11 Novembro 2024
Faz cerca de seis meses que Enzo Bianchi se juntou a outros “excluídos” da Comunidade de Bose em uma casa de campo em Albiano d'Ivrea, a “Casa della Madia”, onde o monge piemontês fundou uma nova fraternidade para compartilhar de forma estável a vida, o trabalho e a oração em comum.
A reportagem é de Paolo Rodari, publicada por RSI, 08-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os dias são pontuados por ritmos “cartuxos”, o cuidado de uma grande horta, as tarefas domésticas organizadas em turnos, o acolhimento de pessoas que buscam em Albiano apoio espiritual ou simplesmente um lugar onde regenerar o corpo e o espírito, a lectio divina ou a leitura silenciosa e a meditação do Antigo e do Novo Testamento.
Depois de meses nada fáceis, Enzo Bianchi também voltou a escrever, publicando um novo trabalho para a Einaudi intitulado “Fraternità”. O elemento mais negligenciado dos três cunhados pela revolução francesa, a fraternidade é para Francisco - que assina o prefácio do volume - “a resistência à crueldade do mundo”. Porque, diz ele, “desde que existe a humanidade, Pólemo, o demônio da guerra, está presente e se manifesta na rivalidade que vai até a negação, a morte do outro, como revela o fratricídio de Abel por Caim”.
Livro Fraternità de Enzo Bianchi
Enzo Bianchi, vamos começar por isto, o que é “fraternidade” para você e por que a humanidade tem dificuldade para reconhecê-la e vivê-la?
Infelizmente, pensamos que a fraternidade é um fato natural, porque nascemos irmãos, porque alguém vem ao mundo e tem um irmão, uma irmã, antes ou depois dele. Mas, na realidade, toda a história nos mostra que essa fraternidade natural facilmente dá lugar à rivalidade, à concorrência e depois à violência, até mesmo à morte do irmão, conforme relatado nos mitos de todas as culturas. Não apenas na Bíblia - Caim e Abel - mas também na cultura romana - Rômulo e Remo -, na cultura grega, na cultura babilônica, sempre há o fratricídio. Nós chegamos justamente como irmãos, entre irmãos e irmãs, à violência, ao assassinato, à negação do outro, porque o outro é aquele que veio pedir para se descentralizar, veio tomar parte do nosso lugar, que era um lugar único, todo nosso, veio tomar parte dos nossos afetos. Os afetos da mãe e os afetos do pai, que eram todos para nós.
E sentimos isso como uma privação. Sentimo-nos defraudados por esse outro intruso, desconhecido, que chega, que é um irmão porque nasceu do mesmo ventre da mãe, como diziam os gregos, mas que, de certa forma, nos destronou. E assim surge a rivalidade. Rivalidade que às vezes se aninha por uma vida inteira e aparece no fim quando há a divisão da herança familiar, do pai, da mãe. Então, entendemos que a fraternidade não é um fato que está por trás de nós na vida, mas uma vocação. É um apelo. É um exercício que temos que assumir. É algo que devemos considerar absolutamente necessário para chegar à relação, às relações e aos relacionamentos, principalmente, de família. Mas também as relações de uma comunidade, as relações de uma sociedade. A fraternidade se aprende, não se recebe, se aprende com esforço e é se aprende a alto preço.
As crônicas diárias falam de grandes conflitos em diferentes partes do mundo, e depois dos conflitos, igualmente terríveis, mais próximos de nós: feminicídios, infanticídios, crimes de todos os tipos. Luigi Zoja escreve que “há milênios, um duplo mandamento regeu a moral judaico-cristã: amar a Deus e amar o próximo como a si mesmo. No final do século XIX, Nietzsche anunciou: Deus está morto. Depois de passar o século XX também, não é hora de dizer o que todos nós vemos? O próximo também está morto?”. De quem é a responsabilidade de tudo isso?
Temos que ser muito sérios conosco mesmos e olhar profundamente, cada um de nós, e analisar as relações que existem na sociedade. Nos últimos anos, nas duas últimas décadas, houve um forte recrudescimento. O ressentimento cresceu, a raiva cresceu, como também mostram as pesquisas que são frequentemente realizadas em nível italiano por institutos que são mais do que confiáveis. E também cresceu a desconfiança de um em relação aos outros. É claro que também teve a pandemia, mas eu nunca exageraria esse evento que nos manteve distanciados, nos separou e criou essa necessidade de immunitas que distancia e faz desconfiar uns dos outros. Não, nós nos tornamos pessoas mais ruins. E aqui a violência se aninha com mais facilidade, começando pela família, começando pelas relações mais íntimas, onde vemos o parricídio, o matricídio, o feminicídio. Sempre existiram, mas hoje há uma frequência que não é proporcional ao crescimento na sociedade de certos valores que também cresceram: o respeito pelos outros, a afirmação da dignidade de cada pessoa. Isso nos mostra como esse desejo de violência contra os outros se tornou muito forte, muito eficaz, a ponto de levar ao desejo de aniquilação e assassinato. E assim, hoje temos uma epifania do que sempre existiu, mas que tem causas muito precisas nessa evolução final dentro da sociedade e dentro de nossa cultura, que é uma cultura que não escuta, que ama o confronto, que ama absolutamente se opor ao outro sem nunca ter a possibilidade de uma troca, de um diálogo. Vemos isso até mesmo nas mídias de massa como se adora o confronto, a polêmica, e não o diálogo, não a escuta mútua. De fato, devemos confessar isso com vergonha, é o confronto que gera audiência, é o confronto que atrai os espectadores. Parece que o diálogo, a escuta mútua, não consegue mais atrair a atenção dos espectadores.
Para quem Enzo Bianchi escreve? Ou seja, a quem se dirige esse livro? Há algum tempo, muitas categorias que nos acompanham há anos, crentes e não crentes, laicos e ateus, parecem ter se esvanecido em um niilismo genérico, como se a maioria das pessoas não se encontrasse mais em nenhuma categoria. O que você pensa disso?
Eu sempre me dirijo a crentes e não crentes, porque o que é importante para mim é realmente a humanidade. O que não é estranho para mim é o ser humano. Portanto, se eu disser uma palavra, só posso dizê-la no espaço do humano. Mas atenção, isso não pretende anular a diferença cristã sobre a qual já me debrucei muitas vezes e que sempre destaco. Existe uma diferença cristã. Certamente, a salvação, as boas novas dizem respeito a todos. Não há muros, certamente não há enclaves para os crentes. Não há posições de privilégio em relação a uma vida humana, se ela vale ou não. Todos nós seremos julgados por nossa capacidade de nos relacionarmos com os outros, no amor, no cuidado com os outros, na responsabilidade pelos outros da mesma maneira. Mas se há uma esperança cristã, que não é apenas para os cristãos, é o fato de que a vida vence a morte, o amor vence a morte por causa da ressurreição de Cristo, disso eu não me envergonho, eu afirmo e acho que pode ser a anunciação também para os não-crentes. Que eles a aceitem ou não, que eles a coloquem diante deles como um questionamento ou não..., mas eu preciso expressá-la.
Jesus propõe uma nova fraternidade, se quisermos, que, como você escreveu, derruba as barreiras de divisão e destrói os muros de separação. No entanto, ainda hoje assistimos a um cristianismo de muros, de fechamento em relação àqueles que são considerados diferentes. Por que, em sua opinião, essa “rigidez”, como Francisco às vezes também a chama?
Em primeiro lugar, é preciso pensar que a Igreja tem dezesseis séculos atrás de si, nos quais amou a uniformidade, amou ser uma só voz, amou, acima de tudo, ter uma voz contra os outros.
Todos os outros que não estavam dentro do espaço da Igreja eram inimigos. Eles mudaram, foram os sarracenos, foram os hereges em um determinado momento, foram os judeus: na Igreja era realmente quase um prazer poder expulsar, poder erguer muros e dizer que alguém estava fora. Sempre me impressionou o fato de que em minha cidade, quando havia um suicídio, eles enterravam a pessoa do lado de fora do muro do cemitério. Nem mesmo com os mortos se renunciava à expulsão. Porque havia esse desejo de exclusão. Espiava-se os pecados dos outros. Espiava-se o pensamento dos outros, se era herético, e se rejeitava. Pois bem, desde o Concílio Vaticano II, parece que a Igreja tomou outro caminho, que é um caminho de inclusão. E, acima de tudo, é o Papa Francisco que entendeu que o horizonte para um futuro é o da humanidade, não o das confissões religiosas, mesmo que tenham um significado, mas é a humanidade.
Assim, ele fala em nome de toda a humanidade e, mesmo que às vezes transmita a mensagem aos cristãos, aqueles que sabem lê-lo bem percebem que ele olha para a humanidade não cristã, ele enxerga as fronteiras do mundo.
Toda uma humanidade deve ser salva, toda uma humanidade é digna de uma vida melhor. Isso também me parece ser o fundamento de sua Fratelli tutti, que quis dirigir a todos os homens. Esse é o horizonte cristão. Mas a Igreja tem dificuldades. Os cristãos muitas vezes têm a mente estreita. São pessoas muito devotas, muito religiosas, mas têm pouca fé. Eles não têm uma fé estável e firme, para não temer o outro. Eles têm uma religião com a qual o outro só pode entrar em concorrência.
O que Francisco trouxe de novo para a vida da Igreja? Algumas de suas palavras sobre temas eticamente sensíveis lembram alguns dos fechamentos de pontificados anteriores, embora não faltem aberturas. O que pensa disso?
Francisco é um homem conservador. Ele tem uma idade que só pode ser conservador. Não poderia ser de outra forma. E nisso ele é muito fiel à tradição. E eu diria que ele tem até medo de sair da grande tradição. E muitas de suas declarações trazem esse sinal, a vontade de não sair, a vontade de reafirmá-la, e às vezes ele faz isso com ênfases que também podem ser desagradáveis. Vimos ele ser contestado por isso várias vezes. Mas também é verdade que ele trouxe um novo sopro de ar fresco onde, para além dessas declarações, ele foi capaz de uma abertura para a misericórdia, para a compaixão da Igreja. Em resumo, quero dizer, com uma frase que sei que não é aceita ou amada por muitos, que Francisco evangelizou Deus. Deus muitas vezes tinha um rosto perverso, um rosto de juiz severo e mau, um rosto que não era aquele que nos foi narrado por Jesus Cristo. Francisco o leva de volta para lá, ele evangeliza Deus, o Deus misericordioso que, mesmo diante de nossos pecados, os apaga, os dilui, para que possamos entrar nos braços de Cristo para um amor que nunca será merecido. Isso é Francisco.
Em seu livro, você também fala de traição: “O drama que pode ocorrer na fraternidade é a traição”. Você teve de deixar Bose em determinado momento e chegar até aqui. Sentiu-se traído de alguma forma? Ou o que exatamente lhe aconteceu?
Sim, houve uma traição, não da comunidade, mas certamente de duas, três, das pessoas mais próximas a mim na comunidade. Traição porque elas não só provocaram de fato a visita apostólica, mas a agravaram. Posso ter certeza de que, diante do que era proposto na visita apostólica, eles pediram seu agravamento. Depois de trinta anos que haviam trabalhado comigo em total concordância, sem contestações, sem nunca dizer: eu não concordo. E isso, se acontecer da noite para o dia, é uma traição.
Em 2012, em uma entrevista pouco antes de sua morte, o Cardeal Carlo Maria Martini disse que a Igreja estava duzentos anos atrasada. Você acha que a situação ainda é a mesma? Em caso afirmativo, o que fazer?
Olhe, eu tenho um grande amor pelo Cardeal Martini. Quando ele disse essa frase, eu disse a mim mesmo que era uma tirada espirituosa. E quando a ouço ser repetida por aqueles que pensam que são seus discípulos e acham que estão repetindo o Evangelho de Martini, começo a sorrir. Você pode dizer uma frase como essa em uma conversa, mas não significa nada a Igreja estar duzentos anos atrasada. Em algumas coisas, a Igreja pode estar mil anos atrasada: ela continua a fazer uma liturgia com todo um léxico medieval que eu não sei o quanto isso possa interessar os jovens de hoje, de vinte anos. Em outras coisas, eu diria que a Igreja está à frente da sociedade e dos leigos. Em resumo, podemos dizer que a Igreja tem dificuldades com as novidades, isso é verdade. E quando aparece um profeta como o Papa Francisco, chegamos, pela primeira vez nos tempos recentes, ao absurdo de que o Papa está à frente do rebanho, porque nós não temos a coragem de dizer a verdade. O papa quer uma abertura para as mulheres na Igreja que o povo de Deus não quer. Digo isso porque o ouço e o conheço. O povo de Deus não quer as mulheres diáconas, não quer o acesso das mulheres ao ministério. Não quer a bênção de casais homossexuais. O papa faz essas aberturas como profeta, ele abre um processo, pelo menos, por isso está mais à frente de um rebanho que está lutando para acompanhá-lo. E eu me lembro que, justamente na Itália, em certas regiões (falo por cima, mas precisaria ter os dados nas mãos), o Papa não é amado. A maioria dos católicos na Lombardia, no Vêneto, não o ama. Especialmente pelas palavras que ele diz sobre a pobreza, sobre os migrantes: não, ele não é amado por isso. Portanto, cuidado, temos um papa que é um sinal de contradição e não podemos usar as belas tiradas espirituosas de um cardeal para fazer magistério.
Há décadas, a fé parece ter entrado em uma crise, especialmente dentro do cristianismo. Você não acha que estamos enfrentando um momento histórico? Vários teólogos pós-teístas ou transteístas enfatizam que a visão de Deus que acompanhou o cristianismo até os dias atuais é agora impossível de ser proposta, aquele Deus que vive nos céus e de lá dispõe da vida dos homens... e, portanto, o cristianismo se repensa completamente ou está condenado a morrer. Concorda?
Então, esses teólogos pós-teístas me parecem pigmeus... Lembro-me de que Dietrich Bonhoeffer fez essa virada e tantos teólogos como ele a fizeram. E que o Deus perverso de Maurice Bellet está presente nas novas gerações do cristianismo. É uma denúncia de quarenta anos atrás: le Dieu pervers, onde Bellet já dizia essas coisas. Portanto, a imagem de Deus mudou, não existe mais, exceto naqueles bolsões de devoção de alguns nostálgicos do mundo pietista. O problema hoje, todos concordamos, é que Deus se tornou uma palavra insuficiente. Mas Clemente Romano já dizia isso no final do século I. Para nós, cristãos, Deus é uma palavra insuficiente, é uma palavra ambígua. Deus, todas as religiões falam dele. E quem disse que o meu Deus é o Deus dos muçulmanos? Desde quando?
Só porque todos eles simplesmente se referem àquela página da Bíblia? Mas isso depende da imagem que eu projeto em Deus. Há muitos católicos que deveriam ter o meu Deus, mas que durante a pandemia disseram que a pandemia foi enviada por Deus como castigo pelos maus hábitos e pela homossexualidade reinante no Ocidente... Eu digo que esses não têm o meu Deus, não temos a mesma fé. O problema sério é que o Deus de Jesus Cristo não é um Deus qualquer. Isso foi dito pelos grandes padres na época da maré pagã no primeiro, segundo, terceiro século. Deus é insuficiente. Não nos esqueçamos do que João nos diz no Evangelho: Deus nunca foi visto por ninguém, mas Jesus Cristo nos deu um relato dele. Sem o relato de Jesus Cristo sobre Deus, não sabemos nada sobre Deus, não podemos dizer nada sobre Deus, não podemos obedecer a Deus. E o que Jesus Cristo não nos disse sobre Deus, nós, cristãos, absolutamente não devemos obedecer ou fazer.
O Cardeal Martini também disse que viver é conviver com a ideia de que tudo acabará mais cedo ou mais tarde. O que é a morte para você?
Concordo com Martini, também porque tive algumas conversas belíssimas com ele nos últimos tempos, precisamente sobre a morte, sobre o medo da morte, sobre a vida após a morte. E o Cardeal Martini levantava muitas questões. Ele me fazia muitas perguntas, perguntava-me se eu também tinha medo, se havia medos. E certamente é preciso dizer que quando se envelhece não é verdade que aumenta a fé, como muitos pensam. A fé é mais permeada de perguntas. E, portanto, também de incertezas.
E, portanto, também de dúvidas. No entanto, eu dizia a Martini, o que é belo no cristianismo é que há algo que vence a fé e é mais importante do que a fé, e é o amor. Acredito que muitas vezes tenho pouca fé, mas o amor por Jesus Cristo é maior e compensa minha falta de fé. Devemos pensar nisso com tranquilidade. Será o amor que nos levará a encontrá-Lo. A fé poderá não ser suficiente. Além disso, Jesus nos disse, para nossa alegria, que a fé de um pequeno grão de mostarda é suficiente... Não sei se tenho um grão de mostarda ou um monte. O amor eu sei, porque o sentimos dentro de nós. E o amor por Cristo é muito grande e me basta. É o que me faz ir em direção à morte com esperança, com esperança mais do que com fé, com esperança, esperança e caridade me guiam à morte.
Pode nos contar algo, mesmo que seja pouco, sobre seu último encontro com o Papa?
Posso lhe dizer que o Papa está bem. Realmente, eu o achei bem. Até a maneira como caminhava, como cumprimentava. Também, é claro, estava muito emocionado. Nunca perdi a consciência de ser filho de um latoeiro em uma família pobre, muito pobre, de vir de uma pequena cidade do Monferrato. Nunca em minha vida pensei que apertaria a mão de um Papa, muito menos que teria uma amizade como a que tive com o Papa Ratzinger, Bento XVI, uma amizade verdadeira, e depois com ele, que chegou inesperadamente. Mais uma vez, ele me falou de seu amor e de sua confiança em mim. Eu poderia dizer mais, mas como diz respeito a outras pessoas, prefiro ficar calado. Mas certamente senti um padre que me compreendeu, que nunca prestou ouvido às acusações contra mim. E que quer me dar todos os sinais de um amor. Ele os manifestou durante todo esse tempo, enviando-me bispos para me visitar, enviando-me bispos para perguntar como eu estava, depois escrevendo para mim com a audiência, agora com o prefácio. É claro que, para mim, é o Papa que posso dizer que é um verdadeiro pai para mim e, no final da vida, é uma grande dádiva.
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“Com esforço e a alto preço, é assim que se aprende a fraternidade”. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU