26 Outubro 2024
"Uma religião concreta, não importa se é cristianismo ou outra, que usa uma doutrina teológica da retribuição para justificar e fortalecer a insensibilidade social para com pobres e outras pessoas que sofrem de relações injustas, não ensina o caminho de Deus e da humanização. Há muitas doutrinas, catecismos e pregações que são caminhos pedagógicos satânicos, que levam não a Deus, mas a um ídolo", escreve Jung Mo Sung, teólogo e cientista da religião.
Gustavo Gutierrez, no seu livro “Falar de Deus a partir do sofrimento do inocente: uma reflexão sobre o livro de Jó", diz: “Satanás não nega nem pode negar que Jó é um homem bom e piedoso. O que questiona é seu desinteresse, a gratuidade de sua religião. Não contesta suas obras, mas sua motivação: o comportamento de Jó não é ‘por nada” (em hinnãm). Para Satanás, a atitude religiosa não se explica sem as expectativas da recompensa”.
No mundo em que a noção de gratuidade se tornou algo completamente sem sentido (por exemplo, a famosa frase que da cultura capitalista norte-americana se tornou uma “verdade” universal, “Não há almoços gratuitos”), o cristianismo deveria ser uma pedra de contradição a essa sociedade e fazer da noção de “graça”, gratuidade, um diferencial.
Nestes dias que vivemos, com tristeza, o falecimento de Gutierrez, o último dos grandes nomes da teologia da libertação que começaram na década de 1960 essa potente corrente teológica que mudou o cristianismo do século XX, vale a pena recuperar aqui o ensinamento de um outro grande nome, Juan Luis Segundo, sobre a noção de graça. Ele nos lembra que, quando os primeiros cristãos se decidiram a empregar a palavra “graça” (charis) para falar da sua experiência de conversão (no sentido mais profundo da palavra), esse vocábulo reunia diversos significados, como encanto, benevolência, misericórdia e gratidão.
Como diz Segundo, “não há dúvida de que a experiência inicial é, em nosso caso, a do encanto corporal. [...] uma ausência de rigidez e uma abundância de vida. O que é rígido não é encantador, nem o que se sujeita a regras, nem o que sempre continua imutável. Também não é encantador o que é escasso, discreto, opaco, o que carece desse impulso que provém da abundância interior.” (Teologia aberta para o leigo adulto: Graça e condição humana)
Um outro aspecto da graça é o fato de uma relação benéfica, mas é importante lembrar que nem todo benefício é graça, não é de graça. Por isso, ele diz: “o encanto está só naquilo que é dom, benefício gratuito. Jamais direi que é encantadora a pessoa que me paga o que me deve”. Entre diversas significações da palavra graça na época do início do cristianismo, “são as duas primeiras significações, mais diretas, que foram mais determinantes na escolha do vocábulo: encanto e gratuidade”.
Em resumo, Segundo diz: “A graça é um dom, isto é, algo gratuito, algo não merecido, algo a que o homem não tem direito e que, portanto, não pode reclamar”. E uma expressão encarnada da graça de Deus no interior da história é o amor gratuito entre seres humanos que se cuidam entre si e, movidos pela compaixão, se preocupam com o sofrimento e mortes de pessoas que não lhes podem pagar ou retribuir, misericórdia para com pessoas que “não são nada” na sociedade.
Voltando à citação de Gutierrez, o Satanás no livro de Jó é um ser religioso, temente de Deus. O seu erro é reduzir as relações humanas e a religião à relação de retribuição ou, em termos contemporâneos, da relação de compra e venda. Infelizmente, a grande parte das religiões do mundo, incluindo o cristianismo, incorporaram essa teologia da retribuição radicalizada pelo capitalismo como uma essência da sua religião.
E como dizia Paul A. Samuelson, no seu famoso livro “A introdução à economia” (que vendeu mais de 4 milhões de exemplares no mundo), as mercadorias irão para os que têm mais votos (dólares) e não para os que mais precisam. Como exemplo, ele escreveu que, ao invés de o leite ir a uma criança pobre raquítica que precisa para sobreviver, irá ao cachorro de um milionário porque ele tem mais votos.
Uma religião concreta, não importa se é cristianismo ou outra, que usa uma doutrina teológica da retribuição para justificar e fortalecer a insensibilidade social para com pobres e outras pessoas que sofrem de relações injustas, não ensina o caminho de Deus e da humanização. Há muitas doutrinas, catecismos e pregações que são caminhos pedagógicos satânicos, que levam não a Deus, mas a um ídolo.
O caminho ao Deus da Vida, revelado em Jesus, passa necessariamente pela “opção pelos pobres e das vítimas de relações sociais opressivas e injustas”. Pois, para testemunharmos que Deus ama a todos e todas, por graça e não por nosso merecimento, precisamos garantir que todas pessoas, por mais pobres e “pecadores”, tenham direito a viver com dignidade. Pois, como dizia Gustavo Gutierrez, “O fundamento último da preferência pelo pobre está na bondade de Deus e não na análise social ou na compaixão humana, por relevantes que possam ser essas razões”.
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Gustavo Gutierrez, o caminho satânico da religião, a graça e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung - Instituto Humanitas Unisinos - IHU