17 Dezembro 2024
"A confirmação dessa relação entre elementos da alta cúpula militar – e militares da ativa, frise-se – e redes de desinformação levanta uma série de suspeitas, principalmente sobre o início dessa relação. Afinal, é preciso saber em que momento os militares entraram nessa operação, não?", escreve Orlando Calheiros, em artigo publicado por Intercept Brasil e reproduzido por André Vallias no Facebook, 11-12-2024.
Orlando Fernandes Calheiros Costa é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/Museu Nacional, onde coordenou o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do Núcleo de Antropologia Simétrica - NAnSi. Trabalhou como pesquisador sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, coordenando o Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Atuou ainda como pesquisador colaborador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade - PPBio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Realizou pós-doutorado no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor visitante.
Há exatos 10 anos, entregávamos nas mãos da então presidenta Dilma Rousseff o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, a CNV, que jogava luz sobre alguns dos principais crimes cometidos pela ditadura militar.
O texto era o resultado de um esforço coletivo que, ao longo de dois anos, envolveu agentes do estado, políticos, algumas centenas de pesquisadores e, sobretudo, as vítimas do regime da caserna.
Eu estava entre esses pesquisadores, estava presente na cerimônia, acompanhei os trabalhos que deram origem à CNV, acompanhei também a sua dissolução e o desmantelo de seu legado. Inclusive, acompanhei como se formou nas redes sociais uma espécie de “contra-narrativa” aos trabalhos da Comissão.
Vi como mensagens que desacreditavam as nossas descobertas, e defendiam os militares, se espalhavam por meio de páginas e perfis apócrifos no Facebook, mesmo nos espaços virtuais que pouco ou nada tinham a ver com o assunto.
As discussões surgiam nos comentários de perfis maiores que falavam sobre jogos de videogame, em páginas que falavam da cidade do Rio de Janeiro, e grupos que conversavam sobre investimentos, etc. Nenhum “lugar” parecia estar previamente imune ao tema.
O WhatsApp, que na época começava a despontar no gosto do brasileiro, seguia uma tendência bem semelhante à das redes sociais. A paz dos grupos, já ameaçada pelas eleições de 2014, era continuamente desafiada por mensagens que defendiam os militares do revanchismo da “ex-terrorista Dilma”, como diziam as mensagens.
Para além da diversidade “espacial”, isto é, dos múltiplos fronts ocupados pela ofensiva contra a CNV, na época, me chamava a atenção também o fato de que boa parte dessa iniciativa citava as mesmas fontes, sempre os mesmos blogs, as mesmas páginas de Facebook, os mesmos vídeos, os mesmos canais de Youtube.
Quando eram forçados a desenvolver respostas, recorriam aos mesmos argumentos, aos mesmos exemplos, até a escrita era semelhante.
Perdi a conta de quantas vezes li relatos de pessoas que afirmavam ter convivido com a esposa do Coronel Ustra e sobre como esta costumava levar pedaços de bolos para os “moços e moças” que estavam presos no DOI-CODI.
Sempre a mesma história. Tanto que era óbvio que havia uma articulação coordenada, que aquela iniciativa, que toda aquela “contra-narrativa” contra a CNV, tinha uma origem que poderia, melhor, que deveria ser rastreada.
Fui atrás de alguns perfis e páginas que divulgavam essas mensagens. Os perfis e páginas eram apenas o primeiro estágio de uma caminhada que invariavelmente terminava em um grupo de WhatsApp. Grupos, na verdade, pois cada perfil, cada página, te levava para um grupo diferente.
Grupos diferentes, mas que agiam da mesma forma e recebiam os mesmos materiais.
Havia, claramente, uma articulação. Pior, uma articulação que não apenas tinha como finalidade a divulgação de materiais que negavam os crimes da ditadura militar, como o recrutamento de novos soldados para as fileiras desse empreendimento.
Estratégia que parecia estar dando certo, pois era cada vez mais comum ver esse tipo de material circulando, inclusive amplamente beneficiado pelos algoritmos do Facebook, que já naquela época ampliavam o alcance de postagens consideradas “polêmicas”.
Dito de outra forma, a arquitetura da plataforma favorecia a formação de novos soldados para a operação contra a CNV. Pior, soldados que atuariam como verdadeiros agentes transmissores, vetores desse tipo de informação infecciosa, contagiando e cooptando novos soldados para a iniciativa.
Enquanto isso, na época, ouvia dos meus pares que se tratava apenas de “um punhado de malucos” na internet.
Mas o tempo foi passando, a tática dos “malucos” foi se transformando, a operação parecia ter entrado numa nova fase. Agora não apostavam apenas nas mensagens diretas defendendo o regime militar, no engajamento pela polêmica, mas também numa forma, digamos, mais refinada de comunicação.
Abrandavam o discurso negacionista, disfarçando-o sob a forma de visões alternativas e “politicamente incorretas” da história brasileira, ao mesmo tempo em que aumentavam os ataques à academia e a historiografia brasileira, colocando-as sob suspeita.
“Pregação comunista” diziam, ao mesmo tempo em que pediam que você perguntasse aos seus avós sobre o que foi a ditadura militar.
Estratégia antiga, a mesma utilizada pela indústria do tabaco nos Estados Unidos para manter o consumo de cigarros mesmo após a descoberta de que causavam câncer. Colocavam a ciência sob suspeita ao mesmo tempo em que ofereciam a sua própria versão dos fatos, uma versão, digamos, mais confortável, acessível e familiar.
Em quem acreditar? Nos malditos comunistas que desejavam destruir o país, ou nos nossos avós que vivenciaram a ditadura militar?
Agora, esse negacionismo “soft” não estava mais restrito aos grupos de WhatsApp e discursões em páginas de Facebook, ele aparecia na boca e nas letras de comentaristas políticos que tinham espaços em grandes veículos de comunicação, jornais, rádios e até televisão.
Tornou-se tão aceito que, pouco tempo depois, o então deputado Jair Bolsonaro pode homenagear o Coronel Ustra em seu voto pelo impeachment de Dilma Rousseff sem que nada lhe acontecesse.
E isso não é tudo, como é de se esperar, estas mesmas redes negacionistas não apenas abraçaram a sua candidatura à presidência em 2018, como foram um dos principais pilares da sua comunicação com o eleitorado conservador ao longo de todo o seu mandato.
E esse é o ponto crucial desta crônica. Pois, segundo a polícia federal, essas mesmas redes tiveram um papel crucial na tentativa de golpe de estado orquestrada por Bolsonaro e seus aliados políticos em 2022.
Inclusive, fala-se da participação direta de integrantes da cúpula golpista nesses grupos. Formavam o que a polícia federal chamava de núcleo de desinformação e ataques ao sistema eleitoral da trama golpista.
A confirmação dessa relação entre elementos da alta cúpula militar – e militares da ativa, frise-se – e redes de desinformação levanta uma série de suspeitas, principalmente sobre o início dessa relação. Afinal, é preciso saber em que momento os militares entraram nessa operação, não?
Desde quando conspiram ativamente contra a democracia brasileira, não apenas contra o Estado, mas contra a nossa própria memória? Desde quando se organizam para nos impedir de conhecer a verdade, para acobertar os crimes do seu regime?
Que isso nos sirva de lição, pois a relação dos militares com redes de desinformação e promoção do negacionismo histórico mostra como esse é um campo crítico da disputa política. Algo que vem sendo sistematicamente ignorado pelo campo progressista. Continuamente diminuído como um “punhado de malucos” na internet.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O golpe foi um plano de longo prazo. Artigo de Orlando Calheiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU