14 Novembro 2024
Muitos cristãos-novos, judeus forçados à conversão nos reinos de Espanha e Portugal, tiveram um papel relevante nas primeiras gerações de membros da Companhia de Jesus ou na promoção de tradições católicas como o culto da Imaculada Conceição. Isso traduziu-se mesmo ao nível artístico, em representações pictóricas da Virgem Maria protegendo uma sociedade multiétnica e inclusiva, propondo uma alternativa possível à ideologia racial do sangue limpo.
Também a via mística desenvolvida por Santa Teresa de Ávila ou a vida ascética e a poesia e reflexão teológica de Luis de León e Juan de Ávila são outros contributos dos cristãos-novos porventura desconhecidos de muitos e que o historiador Francisco Bethencourt referencia no livro Estranhos na sua terra: ascensão e queda da elite mercantil cristã-nova (séculos XV-XVIII), que será posto à venda em Portugal na próxima quinta-feira, 14, numa edição da Temas e Debates.
O rigoroso e exaustivo levantamento destes dados e da forma como muitos cristãos-novos protagonizaram avanços nos campos artístico, literário, econômico, científico ou político, mas também no modo como vários deles se envolveram no tráfico de escravos são alguns dos motivos que fazem deste livro uma obra importante na historiografia portuguesa, da autoria do autor de História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália e de Racismo – Das Cruzadas ao Século XX.
Publicamos a seguir alguns excertos da conclusão da obra.
O artigo é de Francisco Bethencourt, historiador português, professor do King's College de Londres, publicado por 7Margens, 12-11-2024.
Este livro propõe uma nova história de uma minoria de origem judaica que foi forçada a converter-se ao cristianismo em Castela, Aragão e Portugal no período entre 1391 e 1497. Esta minoria foi discriminada por meio dos estatutos de limpeza de sangue e investigações inquisitoriais até meados do século XVIII. A criação e perseguição subsequente desta minoria pode ser definida como um dos primeiros casos de racismo institucional no seio de uma mesma comunidade religiosa na Europa, e foi alargada aos impérios ibéricos.
A maior parte dos membros dessas comunidades judaicas segregadas até então na Península Ibérica foram absorvidos compulsoriamente pela comunidade cristã maioritária, apenas para serem chamados de imediato conversos, marranos ou cristãos-novos. Eram suspeitos de fingimento da sua religião cristã e de dissimulação de uma fidelidade continuada a rituais e tradições judaicos. Ao fim de três séculos e mais de nove gerações, os seus descendentes ainda eram perseguidos como judeus. O antagonismo religioso traduziu-se, portanto, em ódio racial aos convertidos e seus descendentes, aos quais eram aplicados os mesmos preconceitos e estereótipos gerados ao longo dos séculos contra os judeus. Contudo, a etiquetagem, a discriminação e a perseguição permanentes, baseadas na genealogia, ajudaram a criar um profundo sentimento de identidade étnica entre os cristãos-novos, com as ameaças a reforçarem a solidariedade e a renovarem percepções comuns de linhagem e parentesco.
A violência contra os preceitos básicos da Igreja Cristã prevaleceu. Houve motins contra os cristãos-novos em cidades e vilas por todo o território de Castela e da Andaluzia entre as décadas de 1450 e 1470, até a Inquisição ser estabelecida em 1478, explicitamente, para investigar a verdadeira religião dos cristãos-novos. A enorme vaga de acusações que isso desencadeou foi vista como a confirmação de todos os preconceitos contra aqueles. Dignitários, clérigos, mercadores e artífices foram condenados em julgamentos rápidos. A presença de cristãos-novos na administração local, ordens religiosas e cabidos das catedrais foi ficando cada vez mais ameaçada, mas eles conseguiram aguentar-se. Contudo, a aprovação pelo papa Alexandre VI, em 1495, do estatuto de limpeza de sangue ideado pelos jeronimitas representou um revés importante para os defensores dos cristãos-novos. Na primeira metade do século XVI, foram aprovados novos estatutos em Espanha apesar de uma oposição feroz, mas foi o estatuto promulgado na Catedral de Toledo pelo arcebispo Silíceo, em 1547, que se enraizou e disseminou a nova norma racista, porque foi aprovado pelo rei e pelo papa.
Estas divergências revelam dinâmicas diferentes no seio dos diferentes Estados ibéricos, mas não invalidam o fato de os cristãos-novos se terem tornado um grupo étnico internacional com percepções próprias partilhadas de memória histórica e solidariedade relativa enquanto enfrentavam a justiça inquisitorial – cerca de 24 000 julgamentos em Portugal e no seu império, provavelmente mais de 15 000 em Espanha e no seu império, entre finais do século XV e meados do século XVIII, sem contar com denúncias e investigações que não levaram a julgamentos.
Embora o conceito de limpeza de sangue se tenha tornado uma ideologia enraizada de discriminação, a sua execução era manipulada constantemente, sobretudo através da intervenção real ou de subornos, por aqueles que procuravam transpor a barreira. Sabemos que muitos cristãos-novos, tanto em Espanha como em Portugal, se tornaram cavaleiros ou fidalgos da casa real, em parte por precisarem dos poderes judiciais inerentes à condição se quisessem cobrar impostos, rendas ou direitos alfandegários em nome do rei. Muitos outros tornaram-se membros de ordens militares ou religiosas, ultrapassando com êxito as investigações dos seus antecedentes raciais, por vezes com ajuda explícita do rei. Um número significativo casou com nobres ou negociou a concessão de um título de nobreza por serviços prestados.
No Estado de Portugal, mais centralizado, as listas específicas de cristãos-novos para fins fiscais foram destruídas em 1768 e a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos abolida em 1773. O Estado assumiu o controle total da Inquisição em 1774, com novas normas para o seu funcionamento, muito antes da sua abolição em 1821. Contudo, em Espanha, a ideologia da limpeza de sangue sobreviveu à abolição definitiva da Inquisição em 1834.
(…) Os cristãos-novos estiveram na vanguarda da expansão ibérica para África, o Novo Mundo e a Ásia. Importaram e reexportaram ouro e prata, primeiro da África ocidental e depois do Novo Mundo. Investiram no tráfico infame e desumano de escravos da África ocidental, no comércio de especiarias da Ásia meridional e no comércio do açúcar da Madeira, em seguida de São Tomé e mais tarde do Brasil. Durante os séculos XVI e XVII, os cristãos-novos expandiram o âmbito do seu comércio para incluir pedras preciosas da Ásia meridional e América do Sul e porcelana e laca da Ásia oriental, têxteis da Ásia meridional, especiarias do Sudeste Asiático, índigo da América Central, cochinilha do México e tabaco das Américas.
Os cristãos-novos não estavam, decerto, sozinhos nestes negócios, mas controlaram de fato a maior parte do tráfico de escravos no Atlântico até ao final do século XVII, uma boa parte do comércio proveniente da Ásia até ao primeiro quartel do século XVII e o comércio do açúcar do Brasil até ao início do XVIII, juntamente com uma parte do comércio de prata e cochinilha das Américas, parte do de têxteis da Ásia meridional e de porcelana e laca da Ásia oriental. Os cristãos-novos em si não estiveram isentos de comportamentos desumanos, por exemplo, em relação aos africanos escravizados que, todos os anos, eram transportados em elevado número para a Europa e o Novo Mundo. Contribuíram para a criação e o desenvolvimento de um sistema de plantação baseado na escravatura, no Novo Mundo. Os cristãos-novos resistiram e protestaram contra a sua própria condição inferior, mas não puseram em questão a condição das pessoas negras, e ainda menos o sistema de escravatura, durante o início da Idade Moderna. Bartolomé de las Casas, que fez campanha contra a escravização dos nativos americanos, nunca tornou pública a sua oposição à escravização dos povos africanos. (…)
A diáspora cristã-nova criou e desenvolveu comunidades de judeus sefarditas, que contribuíram para o alargamento das redes comerciais de conversos e judeus no final do século XVI e no século XVII, mas também havia comunidades cristãs importantes nos impérios ibéricos, em França, Itália e Flandres, que atraíram aqueles cristãos-novos que queriam distanciar-se da Inquisição embora hesitassem quanto a assumir a religião judaica. O Império Espanhol proporcionou, durante muito tempo, abrigo a cristãos-novos sem perseguição sistemática, embora tivesse havido de fato processos importantes. (…)
Os cristãos-novos que se fixaram no Brasil foram acusados muito cedo – nas primeiras visitas da Inquisição na década de 1590 e em finais da de 1610 –, mas isso não desencadeou uma vaga de perseguição importante. Os cristãos-novos eram grandes mercadores de açúcar e tabaco e estiveram envolvidos no governo da Bahia durante o século XVII. Também eram produtores significativos de açúcar, uma atividade na qual aumentaram a sua presença desde a década de 1660 até à de 1700, após o que a perseguição inquisitorial reduziu radicalmente a comunidade. A África ocidental foi o centro inicial para os cristãos-novos do ultramar envolvidos no tráfico de escravos com as Américas, mas os números reduziram-se a longo prazo, embora tenham contribuído para a criação de linhagens miscigenadas. (…)
O impacto da elite mercantil dos cristãos-novos pode ser encontrado na economia mundial, no pensamento jurídico e no desenvolvimento da literatura, arte e história natural. (…)
Os cristãos-novos participaram em debates sobre valores no mundo ibérico – debates que opuseram mérito a linhagem nobre, serviços a sangue pretensamente limpo e atividade produtiva à aversão tradicional da nobreza ao trabalho manual. O século XVI foi um período de pensamento econômico e jurídico florescente em Espanha. Especificamente, muitos tratados elogiavam as atividades dos mercadores, considerados essenciais para a economia, bem como a importância da justiça distributiva para remunerar os serviços prestados à família real. Foi na sequência desse pensamento, em que a Itália e a Europa setentrional eram gabadas pela integração eficaz dos seus mercadores, que os cristãos-novos que colaboravam com cristãos-velhos alimentaram o debate contra os estatutos de limpeza de sangue, que foi motivo de grande preocupação entre a década de 1590 e a de 1630.
O quadro importante de Bartolomé Bermejo mostrando a descida de Jesus ao limbo, em que o pintor reflete sobre a salvação dos justos num gesto narrativo eloquente dirigido aos antepassados judeus, é provavelmente o mais antigo contributo dos cristãos-novos para a arte. Aqui esteve em jogo a criatividade pictórica, não só com a assimilação da técnica flamenga, mas também com a representação inovadora da natureza dupla, divina e humana, de Cristo. A intervenção dos cristãos-novos nesta área só voltaria a ser relevante no início do século XVII, em Sevilha, em torno da promoção do culto da Imaculada Conceição. Neste, a representação de uma sociedade multiétnica e inclusiva sob a proteção da Virgem Maria e a noção de um leite puro de maternidade, proporcionaram talvez uma alternativa possível à ideologia racial do sangue limpo. Juan de Roelas e Juan de Jauregui participaram neste novo conjunto de representações, em que estratos espirituais e místicos de aspetos do Apocalipse inspiraram a representação de transições entre o Céu e a Terra e uma interpretação da Virgem Maria como a mulher do Apocalipse.
Os contributos dos cristãos-novos para os novos géneros literários foram fortes. A religião interiorizada foi expressa na poesia do amor cortês de Juan Álvarez Gato, que também lamentou a arrogância terrena das linhagens, enquanto a novela sentimental e o tema do amor como uma prisão foram desenvolvidos por Diego de San Pedro. Uma alteração radical foi introduzida por Fernando Rojas, que retratou os sofrimentos da manipulação e do comércio do amor na vida urbana, um tema desenvolvido mais adiante, por Antonio Delicado, no contexto de uma Roma completamente corrupta. O lado mau de uma sociedade atormentada pela pobreza e as práticas nefastas foi explorado ainda mais pela novela picaresca como um género novo, desde o Lazarillo de Tormes a Mateo Alemán.
As provocações do peregrino e a dor da recordação e do exílio permanente foram expressas pelas novelas sentimentais e pastorais de Alonso Núñez de Rainoso e Bernardim Ribeiro. Se esta literatura refletia a espoliação e a saudade de um mundo perdido, a zombaria em relação ao conceito de sangue limpo também foi tornada explícita por Cervantes e outros autores. O livro híbrido antiépico escrito por Fernão Mendes Pinto apresenta um relato sincero do saque e da avidez envolvidos na expansão portuguesa e foi visivelmente influenciado pela novela picaresca. Francisco Rodrigues Lobo transmitiu uma defesa erudita da língua hebraica, louvou a importância dos mercadores na sociedade da corte e adiantou uma crítica velada à Inquisição. (…)
Os cristãos-novos também moldaram novos entendimentos da história natural. Gonzalo Fernández de Oviedo, Garcia de Orta e Cristóbal Acosta recolheram informações sobre botânica, zoologia e mineralogia no Novo Mundo e na Ásia que mudaram radicalmente o conhecimento europeu da natureza. A cartografia portuguesa representou novos mares, novas terras e novos céus por meio das capacidades das famílias Reinel e Homem, enquanto o matemático Pedro Nunes explorou a trigonometria esférica, criando um novo dispositivo de medição que evoluiu mais tarde para a escala de Vernier e estabelecendo a base para a projeção de Mercator do globo terrestre. Na medicina, Amatus Lusitanus desempenhou um papel importante com os seus sete volumes sobre doenças, apresentando cada um deles uma centena de casos clínicos, ao mesmo tempo que descobriu também a circulação do sangue e a função das válvulas venosas. Rodrigo de Castro contribuiu para o desenvolvimento da ginecologia e obstetrícia, enquanto Filipe de Montalto desenvolveu o conhecimento que os seus contemporâneos tinham das doenças mentais. Estes três médicos acabaram por assumir a religião judaica em Salônica, Hamburgo e Florença (e depois, Paris).
A situação liminar em que os cristãos-novos foram postos encorajou a sua indagação espiritual no seio da Igreja Católica, uma indagação que por vezes se moveu fora das tradições tanto judaicas como cristãs. O movimento dos alumbrados é um bom exemplo da procura de uma relação direta com Deus, em que as mulheres desempenharam um papel importante. A via mística desenvolvida por Santa Teresa de Ávila no âmbito de uma ordem religiosa, as carmelitas, foi reconhecida pela Igreja Católica, enquanto outros cristãos-novos, como Luis de León e Juan de Ávila, deixaram um exemplo de vida ascética e um corpus significativo de poesia e reflexão teológica. O movimento espiritual inspirado por Erasmo teve um forte impacto em Espanha e atraiu o envolvimento de muitos cristãos-novos antes de as suspeitas e investigações por parte da Inquisição imporem o comedimento. Por fim, a participação de cristãos-novos nas duas primeiras gerações (e para além delas) de membros da Companhia de Jesus é bem conhecida hoje em dia, juntamente com o contributo desses membros para o debate sobre a limpeza de sangue. (…)
Em resumo, os cristãos-novos foram criados por meio da conversão forçada de comunidades judaicas da Península Ibérica, entre 1391 e 1497. Perduraram como um grupo étnico reconhecível até meados do século XVIII, sujeitos a etiquetagem e discriminação impostas pelos estatutos de limpeza de sangue e pelos processos judiciais da Inquisição. Essa condição foi imposta a centenas de milhares de pessoas, mas os mercadores cristãos-novos contornavam as normas e alcançaram posições elevadas através da aquisição de títulos e de alianças matrimoniais. Também criaram, por meio da migração, novas comunidades judaicas na Europa setentrional e no Novo Mundo. Deixaram de existir como etnia devido à conjugação de alterações sociais e políticas, novas condições de comércio internacional e ao aparecimento de um novo sistema de valores no século XVIII. Durante os seus três séculos de existência, os cristãos-novos criaram um património importante de realizações económicas, financeiras e culturais, sobretudo através do seu contributo para o comércio intercontinental, mas também por meio das suas indagações espirituais e religiosas, da sua inovação científica, literária e artística e do seu combate político e jurídico contra o tratamento discriminatório de uma minoria.
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Os cristãos-novos no início dos jesuítas e na arte cristã inclusiva (e também no tráfico de escravos). Artigo de Francisco Bethencourt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU