03 Outubro 2024
"Dom Mauro Morelli faz e fará muita falta para todos aqueles que ainda acreditam no amanhecer de um novo tempo. No entanto, seu legado permanece vivo", escreve Dênis Cândido da Silva, padre, mestre em teologia sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e atual presidente do Instituto Harpia Harpya, fundado por Dom Mauro Morelli.
No dia 09 de outubro de 2024 celebramos a memória pascal de Dom Mauro Morelli, bispo fundador da Diocese de Duque de Caxias, na baixada fluminense. Fazer memória, é um ato litúrgico, um ato pascal. A eucaristia, é o ato de perpetuar na vida e na história o desejo do Cristo: “fazei isto em memória de mim”. Sem essa memória, com certeza, rapidamente o Cristo e toda a sua mensagem, cairiam no esquecimento.
Num contexto de perda de memória, de “alzheimer eclesial” é importante resgatar a memória daqueles e daquelas que simplesmente não passaram por esse mundo, mas deixaram algo na história e na vida das pessoas. Muitos padres e bispos, acreditam que a Igreja começa e termina com eles, esquecem que a Igreja existia antes deles e existirá depois deles.
A Igreja celebra oficialmente em seu calendário litúrgico, a memória de seus santos e santas canonizados. Contudo, na vida do povo, outras memórias são celebradas. Algumas memórias são felizes, outras, profundamente dolorosas. Através de uma foto, uma vela acesa, uma oração, ou até mesmo, uma roda de conversa, faz-se memória de quem deixou um legado a ser lembrado. Há uma memória litúrgica não oficial na vida do povo simples. Existe uma ladainha “não canônica”, na oração do povo: Paulo, Pedro, Dorothy, Chico, Mauro Morelli e tantos outros, roguem por nós, nesses tempos tão difíceis. Santos e santas sem altar, mas presentes na vida e na luta do povo.
Dom Mauro Morelli, mais do que simplesmente um “bispo vermelho” era um “pastor das periferias e dos descartados”. O seu episcopado não se resumia à sacristia ou a cúria, ou ainda ao administrativo. Antes mesmo do Papa Francisco, Dom Mauro Morelli já chamava atenção para as inúmeras “periferias geográficas e existenciais”. A grande maioria dos bispos e padres nunca colocaram os seus sapatos bem engraxados nas periferias. Falam de uma periferia que não conhecem. Dom Mauro Morelli, ao contrário, era de fato, um missionário das periferias, estava onde o povo estava. Ele sempre foi um pastor inquieto e não um burocrata de plantão. Em nossas andanças pelas muitas estradas empoeiradas da serra da canastra, ele sempre dizia: “nunca conheça a sua paróquia somente pela janela do carro”. A teologia pastoral do primeiro bispo de Duque de Caxias, foi marcada por uma longa experiência junto dos pobres e nas periferias. Ele sempre foi um “pastor com cheiro de ovelhas”.
As pessoas dificilmente se lembrarão daquilo que falamos, mas jamais se esquecerão daquilo que fizemos. Dom Mauro Morelli foi um bispo de gestos marcantes, sorriso largo, abraço forte e palavra profética. Um bispo que tinha orgulho de ser gente e que precisava de gente. Uma de suas últimas palavras escritas de próprio punho em um diário que lhe presenteei foi: “sou um ser humano que jamais será feliz sozinho”. Dom Mauro Morelli era um bispo que fazia questão de se mostrar e se comportar como um homem comum, que gostava da rua, das praças e da convivência com as pessoas, assim como o próprio Jesus de Nazaré, que passava a maior parte de seu tempo, não no templo, mas nas estradas, vilas e povoados, nas periferias e na vida das pessoas. Para Dom Mauro Morelli, toda pessoa deve ser tratada com “excelência”.
Dois pontos ainda merecem destaque no grande legado desse grande bispo e pastor das periferias. Primeiro, que a alimentação além de ser um direito básico é também um “ato teológico”. Para ele, era necessário e fundamental alimentar a pessoa na sua totalidade, na sua inteireza. É preciso alimentar a sua dimensão física, psicológica e a sua dimensão espiritual. Segundo, já nos últimos anos de sua vida, Dom Mauro Morelli, chamava atenção para a profunda crise civilizatória que estamos enfrentando. Para ele, a “nossa humanidade, se esgotou”, nos tornamos indesejáveis ao bem-estar do planeta. A crise climática é antes de tudo, fruto dessa profunda crise antropológica e civilizatória, provocada por uma humanidade que aos poucos está se fragmentando, perdendo a sua inteireza, olhando para as “fontes da vida”, somente como algo rentável. Sem uma profunda conversão, estamos à beira da extinção da raça humana. O planeta não nos suporta mais.
Apesar de estar ciente da profunda crise civilizatória que vivenciamos, diferente dos negacionistas de plantão, Dom Mauro Morelli, era um homem de e da esperança. É importante falarmos de esperança, não somente em vista do jubileu da esperança, mas sobretudo, porque sem esperança, é impossível acreditar em um mundo novo. “Não sou um homem de fantasia, um iludido, sou um homem de esperança”, dizia ele. O amigo e companheiro de luta o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, tinha como lema “De esperança em esperança”. Ambos foram e são profetas da esperança. Apesar de tudo, Dom Mauro Morelli, acreditava no amanhecer de um novo tempo e uma nova humanidade. Sua mensagem é um bálsamo para todos, nesses dias de tantas queimadas e destruição da mãe terra.
Dom Mauro Morelli faz e fará muita falta para todos aqueles que ainda acreditam no amanhecer de um novo tempo. No entanto, seu legado permanece vivo. Algumas “pessoas não morrem, ficam encantadas”, já dizia o grande Guimarães Rosa. Falaremos muito ainda de Dom Mauro Morelli, bem como de Paulo Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga e tantos outros, talvez mais fora da Igreja do que dentro dela. Muitos padres e bispos, andam sofrendo de perda de memória, ou pior, querem apagar a memória daqueles que já jamais serão esquecidos. Muitos desses, quando terminarem seu ministério, serão somente um quadro na parede de algum palácio episcopal. Enquanto alguém se lembrar, fazer memória, Dom Mauro Morelli continuará vivo. Só morreremos definitivamente, quando ninguém mais se lembrar de nós. Dom Mauro Morelli vive e viverá no coração de muitas pessoas, sobretudo, na “terra abençoada” de Duque de Caxias e na “terra da abençoada” da Serra da Canastra, onde nasce o rio São Francisco. Dom Mauro Morelli, presente na vida da gente!