19 Julho 2024
Ela mergulhou durante seis meses em três hotéis de luxo de Barcelona, fazendo-se passar por funcionária para participar de eventos de empresas, ceias de Natal e reuniões com as equipes de gestão. Dessa maneira pôde analisar as relações de classe e a coerção moral que prevalece nestes ambientes.
A entrevista é de Álex Romaguera, publicada por Naiz, 15-07-2024. A tradução é do Cepat.
Num exercício entre ensaístico, etnográfico e romancista, a jornalista Anna Pacheco (Barcelona, 1991) resumiu a sua experiência em Estuve aquí y me acordé de nosotros: una historia sobre turismo, trabajo y clase (Estive aqui e me lembrei de nós: Uma história sobre turismo, trabalho e classe), publicado pela editora Anagrama (2024). Um livro que nos desafia a nos perguntar por que viajamos e até que ponto participamos de uma indústria cuja proliferação está ajudando a exacerbar o capitalismo mais selvagem e predatório.
Sua pesquisa nos aproxima daquilo que acontece em diversos hotéis de luxo em Barcelona. O que a levou a pesquisar esse assunto?
Desde pequena tive uma intuição espontânea de me interessar pelos problemas sociais, o que é motivado pela abstração daquilo a que pertence a minha família, originária do bairro operário de Trinitat Vella e minha infância no bairro de Sant Andreu del Palomar. Saber o que acontece nestes hotéis concentrava parte das minhas obsessões, como os conceitos de classe e trabalho, sobre os quais já tinha lido algumas obras de ficção e ensaios.
Você teve uma aproximação anterior a este fenômeno?
Ajudou-me o contato que tive com as camareiras, também conhecidas como Las Kellys ou ‘as que fazem a limpeza’. Eu estava em Bruxelas quando falaram da exploração laboral que sofrem nestes estabelecimentos. De qualquer forma, a minha intenção não era retratar este grupo de trabalhadoras, majoritariamente mulheres, imigrantes e bem organizadas; queria focar no hotel como uma infraestrutura global, onde existem diferentes relações de classe, não só com os turistas que se hospedam, mas também entre os próprios trabalhadores.
A intenção era narrar o que acontece ali?
Isso mesmo. Desde a exploração no trabalho, passando pelo impacto ambiental que gera e o tipo de cliente que fica para usufruir. Um turismo que, de alguma forma, é a expressão do capitalismo no seu estado mais efervescente e desenfreado.
Entre os trabalhadores, que atitude você viu predominar?
Havia uma certa função trágica do “é assim mesmo”, aquele realismo capitalista de que sempre haverá ricos e que os pobres trabalharão para eles, como me disse uma trabalhadora. Mesmo assim, há alguns que se recusam a exercer a servidão que se espera deles. Lembro-me de uma reunião em que o conselho de administração se perguntava o que causava a falta de camareiras, ignorando que, em contextos de absoluta precariedade, muitas optam por ser exploradas por outro setor que não o turismo.
Nessa mistura de resistência e resignação, os funcionários tentam ajudar-se uns aos outros?
Há de tudo. Tanto trabalhadores de origem migrante que aborrecem os novos e não estabelecem nenhuma solidariedade de classe, como aqueles que fizeram deste tipo de trabalho a sua única aspiração. Sem falar dos cargos intermediários que, em troca de 200 euros, esquecem de onde vêm e tendem a não revelar esse tipo de informação. O renomado historiador Richard Sennett diz isso em A corrosão do caráter: “Tomara que todos os trabalhadores se reconhecessem uns aos outros com empatia, mas a vida real não age com tanta generosidade”. Estas posições contraditórias ou “ódios de formiga”, como assinala o sociólogo Emanuel Rodríguez López, impossibilitam que haja espaço para um sujeito político coletivo.
Os próprios hotéis já se preocupam em impedir isso?
Eles evitam isso através da rotação dos turnos ou atomizando os trabalhadores em pequenas equipes. E depois, com a retórica corporativa que lhes é transmitida, como a de que devem ser responsáveis para proporcionar luxo aos hóspedes. E isto é perverso porque, embora muitas das instalações estejam em mau estado, são obrigados a projetar uma imagem seleta, que consiste em sorrir, mostrar um entusiasmo permanente e recolher informações do turista para satisfazer as suas manias ou neuras pessoais.
