Por: Jonas | 03 Mai 2016
O Sodalício de Vida Cristã lida, neste momento, com a pior de suas crises. Uma tempestade que obrigou seus superiores a tomar medidas duras. A mais clamorosa foi a condenação pública de seu próprio fundador, Luis Fernando Figari. Algo nunca antes visto, somado a um compromisso pela mudança e a transparência. Porém, tudo isso pode não ser suficiente, caso não mude pela raiz a cultura que permitiu um nefasto clima interno. Agora, o futuro dessa instituição está nas mãos da Santa Sé.
A reportagem é de Andrés Beltramo Álvarez, publicada por Vatican Insider, 28-04-2016. A tradução é do Cepat.
É iminente o veredicto vaticano sobre este movimento de origem peruano, fundado em 1971 e que hoje tem presença em diversos países. A Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica já tem em seu poder diversos relatórios das circunstâncias pelas quais a instituição passa. Um deles redigido por um “visitador” enviado por ela mesmo, o bispo de Chota Fortunato Pablo Urcey.
Com esse, outros dois documentos fundamentais: As conclusões de uma comissão independente, formada por cinco notáveis (também chamada “de ética para a justiça e a reconciliação”), e o relatório preliminar de dois investigadores estrangeiros, a ex-agente do FBI estadunidense, Kathleen McChesney, e o consultor irlandês Ian Elliot.
Destes três relatórios, a Santa Sé dará maior peso ao de Urcey, por ser bispo e seu próprio delegado. Os outros são produto de iniciativas autônomas. Muito louváveis, algumas sem precedentes, mas – no final das contas – tomadas pelos próprios investigados.
É certo que, nos últimos meses, a cúpula do Sodalício tomou a iniciativa com decisões em nada desejáveis. Declarou “persona non grata” ao fundador, pediu perdão por diversos meios às vítimas, anunciou sua vontade de empreender uma reforma e adotou um compromisso com a transparência, mediante uma agressiva estratégia midiática.
Além disso, conseguiu concretizar o que algumas vítimas do pedófilo Marcial Maciel reivindicaram com insistência para os Legionários de Cristo e nunca obtiveram: que uma comissão independente de especialistas investigue as denúncias de abuso. A respeito de todas estas medidas, existe um consenso praticamente unânime, inclusive entre os mais críticos: eram necessárias e são positivas. No entanto, constituem apenas uma parte da solução de um problema mais profundo.
O Sodalício desenvolveu, junto a suas grandes obras e não poucas boas ações de seus membros, uma “cultura” interna reacionária e repressiva, conforme constatou o demolidor relatório da comissão de ética. Um ambiente que se perpetuou graças a uma estrutura vertical que permitiu e que, em alguns casos, alimentou os abusos. Em uma mesma organização se deram, simultaneamente, o bem e o mal. Quase como um “dr. Jekyll e mr. Hyde” institucional.
Por décadas e em diversos níveis, essa “cultura” se arraigou, criando um sistema de más práticas que incluiu não só os abusos em si, mas também uma obstinada negação privada e pública das denúncias das vítimas, que se converteram em traidoras ou em inimigas declaradas. Tudo isto se manteve em pé graças a uma compreensível – ainda que não justificável – atitude coletiva de “elite sob tiroteio”.
“É um ataque contra o Papa e a Igreja”, repetiam os Legionários de Cristo, em fins dos anos 1990, quando surgiram as primeiras denúncias contra Maciel. Foi preciso passar anos até que a Santa Sé reconhecesse o tremendo dano causado àqueles que sofreram os abusos do sacerdote mexicano, duplamente vítimas, primeiro em seu corpo e, depois, em sua honra pela estratégia de defesa do fundador. Ainda hoje a congregação sobre os estragos de todo aquele processo.
O Sodalício apenas começou a enfrentar esta patologia, sempre à espreita. Um exemplo concreto disto envolve o superior geral e sua reação extemporânea ao relatório final da Comissão de Ética para a Justiça e a Reconciliação.
Poucas horas depois de publicado, no dia 16 de abril, Alessandro Moroni minimizou o conteúdo do mesmo em uma mensagem a todos os membros. “Acreditamos que o relatório apresenta uma visão parcial e enviesada de nossa comunidade por estar baseado exclusivamente no testemunho daquelas pessoas que tiveram uma experiência sumamente negativa do Sodalício”, escreveu. Mais adiante apontou: “Algumas coisas que o relatório destaca são verdade, outras não e, outras, foram verdadeiras em algum momento de nossa história. Nós as reconhecemos e pedimos perdão por elas”.
Essas linhas foram redigidas pelo próprio superior que, dias antes, havia gravado um intenso vídeo no qual pedia perdão às vítimas e anunciava a reforma. Não esperava que reluziriam os sérios problemas institucionais que propiciaram os abusos? Dias depois, Moroni se corrigiu, reconhecendo que o relatório da comissão lhe causou uma “primeira dor”, mas que “descreve com muita clareza” a experiência de sofrimento das pessoas “que ferimos”.
Como ele, outros altos membros do Sodalício entendem que a comissão se excedeu e passou da investigação a emissão de um juízo de valor sobre toda a sociedade de vida apostólica. E mais abaixo não poucos membros consideram que o tratamento público ao escândalo é “parte de um circo” e que os denunciantes são movidos apenas pelo desejo de destruir o Sodalício.
Contudo, é claro que os abusos não teriam sido possíveis sem essa “cultura” interna que alimentou o culto à personalidade do fundador e que confundiu os abusos físicos flagrantes com exigências legítimas, em um ambiente que – voluntária ou involuntariamente – despojou as vítimas de sua capacidade de reação.
Modificar essa cultura é o mais complicado de um processo que já iniciou e não tem retrocesso. Como bem disse Moroni, em sua mais recente vídeo-mensagem, acompanhado pelos integrantes do Conselho Superior, os membros do Sodalício estão “em um momento decisivo de sua história”. Eles solicitaram ao Vaticano que expulse Figari e que intervenha na comunidade, mediante a nomeação de um delegado especial. Existem mais probabilidades que ocorra o segundo pedido.
Não é certo que a Santa Sé expulse o fundador. Tirá-lo do Sodalício seria como perder um controle efetivo sobre ele. Talvez poderia optar por mandá-lo a um convento onde possa espiar suas culpas. É muito possível que não retorne ao Peru, onde o processo penal contra ele está longe de prosperar, em razão da prescrição dos crimes pelos quais é acusado.
Porém, a decisão do Vaticano não colocará ponto final à crise. A verdadeira reforma passará, inescapavelmente, por uma profunda purificação institucional. Uma renovação sem limite de tempo. Um inevitável duelo interior, inclusive para aqueles que seguem lá dentro e não tem nada a ver com o mal cometido. E, sobretudo, por uma renovação da cúpula, com a eleição de novos superiores alheios às práticas do passado e capazes de recuperar a confiança perdida.
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Abusos: o futuro do Sodalício nas mãos da Santa Sé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU