07 Fevereiro 2025
"É necessário, mais do que nunca, uma religação com as águas, não apenas como contemplação, vendo o pôr do sol em uma orla revitalizada e pretensamente esterilizada, mas como vivência e apropriação, para conhecer e aprender com as dinâmicas das águas. É preciso voltarmos a estar dentro do Guaíba, navegando, se deslocando, remando, velejando ou simplesmente passeando em sua superfície", escreve Dilermando Cattaneo, geógrafo, remador, diretor de Memória e Educação da Federação de Remo do RS, membro do conselho técnico do Museu das Ilhas e professor de Geografia na UFRGS Litoral, em artigo publicado por Matinal, 04-02-2025.
Hoje participamos da procissão fluvial de Nossa Senhora dos Navegantes, remando em nossos barcos, que abriam caminho para as embarcações que levavam e acompanhavam a imagem da principal divindade de Porto Alegre. Como alguém que vive uma espiritualidade laica, não tenho grandes ligações com a dimensão religiosa da coisa toda. Por outro lado, inspirado no historiador Luiz Antônio Simas, me interessa esse “espírito encantado das ruas” (nesse caso, das águas) e a energia sincrética que emana nas fissuras e contradições de uma expressão cultural eminentemente popular, numa íntima relação com o elemento matriz da geografia histórica da cidade: o Guaíba.
Fomos brindados por um dia muito quente e ensolarado, no feriado que marca a 150ª edição dessa tradição religiosa que é, ao mesmo tempo, uma demonstração de devoção à santa e uma expressão da ligação histórica que a cidade tem com as águas do seu corpo hídrico constituinte e instituinte. Um patrimônio cultural imaterial que a partir de 1989 passou a ser realizado por via terrestre (efeito Bateau Mouche), mas que mantém por insistência sobretudo dos ilhéus e “ilheiros” uma procissão paralela e em sua dinâmica tradicional, levando a imagem pelo Canal dos Navegantes (aquele trecho que historicamente – e corretamente – se chama de Rio Guaíba) até a frente do Parque Náutico Alberto Bins, um espaço público infelizmente esquecido, a poucos metros da mais que centenária Igreja (ou Santuário) Nossa Senhora dos Navegantes, a casa permanente da santa, que somente fica sem sua imagem quando a mesma é trasladada, em meados de janeiro, para a Igreja do Rosário, no centro da capital gaúcha.
Até aquela época, há quase quatro décadas, as fotos e relatos da festividade indicam que uma multidão se aglomerava não apenas nas margens, mas nas águas do Guaíba, em centenas de embarcações de todos os tipos que iam apinhadas de gente e eram cobertas de papel picado quando, a partir de 1958, passavam sob a ponte do vão móvel (que era içado para a passagem de veleiros e embarcações maiores), enquanto os remadores (que até hoje carregam o andor da imagem na procissão terrestre) iam à frente com os barcos que “não gostam” das ondas formadas pelas embarcações motorizadas.
No entanto, indicar apenas a tragédia do Bateau Mouche como responsável pela tentativa de acabar com a procissão fluvial é desconsiderar uma série de infelizes decisões e políticas públicas que, carregadas de interesses econômicos e contaminadas por um certo espírito de modernização (a fatídica moderno-colonialidade), implantaram um modelo de urbanismo rodoviarista que tantos problemas de mobilidade trazem às nossas metrópoles brasileiras. Para piorar, no trecho de orla (sim, uma orla!) do antigo Caminho Novo que mais tarde viria ser a Avenida Voluntários da Pátria (ali onde ficavam os clubes de remo e dezenas de trapiches por onde chegavam e saíam produtos que abasteciam a incipiente metrópole), foi construído a partir dos anos 1940 o Cais dos Navegantes (a atual área portuária de Porto Alegre, que muita gente nem se dá conta que existe) e, a partir de 1970, o sistema de proteção contra cheias que terminou por isolar de vez o acesso a este trecho tão importante do Guaíba, onde a cidade não apenas nasceu, mas se desenvolveu e foi fundamental para que houvesse ali um grande distrito industrial (o famoso Quarto Distrito) que hoje se descaracteriza em nome de uma gentrificação um tanto asséptica de aspectos históricos e culturais.
A Igreja dos Navegantes, que antes ficava próxima da margem e que durante algumas décadas coexistiu com indústrias como a Renner (que depois virou o outlet DC Navegantes), não apenas foi ficando cada vez mais distante. A própria construção das pontes da Travessia Régis Bittencourt/Getúlio Vargas no final dos anos 1950 e a construção das vias expressas da Castelo Branco/Freeway em 1973 sobre os diques do sistema de proteção e da linha do Trensurb em 1980, acabaram por distanciar e dificultar muito esse contato e essa relação com a água. Mesmo assim, até o final dos anos 1980, como coloquei antes, a multidão que vinha nos barcos desembarcava no Estádio Náutico (sim, há um estádio náutico público em Porto Alegre) e levava a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes até sua igreja, usando inclusive a passagem da Comporta 14, aquela parcialmente rompida – por erro de execução e falta de manutenção – na enchente de maio de 2024, e que esteve ameaçada de ser fechada permanentemente pela prefeitura municipal.
Para além do enfraquecimento do sincretismo que marca nossa religiosidade e que nesse caso compartilha uma divindade das águas, a proibição da procissão fluvial e sua transferência para o meio terrestre, com a maior parte do roteiro murada pela linha do trem metropolitano e sobre uma via automobilística expressa, terminou por reforçar o isolamento daquele trecho do Guaíba. Isso colocou o próprio espaço público do Parque Náutico Alberto Bins num ostracismo decadente, bem diferente do que vivera nos anos que antecederam a inauguração do sistema de proteção contra as cheias.
Mais do que um saudosismo anacrônico ou um certo olhar ingênuo, a defesa da procissão na sua dinâmica fluvial é um chamado para que voltemos ao Guaíba, para dentro de suas águas, especialmente naquele trecho que, insisto, é constituinte e instituinte do que hoje é Porto Alegre. Imaginar que o Guaíba existe apenas na zona sul, em sua porção lacustre, é desconhecer esse passado recente e a própria geografia histórica da cidade, que está muito mais, por exemplo, para Belém do Pará do que imaginamos. As ilhas deltaicas, que compõem nosso cenário, e suas gentes ribeirinhas (ilhéus e ilheiros) nos ensinam que essa relação entre cidade e água não pode ser rompida.
Se o sistema de proteção falhou e uma parte do dique foi rompido durante a enchente, foi esse rompimento histórico da cidade com o Guaíba que fez muita gente ignorar – e portanto correr riscos –, que vive em planícies de inundação em diversos bairros da zona norte, como os próprios bairros do Quarto Distrito. É necessário, mais do que nunca, uma religação com as águas, não apenas como contemplação, vendo o pôr do sol em uma orla revitalizada e pretensamente esterilizada, mas como vivência e apropriação, para conhecer e aprender com as dinâmicas das águas. É preciso voltarmos a estar dentro do Guaíba, navegando, se deslocando, remando, velejando ou simplesmente passeando em sua superfície.
Esse talvez seja um dos grandes aprendizados da histórica enchente de maio de 2024: em vez de tentar domar as águas do nosso complexo corpo hídrico, tentar conviver com suas cheias. Mas para isso essa apropriação, de um Guaíba entendido e vivido como território de cultura e natureza, é um elemento fundamental. Em vez de se concretar as comportas, consertá-las e incentivar a passagem para o lado de lá. Em vez de reproduzir o imaginário de um rio sujo e fétido, conhecer seus recônditos nem tão escondidos onde tomamos banho tranquilamente. Em vez de promover uma especulação imobiliária das mansões e marinas nas ilhas e ali se aproveitar da tragédia como janela de oportunidades para retirar as muitas famílias pobres, fortalecer os laços comunitários e promover uma cultura “ilheira” de respeito, aprendizado e convívio com as paisagens inundáveis. Em vez de somente ir no Gasômetro nas tardes de domingo e ser obrigado a escutar músicas de gosto duvidoso vindas das super lanchas, ou ficar zonzo com o barulho dos motores de jetskis: conhecer os canais, os sacos, as ilhas e as praias, os cantos e encantos do Guaíba que comungam natureza e cultura, história e geografia, terras e águas.