26 Novembro 2024
Com jornadas exaustivas e pressão no trabalho, mal há tempo para preparar refeições dignas. “Guloseimas” das corporações alimentícias são a opção mais barata e rápida. Fim da escala pode abrir outro debate: há comida além dos ultraprocessados.
O artigo é de Susana Prizendt, arquiteta e urbanista, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (CPCAPV) e do MUDA-SP, publicado por Outras Palavras, 25-11-2024.
Quanto tempo demora para abrir um pacote de salgadinho do tipo chips? Ou retirar o lacre de um refrigerante? Sem dúvida, são ações que levam apenas poucos segundos e não costumam exigir o menor esforço físico ou mental. Agora me diga: quanto tempo uma pessoa demora para preparar uma refeição, mesmo que seja um simples Pê Efe, do tipo arroz-feijão-mistura-salada?
Pois é, quem já cozinhou sabe muito bem que o preparo de qualquer comida envolve desde o planejamento do que comprar, até o destino dos resíduos que são gerados no processo, passando pela compra em si, pela higienização e por processos como descascar, picar, espremer, temperar, refogar, fritar, assar… Tudo isso apenas se considerarmos que os ingredientes serão comprados, e não produzidos desde a terra pela pessoa que está pilotando as panelas. Sim, exige esforço. Sim, exige paciência. Sim, exige tempo.
Quando um trabalhador ou uma trabalhadora (lembrando que as mulheres vêm assumindo o papel de “chefas de família” cada vez mais), termina seu expediente de trabalho remunerado (já que o não remunerado, arduamente feito pelo sexo feminino, nem costuma ser considerado como trabalho), após 8, 10, 12 horas ou mais de labuta, e inicia a jornada de volta para casa, quais as condições que possui para dar conta das tarefas enumeradas no parágrafo anterior e preparar sua própria comida ou a da sua família?
Não é à toa que vemos a multiplicação de vendinhas ou banquinhas de guloseimas nos locais em que as pessoas acessam o transporte público. Passar a mão num pacote e numa garrafinha de qualquer coisa pra dar uma forrada no estômago enquanto se espera o ônibus ou se caminha para uma estação de trem é quase uma questão de sobrevivência imediata para muita gente. Fome, sede, cansaço, frustração, preocupação… são apenas alguns dos problemas que parecem diminuir um pouco ao mastigar algo que tenha sal, gordura, açúcar e aditivos calculados na medida para um cérebro ávido por alguma recompensa frente à dureza da realidade.
Pouca gente costuma estabelecer conexões entre a forma como os seres humanos são explorados enquanto mão de obra e o aumento do poder das corporações em diversos segmentos, incluindo o de alimentos. A relação mais óbvia é a que aponta uma superexploração de quem vende sua força de trabalho por parte de quem é responsável por remunerar essa massa de gente, a famosa mais valia, que o marxismo tão bem conceituou. Assim, a concentração de riquezas tende a manter uma elite no topo da pirâmide, enquanto o povão se esfalfa na base.
Mas essa é só uma das pontas no domínio corporativo. Junto com a vampirização das forças da ralé, através de jornadas de trabalho estafantes, vem uma série de consequências que a tornam mais e mais dependente das próprias grandes corporações. Afinal, produzir dificuldades para vender “facilidades” é uma constante na matemática do capitalismo e isso é especialmente verdade quando se trata da indústria alimentícia.
Quanto menos tempo você tiver para cuidar do que vai comer, mais vai dar graças aos deuses ou deusas em que acredita por ter aquele pacote de qualquer coisa pronta para comer bem ali no caminho que vai da casa para o trabalho e vice-versa. Se ele é apenas repleto de calorias vazias e sem nutrientes e não vai realmente alimentar você; se ele é feito para viciar seu paladar e seu sistema neuroquímico, e fará você ficar dependente do seu consumo; se ele é caro (em termos do valor por quilo, já que alguns chips tem peso de poucos gramas) e não vale o esforço que você fez para ganhar seu dinheiro suado; se ele vai estimular o desenvolvimento de uma infinidade de doenças e reduzir sua própria capacidade de seguir vivendo e trabalhando; se ele vai deixar um rastro de destruição socioambiental e acelerar nosso caminho rumo ao colapso civilizatório… tudo isso fica para depois, o presente é mais urgente do que o futuro, não é? Como disse Betinho, “quem tem fome, tem pressa”.
É assim que as megaempresas de agrotóxicos, de commodities, de produtos ultraprocessados e de remédios atingem lucros exorbitantes e ampliam seu poder sobre governos e sociedade. Desde o pacote agrícola que une venenos, fertilizantes químicos e sementes geneticamente modificadas, usado nas monoculturas de soja, milho e cana-de-açúcar (ingredientes fundamentais para o preparo das guloseimas industrializadas), até os comprimidos que as pessoas precisam tomar todos os dias para controlar as famosas DNTs – Doenças Não Transmissíveis -, que são decorrentes da alimentação inadequada, o sistema é feito para sugar nossas terras, águas, corpos e mentes, nutrindo apenas os bolsos de uma ínfima minoria de homens brancos e sem noção de limites. É nessa onda em que surfam o mercado especulativo e as plataformas digitais, manipulando números, mas também sentimentos e destinos.
Todas as vezes em que eu me lembro que um único bilionário do país possui uma fortuna equivalente à metade mais pobre da população brasileira, ou seja, de 107 milhões de pessoas, me belisco para ter certeza de que isso é real e deixamos nossa civilização globalizada chegar a uma situação tão absurda. Mas preciso me beliscar uma segunda vez quando mentalizo que é essa minoria ultra rica (apoiada pela mídia corporativa e por um contingente de aspiradores que querem entrar nesse clube VIP) que vocifera para que se cortem “gastos” governamentais com programas que mal e porcamente ainda garantem um mínimo de dignidade a bilhões de pessoas no mundo.
Aqui no Brasil, convencionou-se chamar essa elitizinha emproada de “a turma da Faria Lima”, já que a avenida paulistana reúne a nata do financismo do país, grande responsável pelo terrorismo econômico sob o qual vivemos. Eu chamo de “a turma da farinha é minha”, dado que seus integrantes se acham donos da base material que nos sustenta, podendo usufruir dela como der na telha e decidir o quanto teremos que apertar os cintos no regime financeiro que nos é imposto. Sim, a “farinha” tem dono, assim como outros pós brancos que circulam por aí e cujos controladores ajudam a eleger prefeitos, governadores e bancadas país afora.
Essa concentração de grana está diretamente relacionada ao cenário climático atual, seja no modo como o ambiente é alterado para proporcionar os lucros obtidos, seja na falta de investimento em políticas sociais e ambientais sob o pretexto de que é preciso pagar a dívida pública impagável que temos com o Deus Mercado.
Vivemos em uma época em que a palavra colapso é um termo que os ouvidos têm que ir se acostumando, dado o grau de desequilíbrio planetário. E quem paga – sempre pagou e sempre pagará – a conta da aventura capitalista na face da Terra é a maioria que não se refestelou com ela. No caso do caos climático, o pagamento será, cada vez mais, com as próprias vidas, sobretudo as do sul global. No entanto, se não podemos mais impedir que as tragédias desabem sobre nossas cabeças, ainda poderíamos abrandá-las e nos preparar para lidar com elas.
Sabemos que taxar a nata bilionária, que tanto se esbaldou consumindo o planeta, possibilitaria bancar um robusto conjunto de ações para atenuar o drama que nossa espécie está vivendo – e que viverá ainda mais dolorosamente daqui para frente. É, portanto, fundamental engrossar o coro da mobilização #TaxaosBi, pressionando para que ocorra a taxação em 2% da riqueza de 3.000 bilionários para financiar as mudanças necessárias para a sobrevivência de mais da metade da população do globo. É um percentual muito baixo, não vai nem arranhar o cofre desses Tios Patinhas… mas podemos começar assim, pois já passou da hora de cobrarmos algo das grandes fortunas, sempre liberadas dos ajustes fiscais draconianos feitos nos diversos países do mundo, principalmente os que sempre foram dominados pelas forças imperialistas.
Você trabalha na segunda, na terça, na quarta, na quinta, na sexta e no sábado… quando chega o domingo, acorda feliz porque tem o dia livre para fazer o que sente vontade, não é? Não, infelizmente, não é. Tudo o que você empurrou com a barriga nos tais dias “úteis” – em que não teve tempo para nada sem ser para a labuta – cai sobre sua cabeça no único dia em que você poderia ser “inútil” ao sistema sanguessuga. Problemas com a família, com agregados, com a casa, com o carro, com o cachorro, o gato ou o papagaio, além do cansaço acumulado, não deixam muita margem para escolher o que fazer com a “liberdade” domingueira.
Não é por acaso que a luta contra a cruel escala 6×1, em que se trabalha 6 dias, para se “folgar” 1 dia, se popularizou ao adotar a sigla VAT, que faz referência ao slogan Vida Além do Trabalho. O movimento, que tem líderes de partidos da esquerda como animadores, emplacou uma PEC no Congresso Nacional e vem ganhando força em um cenário de desalento em relação às pautas progressistas, já que cerca de dois terços da população formalmente empregada sofre com essa jornada escravocrata, recebendo pagamentos que mal chegam a dois salários mínimos.
A grande adesão popular à causa – cerca de três milhões de pessoas já assinaram uma petição pelo fim da 6×1 – ocorre em um momento em que o governo federal está sendo muito espremido pela elite financeira para sapecar ainda mais cortes de recursos destinados às necessidades básicas do povão, como se não estivéssemos já em uma situação acachapante em se tratando de direitos básicos, como saúde, educação, transporte, acesso à água e alimento. E, aqui, volto a falar de comida.
Nos últimos dias, o próprio Haddad divulgou uma lista de empresas que recebem benesses fiscais governamentais. E, para zero surpresa de quem é ativista pela Agroecologia, as corporações ligadas ao Ogronegócio estão no topo das favorecidas. Braskem, fornecedora de insumos para embalagens de agrovenenos, e Syngenta, fabricante dos próprios, navegam pelos mares das isenções de impostos com toda a tranquilidade, nutrindo um sistema alimentar que faz com que um pacote de “transgênicos”, feito com milho e soja transgênicos e aditivos igualmente cancerígenos, seja mais acessível do que uma fruta da estação.
Se as isenções fiscais para os agrotóxicos são bilionárias, favorecendo a adoção de um modelo monocultor que produz ingredientes que são a base para os alimentos ultraprocessados, as destinadas à indústria alimentícia não ficam atrás. Bebidas adoçadas com a cana-de-açúcar que é produzida em desertos verdes gigantescos, como os refrigerantes, também são favorecidas pelas políticas fiscais, o que ajuda a explicar porque estão em todos os locais imagináveis e custam menos do que uma água de coco natural. Vale entrar no site da ACT, acessar a campanha Mamata dos Refrigerantes e entender o tamanho dessa encrenca.
Realmente, o mundo corporativo tem ganhado de 6×1 da massa trabalhadora da população nesse campeonato econômico, em um resultado massacrante que se mantém jogo após jogo. E, mesmo assim, seus líderes ainda não estão contentes e sonham em cravar um 7×0 na gente uma hora dessas.
Há muitos anos, venho escrevendo sobre a situação de insegurança alimentar que enfrentamos. Já falei sobre a alimentação do precariado que vive de entregar comida, sempre contando os segundos para fazer muitas viagens, de modo que o recebido no fim do dia não seja uma miséria total e o efeito disso não seja a fome. Já refleti sobre a vida das cozinheiras e dos cozinheiros que não conseguem garantir refeições nutritivas para suas famílias, após trabalharem duramente para alimentar famílias alheias. E já abordei, também, a perda da cultura alimentar por parte dos povos tradicionais, o que os deixa expostos ao domínio das redes corporativas fabricantes de produtos comestíveis que adoecem e não nutrem.
Sem inverter a lógica de maximização dos lucros, que vem regendo nossa sociedade em benefício de uma minoria sem noção de limites, não iremos sobreviver muito tempo enquanto espécie em um planeta finito. O sistema alimentar e o regime trabalhista atuais andam de braços dados rumo ao colapso civilizatório, retirando a energia que nos mantém em pé. É preciso nos libertar de relações escravocratas entre nós e reconstruir nossas relações com os demais seres vivos, inclusive os que são fontes dos nossos alimentos, para sobrevivermos.
No recém-lançado Comida Comum, Neide Rigo nos leva a uma viagem por sabores que andam esquecidos em meio ao ritmo frenético de nossas vidas. Criada em uma região periférica, a hoje nutricionista, escritora e ativista, aprendeu como fazer, a partir de ingredientes simples, os pratos que trazem conforto, saúde e senso de pertencimento ao ambiente natural e à cultura regional. São receitas que escapam aos ponteiros dos relógios, sempre frenéticos nas grandes cidades, abrindo portais no tempo e no espaço. Ela começa do começo: planta no quintal e na horta coletiva do bairro, em plena capital paulista. Então, espera a colheita e descobre como cada parte do que colheu pode ser utilizada, através de processos que podem levar horas, ou mesmo dias.
Se você tiver uma avó ou bisavó com muitas e muitas décadas de vida, é provável que ela se lembre de alguns dos procedimentos culinários que pessoas como Neide vêm recuperando do esquecimento. Também é bem provável que elas não façam mais essas receitas e que seus saberes não sejam compartilhados com as gerações mais novas. Quem teria tempo para passar uma manhã ao lado de uma avó, esperando um caldo engrossar lentamente em uma panela para, finalmente, ser usado em um prato tradicional? Se depender de alguém que trabalha sob a escala 6×1, a avozinha vai ficar sem ter com quem partilhar seus conhecimentos e, assim como nossa velha Pachamama, testemunhar a desconexão crescente da humanidade com o que a mantém existindo.
Acredito que ainda podemos escapar do processo de apagamento de nossas tradições, do adoecimento físico, mental e emocional, da falta de convívio com quem amamos e com os demais seres que habitam nossa Casa Comum. Acredito que ainda podemos voltar a sentir o gosto pleno de um alimento, plantado e colhido na época adequada e preparado com a sabedoria gerada graças às vivências de gerações e gerações de pessoas, sobretudo mulheres. Acredito que ainda podemos dizer não à imposição de um ritmo cada vez mais artificial de existência. E é por ter essas esperanças que sigo na jornada pela transição agroecológica, condição fundamental para qualquer possibilidade de futuro.
E, por conviver com movimentos sociais do campo, da cidade, das águas e das florestas, que sei que: sim, existe vida além do trabalho; sim, existe comida além dos ultraprocessados. Mas é necessário muita luta de todos, todas e todes, neste momento crucial da história humana, para virar a mesa envenenada do neoliberalismo e exigir uma sociedade menos desigual, mais solidária e ecológica. Só assim, será possível termos o direito de saborear, novamente, a chamada comida de verdade, a única que nos nutre física e espiritualmente.
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Escala 6×1: quem tem tempo para comer bem? Artigo de Suzana Prizendt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU