20 Dezembro 2024
"Um estranho ecumenismo racial como subproduto da pobreza: brancos, hispânicos, afro-americanos, asiáticos... compostos na sua miséria, no seu abandono. Eles trocam o que juntaram, nem estendem mais a mão, não te pedem nada", escreve Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 17-12-2024.
A reunião anual da Academia Americana de Religião (AAR), conjunta com a da Sociedade de Literatura Bíblica, aconteceu este ano em San Diego (Califórnia) de 23 a 26 de novembro. No passado, este evento AAR funcionou como um impulsionador do mercado de trabalho acadêmico, bem como uma oportunidade de encontro e discussão com centenas de painéis nos quais se poderia participar.
A crise no recrutamento acadêmico nos Estados Unidos, combinada com a tendência agora bem estabelecida para cargos a termo, enfraqueceu este papel – deixando intacta a possibilidade de se apresentar como uma oportunidade tentadora de networking e de proposição de ideias e investigação tendências no campo das ciências religiosas e teológicas. Um ponto de certo interesse continua a ser a Feira do Livro, que permite perceber as tendências editoriais do mercado anglófono – e, se olhar com atenção, poderá sempre encontrar alguma pérola preciosa para levar consigo para o outro lado do Atlântico.
A enorme quantidade de seminários, workshops e painéis obriga sempre a uma escolha dolorosa – algo realmente bom e de certo interesse fica sempre fora das possibilidades de cada participante individual.
Este ano optei por seguir um duplo registo de escolha: por um lado, a tendência da chamada “descolonização” do pensamento e das práticas, que também nos permitiu interceptar os sentimentos das minorias/marginalizações de vários tipos; por outro, que nos permitiu sentir a atmosfera geral após as eleições presidenciais dos EUA vencidas por Trump – favorecendo a atenção ao papel da religião no contexto político e jurídico dos EUA.
A este duplo enfoque acrescentei uma excursão ao campo teológico católico, para avaliar as impressões aqui deixadas pelo Sínodo recentemente concluído sobre a sinodalidade; acrescentando também a participação num dos painéis organizados pelo grupo de teologia prática (que já tinha achado de grande interesse no ano passado).
Comecemos por estas duas áreas mais tipicamente teológicas e portanto, familiar aos leitores italianos. Com os esclarecimentos críticos necessários, pareceu-me perceber uma avaliação substancialmente positiva em relação ao Sínodo – tanto em termos dos seus resultados como em termos da forma como o trabalho sinodal estava a decorrer. A justaposição de duas fotos da sala de trabalho do Sínodo, uma de um encontro anterior e outra do que acaba de terminar, falou de uma mudança de paradigma de forma muito mais eloquente do que muitas das palavras ditas a respeito do último Sínodo.
Destaca-se também uma profunda mudança geracional entre os teólogos católicos que propuseram relatórios e entre os presentes nas salas de reunião. Uma geração jovem, mais distante no tempo do Vaticano II, mas que não ignora ele e o seu significado; com uma formação menos “tradicional” que a da minha geração e, portanto, mais capacitada para combinar diferentes metodologias de pesquisa teológica – talvez um passo em direção àquela transdisciplinaridade desejada para a teologia católica pelo Papa Francisco.
E esta intersecção e permeabilidade entre métodos é o que há alguns anos caracteriza as apresentações e escolhas de temas no campo da teologia prática. A atenção aos dados empíricos e à leitura histórica das práticas das comunidades religiosas permite-nos não só pensar em “coisas eficazes” que realmente existem, mas também comparar experiências comunitárias e práticas espirituais de diferentes religiões. Uma mesquita, uma sinagoga, uma paróquia católica, uma comunidade protestante dominante, uma megaigreja, quando são vistas e lidas através das suas práticas, dos usos que as caracterizam, dos modos de celebração, deixam de ser fenómenos dogmaticamente heterogéneos entre si e eles adquirem uma proximidade intrigante para refletir e tomar consciência.
Se Paolo Prodi situou o fim da modernidade como a europeização do mundo no início do século XX, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, resta registar a longa onda de colonização ocidental do pensamento, dos corpos e das formas políticas – que ainda perdura até hoje, se ouvirmos quem ainda se sente ocupado por um corpo estranho ao seu ser. Os trabalhos de grupos como a teologia negra, o feminismo islâmico e os nativos americanos foram colocados nesta linha. Os seus caminhos de emancipação, reapropriação cultural e formas de culto religioso ainda estão colocados sob o império do Ocidente – como forma mentis e sistema jurídico.
Daí a reafirmação do espaço doméstico, como um lugar onde as relações de poder entre gêneros são decididas, ou a necessidade de moldar a igualdade efetiva de gênero não fora da jurisprudência islâmica, mas dentro dela, proposta com força pelas mulheres islâmicas. São áreas em que ainda sentem o domínio dos padrões ocidentais, impostos sub-repticiamente como os únicos praticáveis (também) por eles, que se impõem como os melhores e mais desejáveis (por todos, necessariamente).
Colocar em jogo uma teologia islâmica da libertação, inserindo-a no quadro da teoria jurídica do Islão visando a sua reinterpretação a partir das práticas das mulheres (não só nos espaços públicos, mas também nos domésticos) representa uma urgência a ser dada substância e forma – de mulheres, muçulmanos, crentes. Trata-se de imaginar, ou melhor, de praticar, as experiências das mulheres islâmicas cuja possibilidade de afirmação igualitária não coincide necessariamente com a sua ocidentalização. Daí o pêndulo entre os caminhos da descolonização e da reapropriação criativa da própria tradição islâmica.
Na teologia negra, uma libertação epistemológica da supremacia branca anda de mãos dadas com uma prática militante dos corpos. Corpos degradados, deformados pela pobreza, espancados pelas autoridades, mercantilizados pela pobreza econômica, explorados pelos desempenhos desportivos, denegridos pelo bem-estar racial. Organismos que devem estar envolvidos na luta, especialmente agora que o sonho e a imaginação do movimento pelos direitos civis mostram um resultado que é considerado um fracasso.
Um fracasso que priva, acima de tudo, as gerações mais jovens das comunidades afro-americanas de qualquer horizonte e esperança para o futuro, com um aumento dramático de suicídios entre adolescentes negros. Uma atmosfera pestilenta que tem sido chamada de niilismo negro: autodestrutiva, que satura todas as experiências e destrói até a mais tênue esperança de uma vida humana digna.
Surge assim a necessidade de uma retomada da militância, liberta de um sonho que não se concretizou, autoconsciente. Militância que deve impregnar também a leitura do Evangelho, da experiência de Jesus, da sua intenção radical. É neste contexto que se coloca a questão de saber se não chegou o momento de uma retomada da “violência” subversiva contida naquela intenção – um antídoto necessário para uma passividade corrosiva, que agora se alimenta no desespero de experiências sem sentido e sem perspectiva.
Nas margens dos corpos, nos guetos das cidades, nas muitas contradições de uma libertação da supremacia ocidental (muitas vezes branca e cristã), é possível que espreitem as sementes da resistência ao sistema americano, ao desaparecimento de uma bem-estar, pelo menos parcialmente, partilhado no seio da sua sociedade (agora completamente esquizofrênica: composta por pessoas ricas insaciáveis, que não podem deixar de ser assim se quiserem continuar assim, e pessoas pobres privadas de qualquer oportunidade de qualquer melhoria nas condições de vida).
Tendo chegado na sexta à noite, acordo cedo no sábado – serão um pouco depois das 6. Cerca de três horas antes do início do painel que decidi assistir como primeira prova. A temperatura é amena, mas agradável – então me estico pelas ruas de San Diego. Habitada por sombras de corpos humanos, que emergem do cartão com que se protegiam da humidade da noite ou de pequenas tendas improvisadas feitas com sacos.
Um estranho ecumenismo racial como subproduto da pobreza: brancos, hispânicos, afro-americanos, asiáticos... compostos na sua miséria, no seu abandono. Eles trocam o que juntaram, nem estendem mais a mão, não te pedem nada.
A dureza de ser um morador de rua ficou gravada em seus corpos, o sol que brilha mesmo nos meses de inverno marcou seus rostos. Eles não incomodam as pessoas, mas perturbam só por estarem ali. Alguns trabalhadores os apostrofam duramente. Um jovem para o carro, desce e dá-lhes o que sobrou do seu café da manhã. Uma gota num abismo de abandono, mas ainda é algo para comer, um bocado que cai no estômago depois de ser engolido vorazmente por uma boca faminta.
Certa manhã, alguns dias depois, estou esperando meu Uber me levar ao aeroporto – eles ainda estão lá, um memorial quase invisível à face predatória do sonho americano: transformado em fantasma e pesadelo.
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Com os corpos de outras pessoas. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU