11 Janeiro 2017
Jornadas excessivas de trabalho sem remuneração adicional, acúmulo de funções, remuneração baixa mesmo em se tratando de um dos setores da economia que mais cresce no mundo, episódios frequentes de assédios moral e sexual e baixo grau de proteção institucional aos empregados. Essa é a realidade a qual as trabalhadoras e trabalhadores do setor hoteleiro têm de conviver diariamente, em especial as camareiras – a subcategoria mais numerosa e considerada a mais desprotegida e explorada do segmento.
A reportagem é de Alexandre Bezerra e Antonio Biondi, publicada por Repórter Brasil, 10-01-2017.
A receita dos hotéis brasileiros registra dez anos seguidos de crescimento, segundo dados consolidados de 2014 da pesquisa “Hotelaria em números”, realizada há 22 anos pela consultoria JLL. Com a desvalorização do real em relação ao dólar a partir de 2013, o Brasil atraiu mais estrangeiros e, mesmo em cenário de crise política e econômica, todo o setor hoteleiro se expandiu. Os resorts foram os estabelecimentos que mais se beneficiaram. Em comparação a 2013, o faturamento total desse tipo de hospedagem, que reúne recreação e divertimento, cresceu 33,4% e o resultado operacional bruto registrou aumento de 2,8% em 2014. Após a Copa do Mundo de 2014, o cenário dos dados relativos a 2015, a ser divulgado, tende a ser ainda melhor, por conta da expectativa e criada em torno das Olimpíadas no Rio de Janeiro.
A Organização Mundial do Turismo, ligada às Nações Unidas, informou que 1,184 bilhão de pessoas cruzaram alguma fronteira em viagens de lazer em 2015. As estimativas da organização para 2030 é que haverá 1,8 bilhão de chegadas turísticas internacionais.
“As perspectivas de crescimento para o turismo são favoráveis, considerando os números da China, um gigante cujos habitantes há pouco tempo estão saindo de suas fronteiras. Mas é nítido que, apesar de o turismo crescer, isso não se reflete em melhorias das condições de trabalho e salários dos trabalhadores do setor em todo o mundo”, afirma Gerardo Iglesias, secretário regional latino-americano da Uita (União Internacional de Trabalhadores de Alimentação, Agricultura e Turismo), entidade global que congrega 412 organizações afiliadas em 126 países. “Os baixos salários, com uma elevada percentagem de práticas fraudulentas que mascaram longas horas com contratos de tempo limitado, parecem se intensificar no meio hoteleiro”, observa.
Camareira de uma grande rede localizada nas imediações do Shopping Ibirapuera, na cidade de São Paulo, a trabalhadora Luzinete [nome fictício] discorre à Repórter Brasil sobre a invisibilidade e a vulnerabilidade das trabalhadoras desse setor.
Luzinete alerta, também, para o excesso de trabalho e esforço, e para os consequentes problemas de saúde das trabalhadoras e trabalhadores – algo ignorado pelas redes. “O que importa é o relatório com as metas de limpeza e arrumação. Nós não existimos”.
O principal problema apontado por especialistas do setor é o excesso de horas trabalhadas, uma preocupação da categoria como um todo. Jornadas excessivas de mais de 60 horas semanais foram citadas pelos trabalhadores em pesquisa realizada em 2015 pela Contracs (Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços), entidade ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), em parceira com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudo Socioeconômicos).
“Muitas vezes, as horas extraordinárias não são pagas e tampouco há banco de horas. É quase um consenso entre os trabalhadores considerarem a incorporação das horas extras como jornada usual de trabalho, já que, de um modo geral, as empresas não obedecem escala de folgas”, afirma Eliezer Pedrosa Gomes, secretário de relações internacionais da Contracs e secretário de finanças do Sindicato dos Empregados no Comércio de João Pessoa (PB). “As cláusulas de convenções mais descumpridas pelas empresas são: o pagamento de horas extras, folga dominical, trabalho noturno e o pagamento da taxa de serviço”, acrescenta.
Dentre todas as categorias, o elo mais desprotegido da cadeia hoteleira é a classe das camareiras. No Brasil, os dados mais recentes fornecidos pela Contracs indicam que 66% sofrem de ansiedade por causa do trabalho; 61% têm falta de energia no desenvolvimento das atividades do dia-a-dia; e 51% se queixam de má qualidade do sono.
Essas trabalhadoras têm obrigações como ter de limpar até 30 quartos em uma jornada média de oito horas, o que traz sérios riscos à saúde. Os registros de lesões graves e crônicas, em articulações, na lombar, nas mãos, o desenvolvimento de algum tipo de transtorno musculoesquelético (TME) ou de alguma lesão por esforços repetitivos (LER) e a contaminação por produtos químicos, entre outras moléstias, são numerosos.
Os riscos aos quais essas profissionais são expostas chegam, muitas vezes, a patamares dramáticos. Rafaela [nome fictício] passou por um grave episódio em um hotel no qual trabalhava na capital paulista. “O hóspede jogou a agulha usada no lixo do banheiro. Não tem caixinha para recolher seringa descartável ou coisas semelhantes, não tem nada assim no hotel. Coloquei o saco de lixo do banheiro dentro do saco preto do lixo geral. Quando fui empurrar o carrinho, senti algo furando a minha perna”. Era a agulha que havia sido usada pelo hóspede. Exposta a graves riscos, Rafaela fez tratamento com o coquetel anti-HIV (antirretroviral) e conseguiu superar o episódio – mas praticamente nada mudou no hotel depois do ocorrido.
“Podemos avaliar que cerca de 95% das camareiras têm problemas de saúde decorrente de seu trabalho. E isso é um problema que não é exclusivo aqui do Brasil, vemos também no sindicato americano e em várias partes do mundo”, avalia Jana Silverman, diretora de programas do Centro de Solidariedade (Solidarity Center) da AFL/CIO, entidade de cooperação sindical ligada à maior central sindical dos Estados Unidos.
A Uita e outras entidades lançaram em 2015 a Campanha Mundial pela Dignificação das Camareiras, que versa sobre as condições de trabalho no setor. No Brasil, a Contracs e outras entidades estão colaborando com a campanha e com a pesquisa, que é realizada em diversos outros países. As situações enfrentadas pelas camareiras também estão registradas no livro “As que limpam os hotéis – histórias ocultas da precariedade no trabalho”, de Ernest Cañada.
Com perfil majoritário de mulheres negras com baixa escolaridade, as camareiras sofrem por não terem amparo dos sindicatos do setor hoteleiro. Há poucas delas em cargos de comando sindical e quase nenhuma arrumadeira como representante. “É uma categoria com taxas altíssimas de problemas crônicos de saúde, que sofrem assédio moral e sexual, tentativas de estupro, mas elas denunciam pouco, pelo medo de serem demitidas e não conseguirem outro emprego, já que possuem baixa escolaridade”, afirma Jana Silverman.
Recentemente, durante as Olimpíadas do Rio de Janeiro, ao menos quatro casos de assédio sexual e estupro foram denunciados por camareiras na Vila Olímpica. Característica comum em todas as denúncias, os agressores atacaram nos momentos em que as trabalhadoras faziam a arrumação do quarto. O enfrentamento a esse tipo de situação foi confirmado à Repórter Brasil por todos profissionais ouvidos para a produção desta série especial de reportagens – das camareiras aos porteiros, passando pelos seguranças e trabalhadores da área da manutenção.
No caso das camareiras, a Contracs organiza oficinas específicas periodicamente para as profissionais do setor, com o objetivo de debater a difícil realidade de trabalho enfrentada pela categoria e prestar apoio em relação aos direitos das trabalhadoras. Além disso, a entidade cumpre com uma agenda de encontros do setor hoteleiro, bem como eventos específicos de redes de hotéis de empresas multinacionais, a fim de propor melhorias.
Em conjunto com outras centrais sindicais, de trabalhadores e empresariais, e junto ao governo federal, a Contracs também compõe a mesa tripartite do setor de turismo e hospitalidade, estabelecida principalmente para ter foro voltado ao trabalho decente no setor hoteleiro. “Esse espaço está ameaçado, no entanto, devido à atual conjuntura do golpe do impeachment e consequente supressão dos direitos dos trabalhadores”, alerta Eliezer Gomes.
A crise política e econômica também traz reflexos nas formas de relacionamento entre os trabalhadores e trabalhadoras – ampliando, por exemplo, desde conflitos triviais e de falta de solidariedade a situações de discriminação e de maior precarização nas condições de trabalho.
Benjamin [nome fictício], que se mudou do Haiti para o Brasil a fim de buscar oportunidades frente à grave situação vivenciada por seu país, afirma à Repórter Brasil já ter percebido a profundidade de tais mudanças. Um funcionário que trabalha no setor de manutenção do mesmo hotel que ele, por exemplo, vem destilando um “comportamento xenofóbico, contra estrangeiros no geral e contra os haitianos em específico”, lamenta.
Historicamente, os sindicatos brasileiros do setor hoteleiro são pouco articulados e com poucos resultados de conquistas por direitos e benefícios. “Não é comum ver greves no setor, que tem baixíssima filiação sindical. Por serem muitas entidades sindicais descentralizadas, não temos um número exato, mas acreditamos que no Brasil não passe de 10% de adesão”, acredita Jana Silverman.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, uma das 10 maiores do mundo, os cerca de 300 mil trabalhadores do setor hoteleiro são representados pelo Sinthoresp (Sindicato dos Trabalhadores no Comércio e Serviços em Geral de Hospedagem, Gastronomia, Alimentação Preparada e Bebida a Varejo de São Paulo e Região).
A entidade arrecada por volta de 50 milhões de reais por ano e é liderada por um mesmo grupo há cerca de 50 anos. É, no entanto, questionada por parte dos trabalhadores do setor, recebendo críticas por não agir em defesa da categoria, principalmente em relação ao salário, atualmente com cinco tipos de piso, entre R$ 970,00 e R$ 1.132,00. Rubens Fernandes, diretor-executivo do Sinthoresp, possui outra leitura sobre a atuação da entidade. “Estamos muito atentos. Temos feito um trabalho muito forte”, afirma, destacando que “a atuação jurídica do sindicato é muito forte”.
As eleições para o Sinthoresp realizadas em 2013 acabaram indo parar na Justiça, em decorrência de medidas adotadas pelas duas chapas envolvidas no pleito de então. Uma nova eleição foi realizada em outubro de 2016 e, ao contrário do pleito anterior, contou com uma única chapa. As duas chapas de 2013, formadas por grupos que historicamente se afirmaram como situação e oposição dentro da política da entidade, acabaram optando por uma composição, que foi referendada pela categoria na eleição deste ano.
A Associação Brasileira de Gastronomia, Hospedagem e Turismo (Abresi) foi contatada para comentar as questões levantadas por esta reportagem no dia 22 de dezembro de 2015, mas não concedeu entrevista.
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Camareiras exploradas: O que hotéis não contarão aos hóspedes neste verão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU