03 Dezembro 2024
O artigo é de Martin Scheuch, ex-membro do Sodalício de Vida Cristã, publicado por Religión Digital, 30-11-2024.
As autoridades do Sodalício de Vida Cristã sempre acreditaram e defenderam que a instituição possui um carisma divino, ou seja, um “dom gratuito que Deus concede a algumas pessoas em benefício da comunidade”, conforme definido pelo dicionário da Real Academia Espanhola. Argumentam que a aprovação do Sodalício como “sociedade de vida apostólica de direito pontifício”, em 8 de julho de 1997, por obra do Papa João Paulo II, confirmaria este dom recebido do Espírito Santo.
No entanto, se analisarmos um pouco além da narrativa oficial que desejam transmitir à opinião pública, chegaríamos à conclusão de que o Espírito Santo — se é que existe — teria sido o último a saber, pois tudo isso parece mais fruto de um trabalho de lobby eclesiástico com participação de cardeais e bispos de reputação duvidosa.
Este trabalho de lobby teve seu momento estelar no V Congresso Internacional de Nova Evangelização rumo ao Terceiro Milênio (Lima, outubro de 1995), o último de uma série de congressos sobre reconciliação organizados pelo Sodalício ao longo do tempo em Arequipa (1985), em El Callao (1986), em Tacna (1987) e novamente em El Callao (1989). A justificativa era aprofundar uma determinada linha de pensamento (a teologia da reconciliação), mas, na realidade, esses eventos serviram para tecer uma rede de contatos eclesiásticos que permitiriam a expansão da instituição para outros países e seu avanço na escala de poder dentro da Igreja Católica.
Como exemplo, pode-se mencionar que o cardeal colombiano Alfonso López Trujillo (1935-2008), que tomou o Sodalício sob sua proteção, foi convidado de honra em quatro desses congressos “teológicos”, faltando apenas ao de Tacna, em 1987. Sabe-se, por investigações jornalísticas citadas pelo jornalista francês Frédéric Martel em seu livro Sodoma: Poder e escândalo no Vaticano (2019), que López Trujillo teria tido encontros passionais clandestinos com jovens trabalhadores sexuais, que ele maltratava violentamente. Também apoiou paramilitares na Colômbia, responsáveis por assassinatos e violações de direitos humanos, conforme um relatório de 2016 da Pacific School of Religion (Berkeley, Califórnia). Isso demonstra que o prelado colombiano era a pessoa ideal para promover uma instituição onde, quando recebeu a aprovação pontifícia, já haviam ocorrido abusos sexuais e eram comuns práticas disciplinares que se assemelham a torturas físicas e psicológicas, constituindo verdadeiras violações de direitos humanos fundamentais.
José Rey de Castro, ex-sodalício que viveu 18 anos sob o regime de escravidão moderna imposto por Figari, afirma, sobre o evento de 1995, que "os grandes convidados daquele congresso de reconciliação seriam os que posteriormente apoiariam a aprovação pontifícia do SCV, já que tiveram uma ótima impressão da instituição durante o evento e viram uma boa ‘vitrine’ preparada pelo SCV." Essa vitrine incluiu decisões anômalas, como a aceleração de profissões perpétuas (ou consagração à perpetuidade) de numerosos sodalícios — sem considerar se realmente tinham vocação para a vida religiosa —, o aumento significativo de aspirantes ao Sodalício, bem como a fundação de novas casas comunitárias. Além disso, houve o aumento de sodalícios enviados para formação nas casas sodalícias em San Bartolo, onde inúmeras atrocidades foram cometidas.
No evento esteve o cardeal James Francis Stafford, então arcebispo de Denver, que em 2016 visitaria Luis Fernando Figari em seu retiro romano, quando os abusos já eram amplamente conhecidos. O mesmo fez o cardeal Francisco Errázuriz, famoso por encobrir abusos, dizendo que estava visitando um “velho amigo”.
O Sodalício não abandonou seus antigos hábitos e tenta continuar exercendo suas influências para reverter as expulsões de 14 de seus membros, incluindo seu fundador, Luis Fernando Figari, que foram separados da instituição. Sobre as 10 primeiras expulsões, comunicadas oficialmente em 25 de setembro deste ano, o Sodalício emitiu um comunicado cinco dias depois, em 30 de setembro, afirmando que aceitava "essa decisão com espírito de humildade e obediência ao disposto pelo Santo Padre". No entanto, em relação às expulsões de José Ambrozic e do Pe. Luis Ferroggiaro, ocorridas em 21 de outubro, e às de Pe. Jaime Baertl e Juan Carlos Len Álvarez, em 23 de outubro, não houve qualquer pronunciamento até o momento.
Além disso, o Pe. Jaime Baertl se recusa a reconhecer sua expulsão, pois isso significaria admitir suas graves infrações, ou seja, que se beneficiou indevidamente graças à Concordata firmado entre o Estado peruano e o Vaticano. Baertl utilizou as organizações do Sodalício e a mão de obra barata dos sodalícios para acumular grandes quantidades de dinheiro, garantindo também poder político e o status de queridinho de empresários no país.
Desde o início, seguindo uma estratégia comum no Sodalício, Baertl teria tentado minar a credibilidade da Missão Especial do Papa Francisco — composta por D. Charles Scicluna e D. Jordi Bertomeu —, enviada ao Peru em julho de 2023 para investigar os abusos do Sodalício. Isso foi feito por intermédio de terceiros, supostamente sem vínculos diretos com a instituição. Entre esses, destaca-se Giuliana Caccia, que se apresentou de maneira sorrateira a D. Bertomeu como vítima de duas das vítimas mais emblemáticas do Sodalício, José Enrique Escardó e Martin Scheuch, conhecidos por sua determinação em denunciar os abusos cometidos no contexto do sistema de formação e disciplina do Sodalício. Contudo, o que ela realmente apresentou foi um punhado de mensagens na rede social X (antigo Twitter).
Outro personagem é Sebastián Blanco, ex-sodalício que acreditava que, oferecendo um depoimento positivo sobre o Sodalício, poderia neutralizar os testemunhos de abusos apresentados à Missão Especial. Entretanto, o que Caccia não contou a Mons. Bertomeu é que Sebastián Blanco é seu cunhado, já que o atual marido de Caccia, Ignacio Blanco, também é ex-sodalício e por anos foi secretário pessoal de Luis Fernando Figari.
Há mais de 15 anos, Giuliana Caccia trabalha em organizações vinculadas ao Sodalício, apresentando-se como católica devota, defensora da vida e da família e crítica da homossexualidade, ao mesmo tempo em que age como troll nas redes sociais, prejudicando até mesmo familiares próximos. Em suas apresentações no Congresso do Peru, Caccia insiste que valoriza a família, enquanto na prática promove desavenças e espionagem entre parentes.
Neste contexto, os esforços de Jaime Baertl teriam se concentrado especialmente na tentativa de desacreditar D. Bertomeu. Isso culminou, em agosto deste ano, com uma denúncia apresentada por Caccia e Blanco contra Bertomeu por “violação do segredo profissional”. A denúncia, embora sem fundamentos para prosperar, serviu como instrumento para desqualificar o trabalho da Missão Especial, de D. Scicluna e até mesmo do Papa Francisco.
Em 23 de novembro, Caccia e Blanco foram recebidos pelo Papa em audiência privada, organizada por D. Paolo Rocco Gualtieri, Núncio Apostólico no Peru, supostamente sob pressão de bispos alinhados ao Sodalício. Esse encontro resultou na anulação do preceito penal contra Caccia e Blanco, sem que eles se retratassem. Contudo, os dois não se apresentaram como ligados ao Sodalício, já que o Papa Francisco tem evitado reuniões com membros dessa instituição.
D. Gualtieri escolheu passar à história como alguém que prioriza política em detrimento da justiça às vítimas do Sodalício, ignorando o impacto dessa decisão sobre o trabalho diligente da Missão Especial. O encontro de Caccia e Blanco com o Papa é um ultraje às vítimas, evidenciando uma manobra orquestrada por Jaime Baertl.
Por isso, é essencial lembrar a D. Gualtieri que justiça deve prevalecer sobre política no caso Sodalício. Os recursos acumulados indevidamente pelas empresas vinculadas à organização, sob o comando de Baertl, devem ser destinados às vítimas, encerrando um processo que avançava bem e não deveria ser interrompido. Caso contrário, será hora de organizar uma campanha para denunciar a Concordata entre o Peru e o Vaticano após as eleições de 2026. Se o Vaticano deseja fazer política às custas das vítimas, deixando-as sem reparação, que pelo menos não as associe às suas práticas financeiras obscuras. Aviso dado.
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Caso Sodalício: o jogo de D. Gualtieri, núncio apostólico no Peru. Artigo de Martin Scheuch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU