07 Março 2014
É uma pena que Francisco ainda não tenha ido além de algumas enunciações de princípio. Não adianta uma teologia das mulheres, é preciso ouvi-las. Dar-lhes voz.
A opinião é da jornalista italiana Bia Sarasini, ex-diretora da revista feminista Noi Donne, em artigo publicado na revista Leggendaria, de fevereiro de 2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Mais de seis milhões e meio de fiéis em Roma, em 10 meses, desde a eleição do Papa Francisco em março de 2013. O triplo dos fiéis convocados por Bento XVI em um ano. Uma realidade que, para quem vive em Roma, é uma experiência concreta: significa o fechamento da Via della Conciliazione na quarta-feira e no domingo, significa uma cidade invadida em qualquer estação, como nunca se tinha visto,e aumento das presenças nos hotéis.
Esses números, divulgados no fim de 2013 pela Sala de Imprensa do Vaticano, não são uma simples contabilidade; eles dizem com imediata evidência o impacto, real e midiático, do papa que vem do "fim do mundo", do cardeal argentino que, surpreendentemente, se tornou o primeiro pontífice não europeu. E a lista pode continuar: o primeiro papa que foi incluído entre os dez "homens-chave do ano" por 50 representantes dos meios de comunicação na China, o Homem do Ano para a Time e a Vanity Fair Itália, um papa que tem uma influência internacional como nunca aconteceu, um papa que não é ignorado pelas redes sociais, ao contrário. Em 2013, o Papa Francisco foi o mais mencionado no Facebook (no segundo lugar estava a palavra "eleição") ao menos uma vez em 152 países, enquanto 55% dos textos analisados vêm dos Estados Unidos, e o restante se distribui entre Europa e América Latina. Sobre o fio desses números, corre a relação entre o Papa Francisco e as mídias, e todas as perguntas que daí surgem.
A partir da consideração cínica, mas sempre verdadeira de que – como bem se viu por ocasião da morte de João Paulo II ou da renúncia de Bento XVI, assim como do próprio conclave que levou à eleição do Papa Bergoglio – o Vaticano, para as mídias, é um teatro de eleição, uma monarquia reinante que, com seus ritos espetaculares, atrai a atenção e aumenta as vendas, assim como os membros da realeza britânica ou outras celebridades.
Como escreveu o teólogo escreve Matthew Fox, dominicano expulso da ordem por Joseph Ratzinger, hoje protestante, no seu livro Cartas ao Papa Francisco: "Muitos se perguntam o que tem a ver a idolatria das mídias pelo papa com a missão de pregar os valores evangélicos de justiça e compaixão...".
Eis, esse é o ponto. Se o ponto de vista das mídias é parte em causa, como se pode considerar o Papa Francisco? Um favorito delas? Um hábil comunicador? Um fenômeno midiático? Ou uma vítima? Ao levar em conta que essas avaliações estão todas presentes nos julgamentos recorrentes e oscilantes sobre o papa, talvez seja bom, para se orientar, voltar ao conclave, à espasmódica expectativa e às previsões erradas.
Uma única jornalista, a argentina Elisabetta Piqué, vaticanista para o jornal La Nación, havia inserido o cardeal Bergoglio entre os papáveis, como ela relata no seu livro Francesco. Vita e rivoluzione. Se há alguma coisa que enlouquece os jornalistas é serem pegos de surpresa, o imprevisto que os desorienta e faz desmoronar o castelo de comentários, emboscadas, armadilhas para capturar pedaços de informação. Surpresa que permite que os fatos, as pessoas fujam das codificações, dos marcos já construídos para contá-los. Portanto, oferece fragmentos de autenticidade, e a comunicação aumenta.
Com o Papa Francisco, essa dinâmica, que está na origem da maior parte da atenção que lhe foi dada, se dilatou e ampliou, fez-se estrutura. No livro de Elisabetta Piqué, encontram-se informações interessantes. Que Bergoglio nunca teve um telefone celular, não usa o computador, não gosta de dar entrevistas, que sempre geriu em primeira pessoa relatórios e comunicações.
Nessa chave, compreende-se a audiência – e não a entrevista – aos jornalistas depois da eleição, na qual ele desmontou qualquer bastidor, contando de modo simples e claro o que tinha acontecido na Capela Sistina, como entendeu que ele era o escolhido, como escolheu o seu nome. Um estilo que não abandonou mais. Como disse o diretor da revista La Civiltà Cattolica, Antonio Spadaro, em entrevista ao jornal L'Espresso: "O Papa Francisco gere a sua corporeidade assim, de maneira plástica, assumindo a postura que a mensagem que ele quer comunicar exige. Ele mesmo se transforma em 'mensagem'. Se isso vale para o seu corpo, também vale para a sua voz e para a comunicação epistolar que lhe é muito cara".
Cartas, telefonemas. Um papa "pastor", que reza missa todos os dias em Santa Marta: as suas homilias cotidianas, publicadas online todas as tardes, disponíveis também em áudio no formato MP3, fazem parte de uma prática espiritual, assim como da sua comunicação. Um desafio consciente em relação à fofoca midiática.
Tudo claro, então? Não se pode ignorar alguns jogos em aberto. O mais evidente é seguramente o jogo ideológico. Como é esse papa? Progressista, conservador? Dependendo da própria inclinação, as mídias se acusam umas às outras de ignorar o que invalida a sua tese. Isso acontece não só na Itália, e não só para questões ligadas à ética "da cintura para baixo", para usar uma expressão do papa.
Nos Estados Unidos, em especial, a Evangelii gaudium tem atraído atenção e rejeição, das quais a rede Fox News se tornou porta-voz, sobre questões econômicas. A dúvida de que esse papa seja marxista é levada muito a sério. Muita atenção, negativa, também vem dos ambientes progressistas, sobre temas que dizem respeito a gays, controle de natalidade, mulheres. Enquanto isso, começa-se a se perfilar um novo peso dos católicos no Partido Democrata, em vista das futuras eleições presidenciais.
O outro jogo, menos visível, mas ainda em aberto, entrelaçado ao ideológico, é o dos derrotados da Cúria Romana. Nomeações, escolhas, gafes, incidentes de percurso. O caminho é cheio de armadilhas, e as mídias desempenham a sua parte. O último, mas já no primeiro lugar, é o jogo dos conteúdos. "Não adianta estar no centro de uma esfera. Para entender, devemos nos 'descolocar', ver a realidade a partir de mais pontos de vista diferentes. (…) Para mim, isto é realmente importante: é preciso conhecer a realidade por experiência, dedicar tempo para ir para as periferias para realmente conhecer a realidade e a vivência das pessoas". São palavras claras, pronunciadas durante o encontro com os superiores das ordens religiosas masculinas no fim de novembro de 2013, relatadas pelo padre Spadaro na Civiltà Cattolica.
As mídias as retomaram, poucas com a atenção que exigiriam. É sobre aquilo que o papa tem a dizer e a propor que se abre o verdadeiro jogo. Se aquilo que chama a atenção do Papa Francisco é a linguagem, a simplicidade, o modo direto das relações, sem filtros e encenações, depois de 10 meses vê-se bem que não é só uma questão de estilo. Ele comunica porque tem algo a comunicar.
Por isso, chama a atenção que, naquilo que ele tem a dizer, ele considera tão pouco as mulheres. Certamente, ele não tem medo delas, beija-as e abraça-as sem temor. Pode até mesmo lavar os seus pés. Não é de se jogar fora, no contexto de uma antropologia clerical educada ao horror do contato. Por isso, é uma pena que ele ainda não tenha ido além de algumas enunciações de princípio. Não adianta uma teologia das mulheres, é preciso ouvi-las. Dar-lhes voz.
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''Não adianta uma teologia das mulheres, é preciso dar-lhes voz''. Artigo de Bia Sarasini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU