10 Janeiro 2025
"O novo altar de Notre-Dame é agradável, de certa forma original, um estranho elegante dosado com cuidado, não perturba nem diz nada sobre o lugar em que se encontra e do qual deveria ser a fonte, na carne de sua forma", escreve Raul Gabriel, artista plástico e pesquisador italiano, em artigo publicado por Avvenire, 08-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O imponente cinzel cerimonial encenado em Notre-Dame, palco sublime para um défilé observador dos poderosos da terra, pretendeu mostrar ao mundo que a grandeza é perfeitamente capaz de apagar as manchas incômodas da história. Todos alinhados, atentos e conformes à corte do espírito domesticado em uma etiqueta impecável, na memória eterna (ou quase) de uma parceria global que vê apenas um perdedor: o símbolo, entendendo-se, é claro, sobre o significado daquilo de que o símbolo deve ser símbolo. No fim as fanfarras são estrangeiras, as sanitizações hostis, a ostentação de poder — mesmo que fosse o mais magnânimo e bem-disposto — distante, quando não totalmente indiferente. O mundo deve a dura carícia da encarnação à sua inevitável e pedagógica degradação, não à ficção das utopias cosméticas, madrinhas cobiçadas de toda marcha luminosa rumo às mais diversas construções ideológicas.
No que me diz respeito, apesar da comovente devoção e do duro sacrifício daqueles que trabalharam nela, a nova Notre-Dame não pode se comparar aos restos pobres, desgastados e gloriosos de sua irmã do outro lado do Canal, em Coventry, atingida por uma destruição muito mais radical, cuja recuperação não renegou nem ocultou o trauma da história, poesia de lágrimas, espinho e interferência entre a Palavra e o mundo. Ela assumiu o peso disso para narrar a urgência capaz de derrubar toda explicitação mística em formato Versalhes. Notre-Dame, o corpo ferido e majestoso encastoado no lado oriental da Île de la Cité, era a ocasião perfeita para contar nos fatos a esperança que assume a dor e a fragilidade, não as esconde, pelo contrário, se orgulha delas como primeira testemunha, forma tangível de um mistério assimétrico e controverso da carne, novidade singular de uma revolução rés do chão, o cristianismo.
Coube ao designer Guillaume Bardet a tarefa de conceber a área litúrgica, o núcleo crucial de Notre-Dame e de toda outra senhora da fé. Aqui não está em questão quem é Bardet nem suas qualidades indiscutíveis. A questão é até que ponto essas qualidades conseguiram servir um contexto de lógicas completamente desalinhadas em relação a um ateliê comercial da Hermès e às narrativas épicas de qualquer poder temporal. Lembro-me das polêmicas furiosas, a meu ver desprovidas de sentido, dirigidas às performances extemporâneas da abertura nas últimas Olimpíadas, evento necessariamente e orgulhosamente secular, livre por definição. Para Notre-Dame, não há nenhum vestígio disso, todos mais realistas do que o rei, achatados no consenso generalizado e acrítico típico das massas que não gostam de ser incomodadas pelo desgaste de um debate ou de um confronto, e poderes que não pretendem questionar sua própria narrativa. O processo complexo e fascinante por meio do qual o símbolo litúrgico pode encontrar uma completude dinâmica e focal que seja síntese do rosto específico de um lugar sagrado, flexionou-se ao longo do tempo em um confronto de salão do mobiliário na esteira desta ou daquela moda, muitas vezes produzindo decorações de pretenso significado didascálico que delineiam uma igreja estetizante herdeira do minimalismo de segunda escolha, em desesperada busca de consenso por uma sociedade determinada a eliminar as frequências anômalas.
Uma revelação digna desse nome é distúrbio por excelência, húmus autônomo que gera seu próprio método, sempre desestabilizador e novo, que não teme a tragédia, a significa, a exibe para seu próprio orgulho. Quando Bardet afirma que queria “formas naturais que transmitissem a ideia de imutabilidade”, ele estigmatiza dois conceitos em contradição com as razões mais revolucionárias da cristandade. O termo natural, musical, verde, inclusivo e genérico remete a uma série de crenças que teria agradado a Osho Rajneesh. O misticismo da encarnação e o método cristão, com aquela acepção de natural, têm pouco a ver, não porque estejam em oposição, mas por serem outras e além, libertação possível do jugo opressivo dos ciclos genéticos, comportamentais e ambientais que regulam e influenciam fortemente a vida cotidiana do mundo animal, vegetal e humano. Em relação à natureza, a revolução cristã é uma hipótese de realização, não servidão, libertação do labirinto de instintos ao qual estamos presos por um destino inescrutável. Ao natural, Bardet acrescenta o imutável.
O imutável é inacessível por definição, não tem nada a ver com minha vida, podemos nos ignorar reciprocamente. Incompatível com a própria ideia de encarnação, a imutabilidade é um fetiche que assimila o fato cristão a um Parnaso impessoal e cristalizado, privado daquela humanidade um tanto falastrona, divertida e genuína das divindades gregas. Um exemplo do trabalho de Bardet são as decorações da Última Ceia exibidas em Sainte Marie de La Tourette em 2017. A intenção do design é clara, um design estético, perfeitamente equilibrado entre austeridade e agradabilidade, culto e sedução, entre um Henry Moore estilizado em porções equilibradas, amputado do supérfluo demasiado exuberante por planos de corte improvisos, e o silêncio emprestado de um Morandi 3D.
Assonância com Le Corbusier, foi dito. Esquecendo que o complexo de La Tourette, por meio de suas formas e ritmos, fala de dissonância e vibração, tudo menos imutabilidade natural, um experimento cinético de percepção cadenciado em volumes brutalistas banhados eventualmente por campos cromáticos como contrapontos a uma partitura magistral de inquietação discreta, diálogo surpreendente e sinestésico pontuado nas métricas irredutíveis de Iannis Xenakis. A cena de Bardet é um produto de gosto notável, pode-se dizer, mas não é a chave de acesso para a questão simbólico-formal de Notre-Dame. O novo altar de Notre-Dame é agradável, de certa forma original, um estranho elegante dosado com cuidado, não perturba nem diz nada sobre o lugar em que se encontra e do qual deveria ser a fonte, na carne de sua forma. O presbitério com seus elementos tem o jeito do cilício intelectual-chique, ex-voto não excessivamente punitivo para penitentes burgueses e abastados de peles sensíveis.
Ele não transmite nem desconforto nem inquietação, é agradável e composto, um altar estatal, drenagem de identidade e entusiasmo que eu veria perfeitamente em um café de autor em Saint-Germain ou em um jardim público como escultura. O autor diz que seus móveis para a Notre-Dame transmitem contemplação e espiritualidade e, naturalmente, é verdade, como é verdade, em termos gerais, para cada fenômeno da realidade. Resta saber qual é essa espiritualidade. Uma ode ao tédio politicamente correta até demais para encarnar uma revolução que, evidentemente, perdeu sua força, perdeu seu rosto, lato client, sufocada em um genérico simbólico neutro.
Da próxima vez que for a Paris, sentirei saudade do gigante ferido capaz de inspirar até mesmo por trás dos tapumes de um canteiro de obras e, para ter algum resquício de energia vibrante, pararei na Place Vendôme, onde a alegria de surpreender, intrigar, provocar, confundir os jogos está intacta, sem qualquer pretensão de ser o que não é, a favor do mercado, capaz pelo menos de fazer você se sentir vivo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Notre-Dame, uma ode ao tédio? Artigo de Raul Gabriel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU