20 Fevereiro 2025
Em resposta à afirmação do vice-presidente dos EUA de que a caridade é, antes de tudo, para o próprio grupo, o Papa Francisco respondeu em 11 de fevereiro que o amor cristão é a base de uma “fraternidade aberta a todos”.
A reportagem é de Matthieu Lasserre, publicada por La Croix International, 17-02-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existe uma hierarquia de caridade? Essa questão teológica, antropológica e filosófica foi o foco de uma animada troca de opiniões na semana passada entre o Papa e o vice-presidente dos Estados Unidos.
Ao escrever para os bispos estadunidenses em 11 de fevereiro para expressar sua preocupação em relação à política migratória de Donald Trump, Francisco usou algumas frases que pareciam responder às declarações políticas estadunidenses. Para o Papa, “o amor cristão não é uma expansão concêntrica de interesses que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos”. Referindo-se à parábola do Bom Samaritano, ele continuou dizendo que a “verdadeira ordo amoris” - a ordem cristã na caridade - baseia-se no “amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção”.
Se essas frases causaram alvoroço nos círculos católicos estadunidenses, foi porque o papa estava respondendo explicitamente ao vice-presidente J. D. Vance, também católico, que justificava o programa de deportações em massa de imigrantes nos Estados Unidos com a existência de uma ordo amoris. “Existe um conceito cristão que diz para amarmos nossa família, depois nossos vizinhos, depois nossa comunidade, depois nossos concidadãos”, disse ele, “e por fim dar prioridade ao resto do mundo”.
As primeiras referências à ordo amoris remontam a Santo Agostinho, o Doutor da Igreja de quem o vice-presidente dos EUA disse ser um “fervoroso admirador”. “Para Santo Agostinho, o amor não é necessariamente bom, porque podemos amar coisas más, como o dinheiro ou a violência”, explica Jean-Marie Salamito, professor de história do cristianismo antigo. “Portanto, o amor deve ser ordenado”.
Para Salamito, a afirmação de J.D. Vance “não é escandalosa em si”, mas fica “incompleta”. No pensamento de Santo Agostinho, “o amor não é dividido em círculos concêntricos nos quais o ego e suas preferências são a norma”, explica Jean-Marie Salamito. “Trata-se de amar a Deus mais do que qualquer outra coisa e amar tudo em Deus. Portanto, se tivermos a ideia de círculos concêntricos, devemos ter em mente que Deus está no centro e que ele ilumina todos os círculos com seus mandamentos. Mas Deus está ausente da frase de J.D. Vance”.
Além disso, a ordo amoris não implica em agir às custas dos outros. “Obviamente, se eu for um estadista, posso cuidar de meu país em nome de Deus e por Deus”, acrescenta o historiador. “Mas não posso maltratar as pessoas. Dar prioridade aos meus compatriotas não significa negligenciar os pobres que vieram de outros países”.
Oito séculos depois, São Tomás de Aquino também abordará esse tema, estabelecendo uma ordem natural de amor. No entanto, ele afirma explicitamente que é necessário “abrir uma exceção a essa caridade para com aqueles que nos são próximos quando nos deparamos com alguém cuja vida está em perigo ou cuja dignidade está ameaçada”, aponta o dominicano Jacques-Benoît Rauscher, doutor em sociologia (1). “Tomás de Aquino diz que os católicos podem ser capazes de gestos proféticos que vão além da caridade natural”.
“O apelo à ordo amoris poderia ser justificado por parte de J.D. Vance, mas sua argumentação é, sem dúvida, falaciosa, porque a coloca como princípio desde o início”, afirma ele. Mas Cristo nos chama a ir além dessa perspectiva”.
O vice-presidente estadunidense não é o único a usar esse conceito para justificar uma política migratória firme. A ordo amoris também é citada na Europa em debates sobre imigração, com referências mais ou menos explícitas ao catolicismo. Jacques-Benoît Rauscher argumenta que a razão pela qual essa ordem de caridade, muitas vezes nacional e às vezes étnica, se impôs no discurso político e entre alguns católicos é precisamente porque “não pensamos o suficiente sobre o que realmente precisamos e sobre compartilhar recursos com quem necessita”.
O dominicano também analisa essa percepção da caridade em termos da perda de um senso de pertença comum nas nossas sociedades ocidentais: “Essa visão se consolidou porque não pensamos em termos da necessidade de nos preocuparmos com o bem dos outros. Faço uma conexão com a ideia de católicos que vivem uma insegurança cultural: se mobilizamos a ordem da caridade, é porque, no fundo, não sabemos mais qual é a nossa identidade e expressamos a necessidade de nos reencontrar entre nós”.