18 Novembro 2024
Depois de um certo “silêncio” de Viveiros de Castro e Déborah Danowski, podemos celebrar a publicação desse pequeno livro que publicaram em novembro de 2023, pela n-1 Edições. Eles partem das reflexões de um clássico da filosofia: a obra de Karl Jaspers, “A origem e o destino da história”, onde o filósofo trata das Eras Axiais. Em que medida estaríamos vivendo na esteira herdada pela Era Axial. Os autores lançam uma suspeita sobre a plausibilidade das reflexões que se baseiam na ideia de que não superamos esse conceito lançado pelo filósofo alemão.
O comentário é de Faustino Teixeira, publicado no Facebook, 17-11-2024.
Em coerência com tudo aquilo que escreveram a respeito dos tempos “por vir”, e os impulsos que nos encaminham para o “fim do mundo”, Viveiros de Castro e Danowski voltam a falar sobre a violência que acompanha “a monocultura tecnoespiritual da espécie”, essa forma de civilização, entendida como “a origem e o destino da história”, que vem mostrando hoje a sua grande fragilidade ou tragédia. Para os dois pensadores, essa civilização “acha-se possivelmente às portas de um destino (uma meta) não muito original, a autoextinção, causada pela metástase cancerosa de sua matriz tecno-econômica e do imaginário cosmológico que sustenta”.
Os dois autores citam duas vezes o papa Francisco, e elogiam a coragem e ousadia do pontífice em trazer à baila uma reflexão de “enorme significado ecopolítico”. Reiteram a mesma surpresa expressa a respeito por Bruno Latour, que igualmente comemorou a publicação da Laudato si', a encíclica de Francisco sobre o cuidado da casa comum, a Terra. Viveiros de Castro e Danowski reconhecem e louvam o admirável esforço feito por Francisco em destacar o tema, mas sublinham que esse esforço ainda foi limitado, por não conseguir romper de fato com o antropocentrismo cristão. Eles reconhecem o grande feito de Francisco em “trazer a causa da Terra para o centro das preocupações dos fiéis”, mas tal esforço manteve-se ainda fiel ao “princípio doutrinário absoluto da relação salvífica entre temporalidade e extramundanidade, uma relação que extrai, parcial mais decisivamente, a espécie humana da imanência terrena e a distingue do resto da Criação”.
Foi o que ocorreu, de fato, na reflexão de Francisco no número 119 da sua encíclica, quando procede um específico ataque à imanência em nome da singularidade da transcendência. Com base na tradicional narrativa cristã, Francisco mantem vigente a reivindicação da superioridade humana sobre o resto da criação: “um valor peculiar acima das outras criaturas”. Nesse sentido, a crítica de Francisco não incide na derrocada do antropocentrismo, mas apenas do antropocentrismo “desordenado”, ou seja, aquele que não vem defendido pelo cristianismo.
Já no prefácio ao livro de Davi Kopenava e Bruce Albert, “A queda do céu”, com base no pensamento de Latour, Viveiros de Castro falava de uma atenção presente ao “retorno progressivo às cosmologias antigas e às suas inquietações”. Ele retoma essa importante pista em seu recente livro, indicando que “a Terra primordial dos povos pré-modernos e extra-axiais” surge hoje como uma “alternativa inesperada dentro do diferendo planetário proposto por Latour”. Daí o peculiar título da obra: “O passado ainda está por vir”.
Aqui está a chave essencial de manutenção de uma esperança, que pode possibilitar a pertinência da crença num novo mundo, ou num horizonte distinto para o nosso aterramento. Estamos conscientes de que com o Antropoceno “o botão da guerra nuclear total” já está sendo apertado, mas há ainda algum resíduo de esperança. Ao final, os dois autores traduzem o possível significado de uma luta que se torna urgente:
“O momento em que lutar pela Terra significa, antes de tudo, juntar-se à luta dos povos sem terra que foram e ainda são invadidos, dizimados e desapropriados pelos povos sem Terra, os´Humanos`de Diante de Gaia, o povo da Transcendência – nós os brancos, como tantos povos indígenas das Américas costumam nos chamar?”.
E concluem o livro com uma linda citação de Kopenawa:
“O que os brancos chamam de futuro, para nós, é um céu protegido das fumaças de epidemia xavara e amarrado com firmeza acima de nós”.
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“O passado ainda está por vir”. Comentário de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU