025, durante uma aula na Universidade de São Paulo, o ministro Alexandre de Moraes alertou mais uma vez sobre os riscos representados pelas Big Techs estadunidenses. Segundo ele, essas empresas, movidas por interesses econômicos e políticos, não respeitam a soberania dos países e colocam em risco até mesmo a estabilidade democrática. Cabe lembrar a eleição de Donald Trump em 2016, quando a Cambridge Analytica, empresa responsável por sua campanha digital, utilizou um aplicativo para coletar dados privados de 87 milhões de usuários sem seu consentimento, direcionando a propaganda política para o Republicano. No caso do Brasil, está claro que o uso intensivo de fake news e robôs virtuais foram determinantes para a ascensão do bolsonarismo.
Além de um risco à democracia, as FAANGs (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google) tem desrespeitado a soberania nacional, como no caso em que o X (antigo Twitter) teve de ser retirado do ar no Brasil por determinação do Supremo Tribunal Federal, após se recusar a cumprir a legislação nacional e indicar um representante legal no país. Mas é no campo econômico que se institui, como destacou Márcio Pochmann em seu livro Declínio da vida em sociedade e o Brasil do início do século XXI, a assimetria internacional, uma vez que os países periféricos se tornam importadores de bens e serviços digitais em troca do fornecimento de dados brutos. O poder e o lucro das Big Techs ocidentais é tamanho que sete das dez maiores empresas listadas na Bolsa de Valores dos EUA são Big Techs.
Olhando em perspectiva histórica, podemos ter outro entendimento sobre o que, na década de 1990, o Ocidente chamava de Great Firewall chinês. Segundo os críticos, o modelo chinês de gestão da internet seria baseado em censura e controle, bloqueando sites estrangeiros (como Google, Facebook, Twitter e YouTube) e restringindo a liberdade de expressão. Com efeito, segundo eles, o isolamento da internet chinesa ainda seria prejudicial ao seu desenvolvimento de tecnologias digitais.
A realidade, contudo, tem sido implacável com essa narrativa: o país asiático está construindo um ecossistema digital complexo. Esse ecossistema é composto, em primeiro lugar, por uma infraestrutura digital avançada, que inclui redes de banda larga (fibra óptica, 5G e satélites), data centers para suportar nuvens, armazenamento e processamento de dados. Em segundo lugar, soma-se a isso um conjunto de empresas de plataformas que atuam em todos os setores, desde as gigantes BATX (Baidu, Alibaba, Tencent e Xiaomi) até empresas menores que operam em diversas fronteiras tecnológicas, como e-commerce, fintechs e serviços que vão do entretenimento à indústria. Em terceiro lugar, destacam-se empresas-chave na produção de aparelhos e insumos para o setor digital, como fabricantes de smartphones e computadores (Huawei, Xiaomi, Oppo, Vivo, Lenovo), drones (DJI), componentes eletrônicos e semicondutores (SMIC, BOE Technology) e baterias (CATL e BYD). Em resumo, a China adentrou a fronteira tecnológica com empresas e inovações nacionais, mobilizando a economia de dados para a digitalização da sociedade de acordo com seus objetivos estratégicos.
Além de desenvolver um setor digital nacional, essa política regulatória soberana permitiu evitar manipulação de opiniões, impedir a propagação de terrorismo, pornografia e discursos de ódio. Entre as políticas regulatórias, destacam-se a Lei de Cibersegurança da China de 2017, a Lei de Proteção de Dados Pessoais (2021) e o Regulamento de Recomendação Algorítmica (2022). Assim, o país conseguiu ordenar minimamente as mídias sociais, evitando a erosão do espaço público digital por conta da atuação de plataformas digitais, como tem ocorrido no Ocidente.
Dessa forma, o que era visto como medida reativa se tratava de estratégia nacional. Atuando como uma espécie de protecionismo e reserva de mercado que permitiu à China construir seu ecossistema e romper a dependência de tecnologias estrangeiras. Tais tecnologias têm servido à governança digital e à elevação do planejamento e de suas políticas públicas a novos patamares na construção de seu projeto de socialismo.
Mais do que isso, agora, progressivamente, a China tem passado a competir nessa fronteira de inovação. O desenvolvimento no setor digital e seu ecossistema tecnológico avançam em conjunto com a Belt and Road, uma espécie de projeto de globalização liderado pela China, como destacou Diego Pautasso no livro A China e a Nova Rota da Seda. Nesse contexto, a chamada Rota da Seda Digital evidencia a estratégia de Pequim em promover um processo de integração e desenvolvimento que inclua sua expertise e tecnologias digitais, colocando-se em crescente e direta concorrência com o oligopólio ocidental.
Se extrair lições do sistema de inovação da China é imperativo, fomentar parcerias e cooperação com o país asiático pode ser chave. Afinal, enfrentamos a urgente necessidade de retomar o desenvolvimento e impulsionar a inovação em tecnologias digitais. Trata-se de desenvolver capacidades nacionais a fim de garantir a soberania digital e aproveitar o potencial da economia de dados em benefício do desenvolvimento brasileiro.
Nessa direção, cabe sublinhar o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial recém-lançado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, cujos investimentos previstos são mais de 23 bilhões de reais até 2028. Estruturado em eixos como infraestrutura e desenvolvimento de IA, com dados nacionais e linguagem adequada às nossas realidades, o plano prevê ainda a atualização do supercomputador Santos Dummont do Laboratório Nacional de Computação Científica, de modo a torná-lo um dos cinco computadores com maior capacidade de processamento do mundo nesse período.
O fato é que precisamos retomar o desenvolvimento e superar a posição passiva em que nos encontramos diante da Era Digital. Um projeto nacional deve promover a inserção do Brasil nesse cenário tecnológico, não apenas como mero exportador de dados, mas como protagonista na exploração de suas múltiplas fronteiras de inovação, em sintonia com a reindustrialização. Ademais, esse é um imperativo democrático determinante para a organização da esfera pública. Em suma, o avanço das tecnologias digitais hoje desempenha um papel semelhante ao da siderurgia para o Brasil nos anos 1940: um portal essencial para adentrarmos um novo momento histórico.
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