Se veem presos em uma espiral de vulnerabilidade?
Sofrem pressões contínuas, a ponto de alguns gestores os obrigarem a deixar comentários positivos sobre o hotel onde trabalham, com a chantagem de que, se não o fizerem, não atingirão os objetivos da empresa, além de proibi-los de falar das festas e delírios dos clientes ou chamar a Polícia se alguém ultrapassar o limite. O que mostra que, enquanto alguns comportamentos são públicos e estigmatizáveis, outros permanecem silenciados e acabam sendo aceitáveis e assumidos. Tudo isto deveria interpelar-nos enquanto cidadãos e fazer-nos ver que estas dinâmicas também podem ocorrer nas nossas respectivas experiências de trabalho.
Depois de se infiltrar nesse submundo e analisar as condições das pessoas que o apoiam, a que conclusões chegou?
A principal delas é que, como indústria, o turismo é explorador e uma ferramenta do sistema para converter o território numa mercadoria. Nos países da América do Sul e Central, o seu carácter canibal é mais que evidente.
Na medida em que somos todos viajantes, que responsabilidade temos?
Todos somos participantes dessa máquina – o antropólogo José Mansilla resume-o na ideia de que “o turista também paga a festa”. A chave, portanto, está em compreender que o problema é a própria indústria. E certamente alguns movimentos sociais já mudaram o discurso nesse sentido. Nas Canárias, por exemplo, passaram do lema Turismofobia para Caciquefobia, fazendo alusão às poucas mãos que enriquecem à custa da exploração de quem trabalha no setor. E, assim como aconteceu com a bolha imobiliária, o turismo aproveitou a desregulamentação para transformar bairros em atrações turísticas e grandes cidades em parques temáticos para conferências, despedidas de solteiro, festivais de música e outros eventos.
Quando aquela ideia romântica da viagem da nossa vida se dissipou?
Principalmente nos últimos vinte anos, quando as ofertas se multiplicaram e se espalharam em muitas das metrópoles. Embora se fale em dessazonalizar ou descentralizar o turismo para reduzir o número de visitantes, hoje a alta temporada dura o ano todo e, no cálculo global, concentra muito mais gente. Pois bem, se isso acontece é porque a cidade já não é anunciada como um mero destino de sol e praia; é oferecida como uma decoração onde você é convidado a desfrutar de atrações de todo tipo. Fato para o qual contribuiu a luta entre o cosmopolitismo de Barcelona, que surgiu como movimento de vanguarda na década de 1990, e a “capitalidade” exercida por Madri.
E nessa rivalidade, o que destacaria?
Diria que Barcelona quer tudo e o mais rápido possível. Basta ver o que o portal Check Barcelona divulga entre os turistas: festas, negócios, bons hotéis, restaurantes, até moldar a cidade às suas necessidades. No fundo, trata-se de adaptar a cidade aos visitantes, sejam eles trabalhadores remotos, casais que descem de um navio de cruzeiro atracado no porto por algumas horas, ou mesmo jovens ansiosos para viver uma determinada experiência de lazer. E Barcelona e Madri competem nisso, a tal ponto que Madri pretende converter Usera num bairro chinês, replicar os fracassos de Valência e ter uma praia urbana.
Em Usera, os moradores recorreram ao slogan “Bairro chinês não, comunidade sim”. É o paradigma que devemos reivindicar?
Sem dúvida, porque o antídoto para a mercantilização das cidades é, justamente, gerar comunidade. Rita Segato, antropóloga argentina, refere-se a isso quando afirma que “o desejo pelas coisas produz indivíduos, ao passo que o desejo por um vínculo produz comunidade”, destacando que, diante do objeto de consumo que nossas cidades se tornaram, devemos valorizar laços sociais para, desta forma, criar comunidade.
O turismo incentiva o contrário?
Favorece uma relação elitista e individual, tanto para os visitantes como para os próprios moradores, que com o tempo percebem que os novos negócios não respondem às suas necessidades nem ao conceito de cidade que conheciam. Alguns moradores dizem inclusive que o grupo de WhatsApp criado no seu bairro está em inglês, dada a quantidade de expatriados que ali se instalaram.
A crescente mobilidade laboral imposta pelo neoliberalismo conduz a este turismo à la carte que impede espaços de coesão social?
Naturalmente, daí o fato de a oferta turística facilitar aos visitantes ter o que procuram em qualquer momento e pelo tempo que tem disponível, fazendo com que a sua relação com o meio ambiente seja fugaz, fortuita e em alguns pontos exótica. É preciso lembrar que o Airbnb passou a pedir aos viajantes para que vivessem como se fossem autóctones, o que na época parecia uma boa ideia para quebrar a lógica de servidão do turista clássico. Mas depois vimos os efeitos desta propaganda: uma multidão de pessoas concentradas numa cidade sentindo-se como habitantes locais durante um curto espaço de tempo. Em última instância, todo o turismo é intrinsecamente destrutivo.
Defender o turismo de qualidade é um eufemismo?
No livro tento desmascarar este tipo de turismo. Porque com frequência criminaliza-se a partir de um viés classista e higienista aquele turismo de “bebedeira” ou dos cruzeiros, típico da classe trabalhadora, que é acusado de deixar uma pegada ecológica e social maior, quando na realidade o turismo supostamente de qualidade ou sofisticado é tão ou mais prejudicial. Vários estudos se debruçam sobre esta questão, segundo os quais este turismo consome maior quantidade de água por haver piscinas em hotéis; da mesma forma que alguns dos inquilinos, ao utilizarem um jet privado, geram um nível de poluição igual ou superior. Assim, embora possa parecer que o turismo de massas provoca maiores desperdícios, na prática o turismo de qualidade não está isento dos mesmos defeitos. É importante deixar isso claro.
A indústria do turismo também conseguiu convencer a sociedade de que viajar é uma conquista democrática da qual devemos desfrutar. É mais uma das muitas perversões?
Existe um consenso implícito que nos faz acreditar que viajar é intrinsecamente bom. Tanto é assim que algumas das pessoas que entrevistei têm a vontade real de viajar, como se viajar pelo mundo tivesse um impacto positivo na sua melhoria de vida. E vice-versa: não viajar tem sido estigmatizado, associando-o a uma falta. Isto tem a ver com a propaganda a que a classe média foi submetida durante o franquismo [regime de Franco], para a qual foi transferido o imaginário de que, junto com a casa, a família e trabalho, as férias pagas são o mecanismo de recompensa pelo esforço que fizemos durante o ano.
Com o surgimento das novas tecnologias, que possibilitam a exibição da nossa vida, essa recompensa quase se tornou um dever, não acha?
Exatamente. Ao tirar fotos e postá-las, contribuímos para a divulgação do local e agimos como trabalhadores da indústria do turismo ou, como o chamo, “coautores não remunerados do folheto turístico”. E a consequência é que os moradores de Mallorca têm a real percepção de que as praias que frequentavam estão agora intransitáveis devido aos TikToks que as tornaram virais.
Aos turistas que viajam com uma atitude responsável e partilham os malefícios causados pelo setor, o que tem a lhes dizer?
Minha intenção não é apontar práticas específicas ou valorizar alguns turistas em detrimento de outros. Dito isto, fazer um turismo mais demorado, que seria um horizonte desejável, tem a sua armadilha, porque está condicionado pela questão da classe, já que a vida dos pobres não permite um turismo slow. Muito menos aquele que faculta ao viajante preparar todos os detalhes e garantir que sua estadia será confortável e segura.
Então, para evitar sermos cúmplices da indústria do turismo, o que podemos fazer?
Trata-se de configurar um novo sentido comum, perguntando-nos se os pacotes de férias que aparentemente nos proporcionarão experiências e descanso únicos valem a pena e nos permitem descansar. Ou o que dá no mesmo: se fazer fila para visitar um museu ou um determinado equipamento cultural cumpre o que procurávamos ou se, pelo contrário, faz parte de uma lista de tarefas aos quais o mercado nos induziu.
Portanto, está em nossas mãos o poder de frear esta dinâmica?
Claro. Podemos ajudar a desconstruir o modelo produtivo que nos leva a esse circuito perverso em que viajar é visto como gratificação e forma de nos padronizarmos na classe média. E depois, como sugerem alguns especialistas, as cidades deveriam ser despromovidas porque, se você parar de fazer anúncios de um lugar, as pessoas deixarão de considerá-lo interessante para visitar. Despromover as cidades e avançar para a lógica do decrescimento seria o caminho para reverter o absurdo que vivemos hoje.
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"Todo turismo é inerentemente destrutivo". Entrevista com Anna Pacheco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU