03 Outubro 2024
"Na pequena sinagoga de Nazaré, Jesus lançou seu programa de ação pública: libertação integral de todos. “Vim para libertar os presos!” (Lc 4,18). Isto se trata de libertação política, pois quem prende é a polícia a mando do rei, poder político. Logo, todo preso é um preso político", escreve Gilvander Moreira, 01-10-2024.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em filosofia pela UFPR; bacharel em teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de teologia bíblica no Serviço de Animação Bíblica – SAB, em Belo Horizonte.
O Brasil é o país que tem a 7ª maior população do mundo, mas está em 3º lugar entre os países no número de encarcerados. Já são mais de 800 mil presos em um sistema penitenciário já caracterizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como “um estado de coisas inconstitucional”. Contando quem já cumpriu pena, há no Brasil milhões de famílias com algum parente que já foi preso ou está preso. Massacres de presos já aconteceram em muitas prisões no Brasil.[1]
Assisti outro dia ao filme documentário “O Grito – Regime Disciplinar Diferenciado”, direção de Rodrigo Giannetto, sobre o sistema penitenciário no Brasil, disponibilizado na Netflix. Fiquei estarrecido ao ver e ouvir os depoimentos de ex-presidiários, de mães de presos, de parentes, de advogados/as e constitucionalistas e até do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso. O filme O Grito interpela com veemência nossa consciência, pois conta de forma comovente e instigadora histórias de famílias de prisioneiros que foram afetadas pela portaria 157/2019 do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro. Portaria que proibiu o contato físico e privou detentos nos presídios federais de segurança máxima de manter seus laços sociais e afetivos. Impôs o banimento ao impor a incomunicabilidade do preso.
Hoje, sofrem de forma brutal não só os presos e suas famílias, mas também funcionários públicos, como agentes penais e diretores de presídios. No Brasil, o encarceramento em massa está a todo vapor. Ano a ano aumenta-se vertiginosamente o número de presos. Ao superexplorar a dignidade humana e aumentar violentamente a desigualdade socioeconômica, a sociedade capitalista se torna uma fábrica de “criminosos” e se deleita com requintes de vingança e sadismo ao empurrar o povo negro, empobrecido e periférico para detrás das grades. São jogados em presídios superlotados, com insalubridade, comida azeda, com poucos agentes penitenciários e mal remunerados, o que piora mais a situação.
Falta de acesso à água, dormitórios superlotados, falta de assistência à saúde e dificuldade de acesso à informação são algumas dificuldades enfrentadas pelas pessoas em privação de liberdade. Foto: Arquivo Agência Brasil
A Lei de Execução Penal, Lei n. 7.210/1984, diz que a pena que alguém deve cumprir após ser condenado por ter cometido um crime é a restrição do direito de ir e vir, ou seja, ficar preso, mas todos os outros direitos da pessoa humana precisam ser garantidos pelo Estado. E diz que a pena não deve passar do apenado. Deve-se restringir a liberdade e não a dignidade humana. Mas na realidade as prisões brasileiras, salvo honrosas exceções, são masmorras e brutais campos de concentração que desumanizam, vingam e castigam quem cometeu crime, julgado por um poder judiciário predominantemente integrado pela classe dominante que mais defende a propriedade privada capitalista do que o direito à vida e a dignidade humana.
Por vários anos, enquanto conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Minas Gerais, após receber denúncias com frequência de maus tratos e tortura em presídios de Minas Gerais, integrando Comissão de apuração de denúncias, visitei vários presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG. Calamitosa e horrorosa a situação. Presos amontoados em celas superlotadas, submetidos ao arbítrio de agentes penitenciários que, volta e meia, surgiam com uma “tropa de choque” exclusiva deles para reprimir com brutal covardia. Comida estragada, ausência de banho de sol, falta de água, condições de insalubridade, ter que dormir em celas com “boi” fedorento. Com julgamento não concluso no STF, a revista íntima é vexatória e viola a dignidade humana, humilham mães, avós, esposas ou namoradas... Esta revista íntima é uma violência atroz perpetrada contra familiares de pessoas presas. Eis sinais de cárceres sendo na prática novas senzalas.
40% das pessoas presas estão presas provisoriamente, ou seja, estão presas sem terem sido condenadas. Enquanto membros da classe dominante continuam soltos com manobras judiciais intermináveis após terem sido condenados. 40% dos presos nunca puderam sentar na frente de um juiz para contar seu lado da história. E o direito de defesa? E o devido processo legal? E o direito ao contraditório? 70% das pessoas encarceradas são negras e seus crimes são envolvendo drogas sem ligação nenhuma com facções. Com tanta tecnologia existente não se estrangula o tráfico de drogas porque há poderosos que lucram muito.
O sistema carcerário é constituído dos regimes fechado, semiaberto e aberto. Em 2003, foi criado legalmente e implantado em 2006 o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), de restrição drástica, “regime fechadíssimo”. Hoje temos cinco presídios federais de segurança máxima, com muralhas de nove metros de altura e com base profunda no solo, paredes capazes de resistir a bombardeio de alto calibre, celas individuais, onde os presos permanecem isolados 22 horas por dia. Qual é o ser humano que resiste a esta atroz segregação e infame isolamento? Visitas com excessiva restrição sem nenhum contato físico, pois entre o preso e a pessoa visitante há um vidro muito grosso à prova de bala. A comunicação apenas por interfone com tudo registrado em câmeras que monitoram tudo em áudio e vídeo.
Os presídios federais não são para qualquer tipo de preso, mas exclusivamente para presos com ligação com facções. Logo, empresários e políticos que tenham cometido crimes de “colarinho branco” não são jogados em presídios federais, ou seja, não são violentados brutalmente na sua dignidade. Ou seja, braço pesadíssimo do Estado em cima da classe empobrecida e mão leve com os da classe dominante. E, pior, chamam isto de Justiça.
Superlotação é um problema recorrente nos complexos penitenciários brasileiros - Comissão de Direitos Humanos da OAB/PA
Os depoimentos doloridos de pais, mães e parentes de presos demonstram que as famílias também estão sendo afetadas violentamente pelas penas atribuídas aos seus filhos, o que é inconstitucional. Adoecimento mental, ansiedade e depressão estão levando presos e agentes penitenciários ao suicídio em número cada vez mais alarmante. Cortar os vínculos de comunicação com a família é brutalidade que empurra o preso para o adoecimento. Ninguém é de ferro para resistir sobreviver sem contato pelos menos com sua família e com pessoas que mais amam. Os presos estão pedindo socorro.
O STF reconheceu, dia 04 de outubro de 2023, a violação massiva de direitos fundamentais no violento sistema prisional brasileiro. Com a conclusão do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, o STF deu prazo de seis meses (Prazo vencido dia 04/04/2024!) para que o Governo Federal elaborasse um plano de intervenção para resolver a situação de desumanidade nos presídios, com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena. As condições degradantes dos presídios degradam as pessoas, ao invés de ressocializar transformam os presídios em fábricas de criminosos.
Já está demonstrado que o sistema prisional que ressocializa é o das APACs, Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, “prisões alternativas” com apenas dezenas de presos, onde os presos são respeitados na sua dignidade, tratados com amor e cuidado. “Aqui entra o homem, o delito fica lá fora.” Eis o lema que rege a vida diária nas APACs.
Por que não se segue a criminologia defendida por Eugenio Raúl Zaffaroni, jurista e magistrado argentino, que propõe imputar ao Estado parte da pena de um criminoso pelos direitos que foram negados a ele antes de ele cometer um crime, sendo que na maioria das vezes o jovem é empurrado para o crime pelas violações de direitos que sofre desde o ventre materno?
Após ser criado na Galileia (periferia da Palestina), convivendo com o povo empobrecido, Jesus de Nazaré, antes de se tornar mestre, se tornou discípulo do grande profeta João Batista. Ao saber que o profeta João Batista tinha sido encarcerado em uma prisão de Segurança Máxima e condenado à pena de morte, Jesus foi tomado por uma ira santa e sentiu dentro de si a voz do Pai: “É chegada a minha hora!” (Mc 1,14). Por solidariedade a um preso Jesus começou sua missão pública.
Na pequena sinagoga de Nazaré, Jesus lançou seu programa de ação pública: libertação integral de todos. “Vim para libertar os presos!” (Lc 4,18). Isto se trata de libertação política, pois quem prende é a polícia a mando do rei, poder político. Logo, todo preso é um preso político.
Pelo seu ensinamento libertador, respaldado por uma prática amorosa e libertadora, Jesus Cristo reintegra os violentados, entre os quais estão os presos. Por isso, Jesus foi preso e condenado à morte. Na cruz (regra do Império Romano para escravizados e subversivos!), Jesus acolheu outro prisioneiro, dizendo-lhe: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). Assim, segundo os evangelhos, Jesus inicia sua missão pública acolhendo o clamor de um preso e termina estendendo a mão ao outro preso. Por uma sociedade sem prisões sigamos lutando!
[1] “56 mortos em presídio em Manaus, dia 02/01/2017”. Essa é a informação oficial. No massacre do Carandiru, em 02/10/1992, em São Paulo, SP, oficialmente foram 111 mortos, mas segundo o padre da Pastoral Carcerária, na época, o massacre pode ter atingido letalmente mais de 200 presos. Em um presídio de Ponte Nova, MG, no dia 23 de agosto de 2007, 25 presos morreram queimados durante um incêndio. Outros oito presos foram queimados vivos em Rio Piracicaba, MG, em janeiro de 2008, e outros três, em uma cadeia de Arcos, MG. Em menos de um ano, em 2008, só em Minas Gerais, 36 presos morreram queimados em prisões; feridos, centenas. E pelo Brasil afora...
1 - Maria Criseide e Wellington, Inocentes, mas pena 15 anos de prisão, presos a 4 anos, tortura/estupro
2 - Jorge Almeida, militante da luta pela Reforma Agrária em MG: 4,5 anos presos, poeta, de Buritis/MG
3 - II Palavra Ética na TVC/BH: APAC de Lagoa da Prata/MG. Jeito humano de lidar com os presos
4 - Palavra Ética na TVC/BH: Direitos Humanos dos presos, c/ Aylton Magalhães/DPE/MG. 02/04/16
5 - Dona Tereza defende direitos dos presos de MG e critica promotores da área criminal. 14/03/16
6 - Palavra Ética com frei Fernando Brito: preso 4 anos nos porões da ditadura militar. 21/11/2012
7 - Pastoral Carcerária: José Raimundo de Freitas, após 38 anos preso, artista. 2a parte. 20/05/2012
8 - Dona Teresa - Presidenta do Grupo dos parentes dos presos - Direitos Humano - 10/12/2011
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Presos e familiares sob violência atroz. “Libertai-os”, diz Jesus! Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU