27 Novembro 2024
Nascida em 1940 em Lhasa, então capital do Tibete independente, Jetsun Pema é irmã do Dalai Lama, a autoridade máxima do budismo tibetano. Responsável pelos projetos educacionais para os tibetanos que fugiram após a ocupação chinesa, em particular os famosos Tibetan Children’s Village, Ministra da Educação do governo no exílio, a “Mãe do Tibete” é uma figura de referência para os 150.000 tibetanos fora do país, para os milhões de tibetanos submetidos à repressão chinesa e para aqueles no mundo sensíveis à sua causa. Em 18 de abril passado, recebeu o Prêmio Pearl S. Buck na Virgínia. Publicou sua autobiografia com Gilles van Grasdorff em francês em 1996 (Tibet mon histoire, Éditions Ramsay) e em italiano em 1998 (Tibet, la mia vita, Armenia). Piero Verni, já autor de uma biografia do Dalai Lama, dedica a ela a “biografia autorizada” intitulada Amala (Ubiliber). O livro se abre com um prefácio de Claudio Cardelli e se encerra com uma extensa bibliografia e uma cronologia da vida da protagonista e da história tibetana. Às vésperas de sua viagem à Itália, onde apresentará o livro em várias cidades, Jetsun Pema conversa on-line com 'la Lettura', de Nova Délhi.
A entrevista com Jetsun Pema é de Marco Ventura, publicada por “la Lettura” 24-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Sobre sua denúncia da opressão chinesa ao povo tibetano, da sua cultura e religião, a senhora declarou ao autor da biografia: “O tempo está quase acabando, é importante que algo aconteça enquanto Sua Santidade o Dalai Lama ainda estiver vivo”.
Sua Santidade cumprirá 90 anos no ano que vem. Eu estarei com 85. Resta-nos pouco tempo. Esperamos que algo aconteça dentro de poucos anos.
Não houve mais nenhum contato oficial entre os representantes de Sua Santidade e o governo chinês desde 2010.
Exatamente.
Vocês têm algum sinal da China de que alguma mudança pode estar no horizonte?
Todos os tibetanos esperam que possa haver alguma mudança. Como Sua Santidade sempre diz, espere o melhor e prepare-se para o pior. Desde que você tiver esperança na vida, isso é positivo. Para nós, tibetanos, é sempre bom ser otimistas e esperar que algo aconteça no futuro, até mesmo num futuro próximo.
Essa atitude pode ser atribuída ao budismo?
Nós, budistas, acreditamos que o fato de termos nascido como seres humanos é um dom muito precioso. Que devemos usar da melhor maneira possível. Também acreditamos no renascimento, é claro. Nesta vida, nos preparamos para a próxima. E esperamos que algo bom aconteça. Devemos fazer o melhor com nossa vida, torná-la significativa.
A senhora nasceu no mesmo ano em que seu irmão assumiu o trono de Lhasa. O que isso significa para a senhora?
É um grande privilégio. E uma grande responsabilidade.
O que significou em sua vida ter um irmão tão importante?
Nunca considerei Sua Santidade como meu irmão. Quando eu era criança, ele já morava em Potala (a residência oficial do Dalai Lama em Lhasa, ndr). Quando ia visitá-lo com meus pais, percebia o grande respeito que tinham por ele. Mesmo quando criança, ele representava algo especial, algo elevado. É o meu guia espiritual.
Depois de uma longa separação, vocês se encontraram em 1959 em Siliguri, na Índia. A senhora já estava morando na Índia há algum tempo. Sua Santidade tinha acabado de fugir de Lhasa durante a revolta reprimida de forma sangrenta pelos chineses. Do que se lembra daquela época?
Depois de uma viagem conturbada, ele conseguiu atravessar a fronteira. O cansaço se unia com a depressão por causa daquelas circunstâncias trágicas. Ele tinha apenas 24 anos e eu ainda era estudante. Eu estava feliz por ele ainda estar vivo, mas a situação era muito triste. Ele teve que deixar tudo para trás, era um refugiado na Índia. Eu estava preocupado com ele e com nosso futuro.
O Tibete é a causa de sua vida.
Milhares de tibetanos seguiram Sua Santidade para o exílio. Sua preocupação passou a ser cuidar deles. Ele assumiu uma grande responsabilidade. E eu senti que, por minha vez, tinha que assumir a responsabilidade de servir à causa tibetana e me tornar útil de todas as formas possíveis.
E assim nasceu a missão educacional?
Sua Santidade confiou à minha irmã mais velha a responsabilidade de cuidar das crianças. Depois de quatro anos, ela morreu. Eu havia retornado de meu período de estudos na Europa e nos Estados Unidos. Sua Santidade me pediu para substituí-la. Aceitei com grande humildade.
A senhora pôde retornar ao Tibete apenas em 1980 para uma breve visita, sob a estrita vigilância das autoridades chinesas. Como foi visitar Takster?
Eu nunca tinha ido a Takster, a aldeia de onde vinha a minha família. A visita me trouxe lembranças das histórias que ouvi de minha mãe sobre a vida deles naqueles lugares. Em 1980, tudo havia mudado. Restavam apenas cinco famílias tibetanas, as outras eram todas chinesas. O governo havia demolido a casa de família para construir um novo prédio em seu lugar. Foi uma experiência emocionalmente difícil e foi triste ver a extrema pobreza das pessoas no vilarejo.
Como era a situação no restante do país que teve permissão para visitar?
As condições eram terríveis em todo o Tibete. Nenhuma família havia sido poupada das mortes ou das deportações. Nunca me esquecerei dos três meses daquela viagem. Não houve um dia sequer em que eu não chorasse.
Também testemunhou a devastação dos monastérios.
Vi que um dos maiores mosteiros de Amdo havia sido arrasado. Não restou uma única pedra. Em seu lugar, havia campos de mostarda.
Que notícias tem hoje daqueles que vivem do outro lado do que vocês chamam de “cortina de bambu”?
Nenhuma notícia. O Tibete está completamente fechado. Ninguém pode sair ou voltar. Nem mesmo os tibetanos com passaporte italiano ou estadunidense, ou de outro país ocidental. Eles não podem nem mesmo visitar o país. Especialmente o Tibete central. O país está isolado.
Desde 2009, contabilizaram 169 casos de tibetanos que atearam fogo em si mesmos em protesto contra a ocupação chinesa. São mulheres, homens, monges, leigos, idosos, jovens e até adolescentes.
“Eles se imolam porque estão desesperados. Mas cuidado: eles não destruíram nada, apenas se autoimolaram. Queremos apenas que Sua Santidade possa retornar ao Tibete”. Como avalia essa “temporada das autoimolações”?
Esse autossacrifício é realmente preocupante. Como budista, a autoimolação é algo que só se pode fazer em casos de extremo desespero. Caso contrário, tirar a própria vida é contra a nossa religião. Mas essas pessoas não têm mais nada a dar, apenas suas vidas, para que a comunidade mundial perceba a gravidade da situação. Entristece-nos demais que isso esteja acontecendo, também porque o mundo parece não perceber. Mas continuamos a ter esperança.
Vocês se sentem sozinhos em sua luta?
A China é um país muito poderoso. Nós somos um pequeno grupo de pessoas. Não temos condições de enviar a nossa mensagem para que a comunidade mundial ouça o que está acontecendo no Tibete. Mas continuamos em frente.
Teme que o governo chinês possa interferir no reconhecimento do próximo Dalai Lama?
A China não acredita na religião. Os comunistas não acreditam na religião. A reencarnação, por outro lado, está ligada à nossa religião. O reconhecimento tem a ver com o budismo. Não tem nada a ver com os chineses.
Como membro da família do Dalai Lama, a senhora deveria ter levado uma vida monástica. Em vez disso, se casou, ocupou cargos públicos e foi ministra. Por quê?
Minha mãe sempre me disse: você recebeu uma educação e tem que pensar por si mesma, sua vida está em suas próprias mãos. Como diz o Buda: você é seu próprio mestre. Sempre achei que, antes de tudo, eu tinha que fazer algo para ajudar Sua Santidade e a causa tibetana. Depois disso, minha vida é minha vida e tenho de vivê-la como quero vivê-la. Afinal de contas, Sua Santidade nos deu a democracia, devemos aproveitar a liberdade que vem com ela.
O que o levou a aceitar um papel no filme “Sete anos no Tibete”, lançado em 1997?
O diretor Jean-Jacques Annaud me pediu para participar no papel de minha mãe. Eu quis assistir a um de seus filmes. Assisti a O Urso e fiquei muito impressionada. Percebi a presença de ensinamentos budistas no filme. Então, aceitei. Meus irmãos me disseram: Vá, seja nossa mãe.
Como foi atuar ao lado de Brad Pitt?
Eu nunca havia atuado. Annaud sempre foi gentil e compreensivo. Quando ele me via nervosa no set, sempre me dizia: faça o que sua mãe teria feito e tudo ficará bem.
O filme foi rodado na Argentina.
Os figurinos, as cenas... para todos nós, tibetanos, o set foi como voltar ao passado. Gostei de reviver o Tibete de antigamente. Foi uma experiência maravilhosa que enriqueceu minha vida. De alguma forma, ela me deu uma noção profunda de como era o Tibete, de como os tibetanos viviam.
O budismo parece se preocupar muito com a tradição, mas também com a ciência. O que pensa sobre isso?
Para mim, o budismo é um modo de vida. É como você vive sua vida. Sua Santidade sempre diz que é preciso desenvolver uma mente analítica. Tente analisar cada coisa e ver a realidade das coisas. Isso é o budismo: ver a realidade das coisas. Para fazer isso, é preciso uma mente afiada, é preciso saber observar de diferentes perspectivas. É isso que o budismo nos ensina. O principal é como descobrir a realidade das coisas, de todos os ângulos. Assim, você terá a perspectiva de que precisa e isso é muito importante na vida. Você precisa conhecer os prós e os contras.
Sua Santidade aprecia se encontrar com os cientistas e dialogar com eles.
Tudo deve estar claro em sua mente. Essa é uma maneira lógica e científica. É por isso que o budismo e a ciência têm muito em comum, como Sua Santidade sempre diz. O budismo tem muito a ver com a mente, com seu funcionamento profundo. Com a ciência da mente.
Como a senhora se sente em relação ao seu papel como mulher e como líder para o mundo?
Como um exemplo para os outros, na medida em que você é capaz de usar sua liberdade, sua inteligência, para fazer algo que valha a pena, para tornar a vida plena de significado. Como mulheres, temos muitas responsabilidades. Também como mães. Sua Santidade sempre enfatiza a importância de ser mãe. O papel da mãe é muito importante para as crianças, e as crianças são o futuro do mundo.
A biografia é intitulada “Amala”. Esta palavra significa mãe, não é?
Sim, mas agora não sou mais amala, mãe, sou mola, avó! (risos)
Voltemos à reencarnação, por favor. Pode explicar o que acontecerá? Sua Santidade terá condições de guiar sua própria reencarnação?
Essa é a pergunta que muitos estão fazendo. Muitos tentam responder. Mas cabe somente a Sua Santidade responder. No próximo ano, ele completará 90 anos, e esperamos que guie o que terá que acontecer. Ele ainda está bem, depois da operação no joelho ele pode andar muito melhor. É muito ativo. Veremos o que fará. A decisão sobre a reencarnação cabe a ele. E a mais ninguém.
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Choro de dor pelo amado Tibete. Entrevista com Jetsun Pema - Instituto Humanitas Unisinos - IHU