Doutor em História Contemporânea pela UAB (Universidade Autônoma de Barcelona), Josep Burgaya é ensaísta e colunista, além de professor na Universidade de Vic, em Barcelona. Participou de inúmeras conferências e regularmente passa algum tempo em universidades estrangeiras. Dentre seus livros, podemos citar: Populismo y relato independentista en Cataluña. ¿Un peronismo de clases medias? (2020), La máquina digital. Feudalismo hipertecnológico en una democracia sin ciudadanos (2021) e Tiempos de confusión. De la clase adscriptiva a la identidad electiva (2023). Centramos esta conversa na sua recente publicação: Homo movens: el imperativo de la movilidad y la turistificación del mundo.
A entrevista é de Salvador López Arnal, publicada por El Viejo Topo e reproduzida por Rebelión, 07-09-2024. A tradução é do Cepat.
O que é o Homo movens? Quem é (somos) Homo movens?
É cada cidadão, qualquer um de nós, a quem foi imposto uma mobilidade constante como um imperativo econômico, social ou cultural. Este impulso ao movimento nada tem a ver com a tendência ancestral de querer conhecer os contornos, de ir além do território do conforto. Tem pouco a ver com conhecimento ou diversão cultural. Gera-se toda uma economia de movimento. Esta tendência induzida de deslocamento representa um grande negócio com o qual devolvemos grande parte da nossa renda. Ao longo do caminho sofremos de ansiedade para estar à altura, frustração porque nada foi conforme prometido. E tudo isto, além de ser insustentável, pouco contribui para o nosso bem-estar e para a nossa busca de felicidade.
Mas se isso não contribui para o nosso bem-estar e a nossa busca de felicidade, por que caímos na armadilha do fluxo permanente?
Porque é a cultura dominante. Os valores da nossa sociedade são produzidos pelo marketing e pela publicidade. Ir de um lugar a outro é uma aspiração e ao mesmo tempo um propósito. A ansiedade nos domina e isso nos leva a tentar surfar no mundo, no nosso trabalho e na frustração pessoal, acreditando na ficção de que fazemos parte de um mundo global e cosmopolita. Na realidade, queimamos tempo, e na nossa vida ativada não há tempo para a reflexão, o pensamento ou a poesia.
Embora você tenha respondido em parte: em que consiste o “imperativo da mobilidade” a que se refere o subtítulo do ensaio? Está instalado no DNA, nos memes dos humanos contemporâneos?
É no final do século XX que se verifica um crescimento exponencial dos deslocamentos e se impõe a cultura do movimento. Uma espécie de fuga constante de nós mesmos sobre a qual se constrói um dos setores industriais mais importantes do mundo – Josep Burgaya
Durante a maior parte da história da humanidade, para além das sociedades caçadoras-coletoras que tinham de ser nômades por obrigação, as sociedades estabeleceram-se de forma sedentária e a sua principal ocupação não foi conhecer mundos desconhecidos, mas defender o seu ‘território’. As vidas da maioria das pessoas que habitaram este mundo, pelo menos até a industrialização, desenvolveram-se no espaço de algumas léguas. Além vivia o desconhecido, o medo e a insegurança. A viagem sempre foi algo de minorias abastadas e um pouco dada à procura das sensações do diferente. O número de viajantes, além dos fenômenos colonizadores, sempre foi ínfimo. É no final do século XX que, na esteira da globalização, da internet e dos voos baratos, se verifica um crescimento exponencial dos deslocamentos e se impõe a cultura do movimento. Uma espécie de fuga constante de nós mesmos sobre a qual se constrói um dos setores industriais mais importantes do mundo.
O que você quer dizer com “turistificação do mundo”? Mundo é mundo neste caso?
Refiro-me a um fenômeno de transformação de grandes partes do planeta, e especialmente das cidades, que quando colocadas a serviço desta indústria se modificam e perdem a sua autenticidade, tornando-se parques temáticos que já não estão a serviço do bem-estar dos seus habitantes, mas de seus visitantes. A economia, o espaço público, os serviços e o bem-estar mudam. As cidades tornam-se mais caras, gentrificam e expulsam os seus cidadãos, que têm de enfrentar preços muito mais elevados de moradia, hotelaria e alimentação, e não têm outra escolha senão fugir para as periferias. Sentem-se despossuídos, expulsos de um ambiente que criaram e que lhes pertencia. As grandes hordas de viajantes não provocam apenas a massificação e a perda de tranquilidade. Elas transformam o ‘lugar’, plastificam-no e o embrulham para transformá-lo em um produto de consumo que nada tem a ver com a realidade que poderia ser atraente.
Fazer turismo é viajar?
Não, longe disso. A viagem era algo relevante para conhecer, na sua normalidade, outra realidade e onde a preparação e o processo de transferência (o itinerário) eram tão fundamentais quanto o destino. Turismo é ir a um lugar pré-fabricado porque nos é imposto pelos padrões de consumo do capitalismo atual, onde o processo para ‘chegar’ deve ser mínimo. Consumimos destinos em forma de fotografias. Viajar era conhecer, fazer turismo é ter mais uma foto no currículo de consumo, pelo menos aparentemente, um halo de cosmopolitismo e conhecimento que de fato não adquirimos. Poderíamos comprar alguns cartões postais e ficar em casa. O meio ambiente, no mínimo, apreciaria isso. O problema é que a viagem não é mais possível. Somos todos turistas, queiramos ou não. O nicho de mercado das “viagens autênticas” é o mesmo, mas pagando mais. Há turistas em todos os lugares e, muitas vezes, quem nos serve são trabalhadores migrantes extremamente mal remunerados.
Pergunto-lhe mais adiante sobre esses baixos salários. O turismo é progresso (em alguns dos seus sentidos positivos) ou é exatamente o contrário?
A massificação turística, a turistificação, não é progresso mas um sinal de fraqueza. Um certo grau de recepção turística, que não ultrapasse 2% do PIB, é compatível com modelos avançados de desenvolvimento. A dependência deste setor acima dos 10% (na Espanha é de 13% e em Barcelona de 14%) é uma aposta perdedora. É um setor muito frágil e mutante, sensível a sentimentos de segurança/insegurança, que depende de mão de obra barata, que destrói os destinos, encarece a moradia e os serviços e que grande parte do movimento de riqueza que promove vai para as grandes empresas internacionais e não beneficia os destinos. A função da Espanha e de Barcelona como grandes centros de recepção turística resulta de um país pobre e, na realidade, empobrece-o. É prejudicial a apostas mais estratégicas, com maior produtividade e maior valor acrescido.
Mas, no caso de Barcelona por exemplo, quem, que setores sociais optaram por transformá-la na “la millor botiga del món”?
A burguesia atual é bastante míope. Ela se comporta como os personagens de Santiago Rusiñol. Mentalidade de lojistas e de “peix al cove”. Jordi Pujol os representava muito bem. Uma ideia de país e de cidade meramente provinciana, desprovida de qualquer grandeza. Contentam-se em ser funcionários das grandes multinacionais ou em hospedar franquias de marcas ou hotéis internacionais. O fato de Joan Gaspart ter representado, durante anos, o negócio do turismo explica muitas coisas. O que é realmente curioso é que a política, especialmente a política de esquerda, comprou estes personagens e interesses.
Peço-lhe um comentário de texto sobre uma das citações (de Gerhard Nebel) com que inicia o livro: “Um país que se abre ao turismo está metafisicamente fechado. A partir daí oferece uma decoração, mas não mais o seu poder mágico. O turismo é um dos grandes movimentos niilistas, uma das grandes epidemias do Ocidente”.
A chamada abertura turística é, na verdade, uma rendição. O turismo não gera nada de novo e diminui e deforma o que ocupa. E, é verdade, até o patrimônio artístico que possuímos torna-se uma decoração em papel machê. A pergunta básica continua sendo: a quem devem servir os territórios ou as cidades: aos seus habitantes, ou ser o espaço para construir um negócio que os destrói? A intensidade do movimento impossibilita a vida no território, enquanto o destino turístico perde o encanto que já teve. É um fenômeno impossível na escala para a qual caminhamos e não há nada de criativo nisso. Na verdade, para quem o pratica como se não houvesse amanhã, nada mais oferece do que a prática de um passatempo. É um ócio, uma distração, com muitos efeitos colaterais, com muitas externalidades negativas.
Qual a importância da indústria do turismo num país médio como a Espanha?
É muito importante. Foi uma aposta franquista para capturar economias europeias que, desenvolvido sem planos ou sistemas de contenção, devastou tudo. O turismo de “sol e praia” destruiu grande parte da zona costeira mediterrânea na forma de um continuum urbano sem critérios, consumidor de território e pouco sustentável. O sol e os preços baratos seduziram os europeus ávidos de praia, atraídos pela ‘falsa autenticidade’ do sul do continente. Tudo o que poderia ser suscetível foi reclassificado. Nasceu uma indústria local composta por grandes hoteleiros e construtoras apoiados pelas câmaras municipais.
A Espanha depende escandalosamente do turismo, o que implica também uma enorme dependência dos grandes operadores do turismo e das plataformas de internet. Acessamos principalmente o turismo de baixo custo e com pouco poder aquisitivo. As coisas têm de ser muito forçadas para manter os preços baixos, um papel que corresponde aos baixos salários pagos à mão de obra imigrante no setor hoteleiro. Do contrário, as hordas serão desviadas para a Croácia, Grécia, Tunísia ou Marrocos. É uma aposta perdedora, muito viciante, da qual é difícil escapar. Ninguém, politicamente falando, quer pôr fim a um setor tão influente.
Tudo bem, mas imaginemos que alguém nos diga: suas críticas são interessantes, razoáveis, mas não há outras perspectivas. A Espanha deve desempenhar esse papel na economia internacional. Não existe outra coisa, não pode ocupar outras posições, somos o que somos: sol, turismo e alguma coisa a mais. Pensar em outra situação é utopia, uma bela utopia irrealizável.
Sim, mas isso não é verdade. A Espanha pode desenvolver, e de fato o faz, outras atividades. Dispomos de recursos naturais, de capital humano, de tecnologia e uma grande tradição industrial. Não estamos condenados a ficar acorrentados à indústria do turismo, que, queiramos ou não, deve diminuir gradualmente o seu papel. No low cost, não poderemos competir a menos que aceitemos a “nova escravatura” estabelecida no setor através do abuso do trabalho migrante. É verdade que na divisão internacional da produção querem atribuir-nos esta função, mas devemos resistir. Há 50 anos, a Finlândia devia fornecer madeira e bacalhau à Europa Ocidental. Hoje desenvolve tecnologia e conhecimento.
Qual a sua opinião sobre os movimentos de oposição à chegada de mais turistas às suas cidades, às suas comunidades? Penso nas Ilhas Canárias ou em Amsterdã, por exemplo, embora também tenha havido protestos em cidades como Barcelona, Madri, Veneza e Nápoles. É simples e passageira turismofobia indocumentada?
Os movimentos críticos ao turismo são lógicos e demoraram a tornar-se evidentes. Existem cidades e territórios como as Ilhas, que já não têm capacidade de carga. Já não é mais possível viver e pagar custos exorbitantes. A dinâmica avassaladora do fenômeno turístico faz com que os principais destinos morram de sucesso. E o problema é que estamos indo mais longe. Se os números não crescerem, é considerado inadequado para o setor, mas também para boa parte dos governantes. Amsterdã e Veneza já utilizam o marketing reverso para desencorajar os visitantes.
Com 600 mil habitantes, Amsterdã recebe 20 milhões de visitantes, que se concentram em poucos espaços. Em Veneza restam apenas 50.000 habitantes – não é possível morar lá se não tiver um negócio de turismo. Tem catracas de entrada, é uma aberração. Algo semelhante pode ser dito de Barcelona, com 30 milhões de visitantes. O conceito de “turismofobia”, que o jornalismo comprou, é para mim inaceitável. Não é desprezo pelos visitantes ou pelo novo como se fôssemos provincianos; é a necessidade de recuperar o caráter habitável da cidade. Não se trata de um repúdio ao estrangeiro, mas de uma falta de planejamento e de pacificação do fenômeno turístico.
Mas como se poderia regulamentar o número de visitantes na Espanha, se fosse o caso? Aumentando os custos turísticos, por exemplo?
Acho que o low cost foi e é uma aposta desastrosa. Temos que passar para outro tipo de turismo que, com outros preços, se autorregulará reduzindo o número de viagens per capita, porque é disso que se trata. Só encarecê-lo implica fazer uma aposta classista. Em todo caso, a contenção e a pacificação do turismo deve ser algo global que internalize os reais custos ambientais, que dê primazia nas cidades aos seus habitantes, que proteja os espaços naturais, que evacue uma parte importante da primeira linha de costa, que qualquer novo equipamento deve demonstrar a sua ‘neutralidade’ em carbono...
Olhando com luzes médias e longas, o turismo, tal como o temos vivido nos últimos anos, é sustentável? Se não, por quê?
Não, o conceito de “turismo sustentável” é um oxímoro. Tiramos o mago da garrafa ao difundir a notícia de que todos poderíamos viajar constantemente, de maneira barata e sem efeitos colaterais. É uma idiotice. No último ano, cerca de 1,5 bilhão de pessoas fizeram viagens internacionais. Todos os anos há mais classes médias emergentes que podem pagar, especialmente nos países asiáticos. Se não fizermos nada, em 2030 mais de 2,2 bilhões de pessoas se deslocarão. Os aeroportos e os sistemas de comunicação estão saturados. O impacto ambiental é enorme. Nada como a aviação contribui mais para as mudanças climáticas.
Sei que são más notícias e que poderia levar as pessoas a acreditar que praticamos um certo elitismo, mas o turismo atual não pode ser generalizado para 7 bilhões de pessoas. Se a contenção for feita com o preço, voltarão a viajar principalmente as classes abastadas. Deve ser racionalizado, e isso significa uma diminuição nas viagens per capita. O aeroporto de Barcelona, ou o aeroporto de Madri, já estão no limite. Tem certeza de que é racional dobrá-los?
Quem se beneficia com tudo isso? Quem se beneficia mais com uma indústria que alguns críticos chamam de quinto ou sexto cavaleiro do Apocalipse?
Fundamentalmente, é uma indústria que é aproveitada por grandes plataformas de internet (Booking, e-Dreams, Airbnb...), grandes grupos hoteleiros transnacionais e companhias aéreas, especialmente aquelas especializadas no low cost. Com eles ficam 80% dos gastos do turismo. A partir daí, a nível local, são os hoteleiros e o setor de restaurantes, além daqueles que controlam os apartamentos e os aluguéis turísticos. Nestes últimos, também existem grandes grupos de atores nacionais e internacionais, além dos locais que operam em poucas localidades. O setor local da indústria alimenta-se basicamente dos 100 euros em média que os visitantes gastam diariamente. O grande negócio não está no destino. Pelo contrário, o local tem que lidar com todos os efeitos colaterais. Estamos diante da privatização e da degradação de um bem coletivo.
Diz-se por vezes que Barcelona-2024 é, mais do que uma cidade, essencialmente um ‘parque temático’, especialmente em determinadas partes da cidade. É verdade? A afirmação não é um tanto exagerada?
Barcelona era uma cidade com muitos atrativos reais, mas também simbólicos relacionados à cultura e à modernidade. Agora é um parque de atrações com alguns vestígios de reivindicações culturais e patrimoniais. A afirmação não é nada exagerada. O crescimento ilimitado desta atividade pode até levar à perda desta condição. Quando se visita a Sagrada Família em massa, realmente se sente a atração de uma ‘raridade’, mais do que um gozo arquitetônico. A fixação em Gaudí é um excesso que, no caso do templo expiatório, é ainda mais incrível visto que ainda é uma recriação faraônica do seu projeto. Barcelona já não é o que era, nem poderá voltar a ser. As características atrativas de uma cidade se perdem para sempre quando esta se volta para o turismo.
O que há de verdadeiro em que os trabalhadores ligados à indústria do turismo são um dos setores com pior remuneração, com salários mais baixos, com as piores condições de trabalho e com menos possibilidades de conciliar a vida profissional e a vida familiar?
Os baixos custos exigidos pela indústria do turismo são baseados em salários baixos. O salário médio no setor não ultrapassa os 18 mil euros anuais. Para efeito de comparação, na indústria ultrapassa os 40 mil euros. Um mundo de salários mínimos, isso quando os contratos são feitos dentro da lei. É evidente que é um setor em que ainda existe muito trabalho informal e cargas horárias exorbitantes fora dos acordos coletivos. Trabalhos duros e dias de superexploração. É o caso das ‘kellys’ [camareiras] que limpam e arrumam os quartos dos hotéis. Estas condições não são muito aceitáveis para os trabalhadores locais, e é por isso que o setor depende da ‘adaptabilidade laboral’ dos contingentes migratórios. Estrangeiros servindo estrangeiros. Diferentes situações sociais e econômicas encontradas em “outro lugar”.
Quais são os principais efeitos (positivos e negativos) dos apartamentos turísticos? É um setor devidamente regulamentado? Poderia haver mais controle?
Os apartamentos para uso turístico têm um impacto muito negativo no acesso à moradia dos cidadãos. Ao retirar um número tão grande da oferta de aluguel convencional, o impacto nos preços dos aluguéis é muito grande. Também impacta o mercado de compra e venda. Grandes proprietários destinam prédios novos ou antigos para uso turístico. Um fenômeno especulativo que condiciona fortemente o mercado imobiliário tendo em conta que, ao mesmo tempo, não existem políticas públicas sólidas e eficientes para promover a moradia de caráter público. O setor de aluguéis turísticos precisa ser rigorosamente regulamentado e controlado. Fazer isso em plataformas como o Airbnb é crucial. Embora possa ser tecnicamente difícil e a perspectiva empresarial torne os especuladores muito imaginativos, muito mais se pode e se deve fazer.
Muito mais? Por exemplo…
A turistificação pressiona o mercado imobiliário, por isso são necessárias políticas públicas que permitam garantir que não seja impossível alcançar uma moradia digna e economicamente acessível. Temos de penalizar os grandes proprietários, expropriar as moradias ‘cativas’ nas mãos dos bancos, impedir a especulação estrangeira, estabelecer ajudas, empréstimos bonificados, aumentar as promoções de moradia protegida, forçar a construção de moradias sociais pelos grandes promotores, fixar valores máximos, proteger os inquilinos, evitar despejos com efeitos sociais prejudiciais... O Airbnb deveria ser literalmente proibido, ao passo que as possibilidades de utilização turística de moradias particulares deveriam ser altamente restritas.
No livro, você fala de um turismo basicamente sexual. Que tipo de turismo é esse? Quem o pratica? Quais são os principais destinos
Sexo e turismo sempre estiveram relacionados. Todo período de férias está ligado a um imaginário de aventura sexual. Mais tarde será verdade ou não, mas as ofertas dos destinos turísticos nos levam a pensar nisso. Os ‘amores de verão’ fazem parte do nosso imaginário romântico. Mas, além disso, existe um tipo de turismo declaradamente de tipo sexual, que tem a ver, mais ou menos oculto, com a possibilidade de acesso à prostituição barata e idealizada em territórios distantes. Cuba, Tailândia, Brasil, países do Leste Europeu... têm, entre outros, esse predomínio no inconsciente coletivo como destino. A natureza do comércio sexual organizado é disfarçada pela afirmação de que se trata de locais com uma “mente mais aberta” e maior liberalidade. Engano ou autoengano. Uma forma de ampliar o caráter colonial de alguns territórios.
Você associa o turismo à crítica marxista do fetichismo da mercadoria. Pode nos dar um resumo? O que é a alienação mercantilizada?
O imperativo do movimento sobre o qual se sustenta a prática do turismo é claramente um caso de alienação. Viajamos de forma espartilhada, encorajada e mercantilizada. O resultado é uma extração de renda sem que haja a satisfação de nenhuma necessidade e que, por vezes, contribui para aprofundar a nossa frustração. É o lado B do trabalho, uma forma de ‘felicidade paradoxal’, segundo o conceito de Gilles Lipovetsky. A finalidade do turismo não é o nosso bem-estar, felicidade ou descanso. É um negócio que se baseia numa cultura que nos impõe esse movimento como parte da nossa cultura aspiracional. No sentido marxista, a mercadoria tem uma função que vai muito além da sua função ou necessidade. Possuí-la nos leva a acreditar que fazemos parte de um imaginário de elite ao qual, na realidade, estamos longe de pertencer.
Quando se fala de gentrificação, do que exatamente se está falando?
De processos de especulação em determinados bairros urbanos, especialmente no centro histórico das cidades, que envolve o deslocamento dos seus habitantes para as margens da cidade para construir moradias de alto padrão, hotéis e áreas de consumo de luxo. Em geral, antes disso, impõe-se um processo de degradação do bairro para ‘justificar’ uma intervenção pública de saneamento, monumentalização e entrega de possibilidades de negócios a grupos imobiliários. Um processo chave em Barcelona, Madri ou Nova York.
As pessoas simples que viviam em centros decadentes enquanto os ricos iam para as cidades-jardim das periferias, são agora expulsas porque os turistas e os setores sociais abastados querem retornar ao centro e desfrutar da cidade-serviço após décadas de tédio com o cortador de grama das urbanizações. Neste processo há grandes vencedores, poucos, é verdade, e muitos perdedores que veem tudo ficar mais caro e são induzidos a sair. Um processo de desapropriação. O centro e alguns bairros não são mais um lugar para pobres.
Você fala em algum momento de uma “classe nômade” de trabalhadores no mundo da internet. Que tipo de classe é essa? Por que nômade?
A internet tornou possível que algumas profissões não tivessem nada a ver com o local onde se mora. Só precisa de uma boa conexão à internet e que a cidade seja atraente. São os nômades digitais, hipsters que participam de maneira extrema da cultura da mobilidade. São os autênticos Homo movens. Não são de lugar nenhum e se instalam, sempre provisoriamente, em cidades globais com certo prestígio de modernidade. Possuem bom poder aquisitivo e pretendem viver intensamente os momentos de lazer por onde passam. Podem viver em Barcelona – neste momento são mais de 100 mil com estas características –, mas também em Lisboa, Amsterdã, Londres, Rio de Janeiro ou Bali. Não criam estruturas tecnológicas onde estão e não deixam nada para trás. Eles apenas contribuíram para a gentrificação, o aumento dos preços e a turistificação. Não procuram conhecer a cidade “autêntica”, mas encontrar a ideia que dela fizeram.
Suponhamos que um trabalhador, que viajou muito pouco até agora, argumente/proteste nos seguintes termos: “Até bem recentemente, basicamente apenas as ‘classes proprietárias’ viajavam e, durante algumas décadas, um setor muito grande da classe média. E agora que nós, os menos abastados, os trabalhadores vitalícios, especialmente quando estamos aposentados, podemos fazer algumas viagens, nada a ver com viagens de luxo, alguns teóricos ou filósofos do ‘ser e seu incessante fluxo’ vêm nos dizem que é preciso parar, que não há outra opção, que temos que viajar muito menos (e dizem isso apesar de muitos deles não pararem de viajar para cá e para lá). Onde está a justiça? Por que eles não param de viajar? Em que acreditaram estes novos déspotas ecoiluminados?” O que acha dessa posição? O que poderíamos dizer a ele?
Motivações ou interesses pessoais, que podem ser bem justificados, em muitos casos tornam-se impossíveis quando os avaliamos e analisamos de forma agregada. Todos têm o “direito” de viajar para Veneza, por exemplo, mas no conjunto não é possível que milhares de milhões de pessoas se desloquem para o mesmo destino ao mesmo tempo. É impossível. A atividade turística, como tantas outras coisas, deve ser analisada e avaliada pelo seu impacto agregado, por isso pode envolver a soma de vontades. É aqui que são impostas restrições que são inevitáveis. O mesmo acontece com tudo o que induz ao impacto no clima.
Eu, individualmente, não produzo o aquecimento global, mas os meus hábitos e comportamentos de consumo, uma vez generalizados, são impossíveis de sustentar. E é verdade que um dos setores que mais impacta a impossibilidade do turismo, afora os jovens, são os aposentados. A saúde e o poder de compra permitem-no. Fazem o que talvez não puderam fazer quando eram jovens, mas não é possível mantê-lo e até generalizá-lo muito mais. Talvez todos devêssemos nos perguntar se precisamos viajar tanto e o que procuramos neste tipo de fuga para lugar nenhum.
Nas partes finais do livro você fala em exigir “abordagens políticas sólidas destinadas a dar prioridade ao desenvolvimento econômico sustentável e à criação de estruturas com futuro, em vez da filosofia ‘pegue o dinheiro e corra’, porque é esta e não outra a estratégia que está subjacente a este setor e ao estado atual do capitalismo”. Quem defende essas abordagens críticas? Você observa forças no cenário político atual que raciocinam e agem nos termos que você aponta? Não é essa, em última análise, a natureza do capitalismo? Não é pedir peras à roseira para raciocinar e pensar nesses termos?
Concordo que isto se enquadra na lógica do capitalismo atual. Sempre crescer, sempre correr, mesmo que seja para o abismo. Eu fico com a ideia de Keynes de que, mesmo que não consigamos superar o atual sistema econômico, devemos pelo menos protegê-lo de si mesmo. Porque tende à autodestruição e, ao longo do caminho, à destruição da sociedade. Quer queiramos ou não, o turismo é uma indústria que deve diminuir, especialmente em países que, como a Espanha, se hipotecaram com ele. Talvez seja um pouco tarde e os vícios sejam difíceis de curar.
Politicamente, mesmo para a esquerda, é mais confortável brincar de ser business friendly do que desenvolver análises críticas sobre setores e atividades. Mas isso terá que ser feito. Quanto mais demorarmos, mais difícil será enfrentá-lo. Talvez, quando isso for feito, todo o capital econômico, social e cultural sobre o qual foi estabelecido já tenha sido destruído pelo turismo. O ambiente de Chernobyl como metáfora.
Quer acrescentar mais alguma coisa?
Deveríamos controlar alguns impulsos induzidos, como o do movimento contínuo e da aceleração, porque são pouco mais do que a mercantilização absoluta do nosso tempo. Abandonar os caminhos batidos, que nada mais são do que túneis, e construir uma vida à medida das nossas necessidades. Um modo slow (lento) em que a tecnologia e o movimento ocupavam um lugar muito mais modesto. As cidades e territórios smart (inteligentes) serão, na verdade, aqueles que se desenvolverem a serviço dos seus cidadãos. Desmercantilizemos nossas vidas.