Proposta de verticalização da orla de Natal atende aos interesses do mercado imobiliário. Entrevista especial com Ion de Andrade

Praia da Areia Preta em Natal, no RN | Foto: Saiba Mais Jornal

Por: Cesar Sanson | Edição: Patricia Fachin | 18 Outubro 2019

O processo de revisão do Plano Diretor de Natal, capital do Rio Grande do Norte, “está conturbado” e a principal divergência entre aqueles que participam das discussões é o “destino que vai ser dado ao patrimônio maior dos natalenses”: a beleza das praias, as comunidades que vivem na região praieira há mais de um século e o turismo, informa Ion de Andrade, vice-presidente do Centro Sócio-Pastoral Nossa Senhora da Conceição de Mãe Luiza e colaborador do BR Cidades. Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, ele explica que o novo Plano Diretor da cidade, que está sendo discutido desde abril deste ano, propõe a construção de prédios na orla de Natal e que a prefeitura do município, “que tem o papel de conduzir o processo, já assumiu o lado dos empresários do mercado imobiliário em favor da verticalização da orla. Esse é o grande divisor de águas dessa discussão, porque implica em vários problemas”.

Contrário a essa proposta, Ion de Andrade menciona que “a discussão sobre a verticalização da orla não interessa apenas às comunidades que vivem ali, mas à cidade como um todo, porque na medida em que os prédios altos são construídos na orla, eles destroem a paisagem para os moradores de outras regiões”. Além de a verticalização transformar radicalmente a paisagem de Natal, Andrade pontua que, com a construção de arranha-céus, a cidade perderá o seu perfil e isso vai trazer implicações para as populações locais e para o turismo. “Hoje, de qualquer parte da cidade vemos a orla de Natal por conta das conquistas do Plano Diretor anterior, que limita uma série de coisas. E esta é uma das razões pelas quais Natal é visitada: tem uma orla muito bonita. Portanto, o que estaria ocorrendo seria uma privatização dessa paisagem, que passaria a ser patrimônio de alguns bem-nascidos com capacidade financeira para morar na orla”.

Ion de Andrade também ressalta que o Plano Diretor precisa contemplar as periferias. “As nossas periferias vêm vivendo numa situação de subdesenvolvimento para a exclusão social, subdesenvolvimento opressor, como dizia Paulo Freire, que é feito propositadamente para que as pessoas não tenham acesso à cidadania. Essa lógica precisa ser alterada por uma presença da sociedade civil interessada na motivação das lutas nas comunidades, para que possamos ter em toda parte, de maneira capilarizada, o desenvolvimento territorial”, afirma.

Ion de Andrade (Foto: Divulgação)

Ion de Andrade é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, e em Língua e Literatura Francesa pela Université de Nancy II, mestre em Pediatria e Ciências Aplicadas à Pediatria pela Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, e doutor em Ciências da Saúde pela UFRN. É pesquisador e professor do Curso de Medicina da Universidade Potiguar e médico/pesquisador ligado à Escola Técnica do SUS RN/CEFOPE da Secretaria de Estado da Saúde Pública.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line — O que é um Plano Diretor de uma cidade e a que se propõe?

Ion de Andrade — O Plano Diretor é uma lei municipal, mas tem uma peculiaridade, porque o processo legislativo ocorre, obrigatoriamente, por um processo participativo, ou seja, a população participa das discussões para a tomada de decisões referentes ao modo como a cidade se organiza. Essa organização da cidade toca aspectos muito importantes porque regula, por exemplo, a altura dos prédios em áreas que podem, eventualmente, não ter consenso. Em Natal (RN), por exemplo, a prefeitura quer verticalizar áreas que já são habitadas e isso implica na remoção das populações tradicionais, implica em discussões de toda a sorte de políticas urbanas referentes à acessibilidade, a propostas de definição de uso e ocupação do solo de áreas que podem estar em processo de declínio.

Em Natal, a Ribeira [bairro histórico de Natal] e o centro da cidade estão sendo progressivamente esvaziados, porque eram centros comerciais, mas essas regiões declinaram em função dos grandes shopping centers e agora estão em ruínas. São regiões bonitas do ponto de vista arquitetônico e poderiam ser melhor aproveitadas para o lazer e o turismo. De forma que o Plano Diretor discute uma variedade muito grande de temas que interessam à cidade e isso pode incluir conflitos aos quais precisamos estar atentos, porque há uma cobiça muito grande do mercado imobiliário em relação às áreas da cidade que podem estar sendo utilizadas por populações que já se instalaram ali há muito tempo, como é o caso de Natal.

Rua no bairro da Ribeira (Foto: Divulgação)

IHU On-Line — Como está o processo de discussões do Plano Diretor de Natal?

Ion de Andrade — O processo de discussão do Plano Diretor de Natal está conturbado. A primeira grande razão é o fato de que a prefeitura, que tem o papel de conduzir o processo — e, portanto, seria recomendável sua isenção em relação a isso —, já assumiu o lado dos empresários do mercado imobiliário em favor da verticalização da orla. Esse é o grande divisor de águas dessa discussão, porque implica em vários problemas, como, por exemplo, o bem-estar das comunidades que já vivem nessa região há mais de cem anos, que são cerca de 70 mil pessoas. Portanto, pretende-se remover as comunidades — pois não se pode construir os prédios sem remover essas comunidades — pela velha lei do mercado da compra desses imóveis. Mas a relação entre as empresas imobiliárias e as pessoas individuais que vão vender as suas casas não é uma relação horizontal. O Brasil está longe de ser um país onde essas coisas acontecem de forma transparente: muitas vezes a pressão para que as pessoas vendam suas casas ultrapassa a legalidade; há muitos exemplos nesse sentido.

A segunda razão é o fato de que as normas que regem o processo tiveram que ser revistas ao longo desse período, de forma que tivemos um processo que foi paralisado numa certa altura para ser recomeçado, porque a sociedade civil se rebelou contra a maneira autoritária com que a prefeitura pretendia levar isso adiante. Esse processo, inclusive, está em discussão e em breve haverá uma audiência com o Ministério Público na qual as autoridades municipais terão que justificar uma série de coisas. Além do viés assumido pelo próprio poder público de favorecer o mercado imobiliário em detrimento das comunidades e da cidade, há esse fator de que a condução não tem sido isenta, tanto que foi questionada desde o início e em breve teremos outra oportunidade de discutir esses pontos.

Outro aspecto que merece relevo é o de que a discussão sobre a verticalização da orla não interessa apenas às comunidades que vivem ali, mas interessa também à cidade como um todo, porque na medida em que os prédios altos são construídos na orla, eles destroem a paisagem para os moradores de outras regiões. Isto é, aquela praia que era vista de toda parte, a partir de então não poderá mais ser vista porque depois das 14 horas não haverá mais sol nas praias, de forma que isso prejudicará a paisagem, que é um bem que pertence à cidade como um todo, e também o turismo. Nas poucas regiões, como é o caso de Areia Preta, onde houve verticalização, as praias estão literalmente abandonadas, sobretudo por causa do baixo “ensolaramento” que dificulta a presença das pessoas que vêm para a cidade do sol.

IHU On-Line — Que propostas estão sendo postas na mesa?

Ion de Andrade — No que toca às propostas, vale lembrar que o Plano Diretor define uma espécie de pano de fundo, de arena. É uma legislação de contornos, de escopo, porque, depois de aprovado, todo o restante precisa ser feito do ponto de vista do desenvolvimento real e da aplicação da legislação. Portanto, o Plano Diretor, nessa discussão — da qual participam pessoas com diferenciados graus de entendimento até do que o próprio Plano regula —, tem considerado muitas propostas que tocam aspectos que não podem ser resolvidos especificamente no Plano Diretor e devem ser remetidos, na sequência, para iniciativas de gestão na prefeitura. Por exemplo, tudo aquilo que diz respeito ao estímulo do turismo, a iniciativas específicas em relação a determinadas áreas da cidade que poderiam ser melhor aproveitadas pelo turismo, iniciativas específicas em relação a uma melhor distribuição do acesso aos equipamentos coletivos; tudo isso, apesar de não dizer respeito especificamente ao Plano Diretor, tem vindo como material de discussão. Além disso, o Plano Diretor tem também se debruçado em relação às questões que são específicas e que se referem a esse grande ordenamento urbano.

Para além de uma série de coisas que possivelmente venham a galgar consenso, eu diria que hoje o alvo de maior interesse nas discussões é a questão que diz respeito ao destino que vai ser dado a esse patrimônio maior dos natalenses — diria até que é um patrimônio nacional —, que é a beleza das nossas praias, o destino final dessas comunidades que já estão implantadas há mais de um século na região praieira, e o turismo. Portanto, são pilares fundamentais do próprio funcionamento da cidade, pois a cidade não pode cometer um haraquiri e destruir seu turismo por causa do olho gordo do mercado imobiliário; esse é o grande problema. Para além desse, todo o restante é referente àquelas questões obrigatórias que devem constar no Plano Diretor e que tocam os grandes eixos da normatização do urbanismo na cidade; isso também está sendo discutido, mas acredito que não produzirá maiores dificuldades de entendimento.

IHU On-Line — Que consequências haveria para a cidade caso a verticalização da Orla seja aprovada?

Ion de Andrade — Caso a verticalização da orla passe, o que espero que não ocorra, e acho que não vai ocorrer porque cada vez que a comunidade e a população veem as imagens que foram projetadas pelo departamento de arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, elas ficam horrorizadas. Mas se, por acaso, a Câmara Municipal de Natal vier a fazer essa escolha, seria uma tragédia para a cidade, teríamos um problema de deslocamento das pessoas para regiões distantes do seu local de moradia. Imagine que ao longo de cem anos essas famílias construíram suas redes de relacionamento, seus locais de empregabilidade, pequenos e médios comércios, e todas elas estariam com suas vidas ameaçadas. Isso significa ir morar — porque hoje é o que acontece em Natal — a 10 ou 15 quilômetros da cidade, que é onde há espaços disponíveis para as iniciativas de segunda e terceira linhas de habitação das populações de baixa renda. Essa é a primeira tragédia humana e quero colocar isso como um grave problema, porque destrói a vida dessas comunidades. Portanto, se passar, em primeiro lugar, teremos esse problema que afeta um direito consolidado de comunidades que já estão ali há cem anos. Não adianta o cinismo com que muitas vezes as pessoas do mercado abordam essa questão, quando dizem que as pessoas não seriam obrigadas a vender suas casas. Na verdade, elas seriam pressionadas de todas as formas a venderem suas casas, como todos nós sabemos.

O segundo problema, que também é grave, é que a cidade perderia seu perfil. Hoje, de qualquer parte da cidade vemos a orla de Natal por conta das conquistas do Plano Diretor anterior, que limita uma série de coisas. E esta é uma das razões pelas quais Natal é visitada: tem uma orla muito bonita. Portanto, o que estaria ocorrendo seria uma privatização dessa paisagem, que passaria a ser patrimônio de alguns bem-nascidos com capacidade financeira para morar na orla — o próprio prefeito de Natal disse que, depois de feita a verticalização, se ele puder, também vai morar na orla. Portanto, é uma espécie de iniciativa que se volta para o usufruto de pessoas que já estão usurpando aquilo que é de patrimônio coletivo, que é a paisagem.

O terceiro ponto é que Natal tem o turismo como sua principal atividade econômica. Portanto, é óbvio que a verticalização da praia e a conversão da paisagem em algo semelhante a esta paisagem repetitiva de arranha-céus à beira-mar que temos no Brasil, sombreando inclusive a praia, será arrasador. Então, para o turismo, a verticalização está longe de ser um estímulo, porque as pessoas não vêm para ver arranha-céus, elas vêm para ver a paisagem e usufruir de algo que possa ser autêntico da cidade. O que tem de ser feito é o contrário: é preciso dinamizar e dar sinergia entre o que a comunidade pode fazer e um turismo que possa fazer das praias um lugar aprazível não somente para os turistas, mas também para os natalenses. Então, se o projeto viesse a passar — e volto a dizer que espero que a Câmara de Natal não cometa esse crime contra as comunidades e a cidade — seria uma tragédia maior para a cidade.

Simulação do sombreamento da orla de Ponta Negra com a verticalização. (Fonte: Fórum Direito à Cidade)

IHU On-Line — O que está sendo feito para que isso não ocorra?

Ion de Andrade — Está havendo uma mobilização por parte da sociedade civil, de arquitetos e urbanistas e de pessoas interessadas. As associações de moradores dos bairros da orla têm um consenso completo de como é nefasta essa proposta e as pessoas têm se movido no sentido de informar as comunidades sobre o que a prefeitura e alguns vereadores pretendem fazer.

Tivemos um ato público importante: um abraço à orla, de modo que a sociedade tem se mobilizado de maneira muito firme e alguns vereadores têm chamado audiências públicas. Há pouco tempo tivemos uma audiência pública que se realizou em torno da temática dos direitos humanos e do Plano Diretor. A questão do direito à moradia não pode ser tratada de forma leviana; é um direito das pessoas. A sociedade tem se mobilizado de forma crescente, pois pouco a pouco as pessoas vão se dando conta da gravidade do que está à mesa. Quero crer que isso já tem resultados: os empresários também fizeram um ato público pequeno, longe de ser suficiente para mostrar para os próprios vereadores que, se eles embarcarem nessa canoa, não vão ter votos. Neste ato público, eles não tiveram coragem de falar em verticalização porque sabem que essa é uma proposta que “queima o filme” deles. Então, eles próprios, diante da rejeição que essa proposta galgou entre aqueles que tiveram conhecimento, estão intimidados com o fato de abordar a questão da verticalização à luz do dia. Isso não deixa de ser um alento. É claro que o poder econômico pode fazer muito no sentido de dar a eles condições vantajosas nesse processo, mas eles perderam o discurso. Isso se deu em função da grande mobilização e da explicação — porque não se trata apenas de uma questão de ter lado — dos malefícios que essa proposta vai trazer para a nossa sociedade.

IHU On-Line — A cidade já se deu conta da gravidade do que está sendo proposto?

Ion de Andrade — A cidade vai se dando conta e despertando para esse pesadelo que está sendo colocado e vendo a gravidade disso. Esse é um processo que está em construção: há muita gente que ainda não tem conhecimento das propostas que estão colocadas no Plano Diretor, portanto, um dos desafios da sociedade civil é o de chegar às comunidades como um todo, de modo que tem havido um esforço de dar a conhecer à cidade o que está sendo proposto. Basta dar a conhecer porque, depois que as pessoas conhecem, não podem ser favoráveis a esse projeto.

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Ion de Andrade — Queria acrescentar finalmente o seguinte: o Plano Diretor é uma legislação de contornos e, como eu disse anteriormente, depois de aprovada, tudo resta por ser feito. Isso é algo muito importante de entender, porque as periferias no Brasil vêm sofrendo de um abandono crônico do poder público, portanto a luta não se resolve no Plano Diretor. Por exemplo, o Plano Diretor vigente de Natal, no qual houve muitas conquistas, que está sendo revisado agora, não resolveu o problema das periferias, porque essa questão vai para iniciativas complementares posteriores que mobilizam muito menos a sociedade civil. Portanto, é preciso que estejamos atentos para que, nesta rodada, a discussão do Plano Diretor seja vista como o início de uma cidade, que deve descer à capilaridade das periferias, pois é onde se encontram os problemas que precisam ser resolvidos com maior urgência, como a vida das pessoas.

As nossas periferias vêm vivendo numa situação de subdesenvolvimento para a exclusão social, subdesenvolvimento opressor, como dizia Paulo Freire, que é feito propositadamente para que as pessoas não tenham acesso à cidadania. Essa lógica precisa ser alterada por uma presença da sociedade civil interessada na motivação das lutas nas comunidades, para que possamos ter em toda parte, de maneira capilarizada, o desenvolvimento territorial, o planejamento do desenvolvimento territorial com os equipamentos que as comunidades não têm, de modo que seja possível que essas pessoas possam galgar níveis de cidadania que são importantes para elas, mas também para o Brasil, porque nenhuma democracia se sustenta sem cidadania. Portanto, o que está colocado na discussão do Plano Diretor — e precisamos ter bastante clareza nisso — é uma porta de entrada para um desenho de cidade que só vai ser construído se estivermos atentos e militantes em relação ao que é realmente prioritário, que é trazer as comunidades que são maioria, das periferias, as quais têm sido abandonadas ao deus-dará, para a cidadania, para o usufruto de tudo aquilo que a civilidade tem construído e que é também patrimônio delas; elas não podem ser roubadas daquilo que é patrimônio de todos.

 

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