13 Setembro 2024
"O que, de fato, aconteceu em La Verna no evento transbordante de mistério - e, com isso, de luz e vida nova que chovem do alto - da estigmatização de Francisco? O que aconteceu foi que, por pura e singular graça, não só Cristo, verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro filho do homem, por amor se imprimiu - objetivamente - no corpo e na alma do Poverello; mas, da mesma forma, aconteceu que Francisco se identificou com Cristo - subjetivamente - em plena resposta de amor. 'Tu és eu e eu sou Tu': isso aconteceu na impressão dos estigmas", escreve Piero Coda, secretário da Comissão Teológica Internacional, em artigo publicado por Settimana News, 11-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O ano de 2024 é o oitavo centenário dos estigmas de São Francisco. As antigas biografias contam que Francisco de Assis, no verão de 1224, em um momento de crise humana e espiritual, retirou-se para o Monte della Verna, na região de Casentino, onde recebeu - “na rocha bruta entre Tevero e Arno” - a impressão dos estigmas. Para marcar esse aniversário, a Edizioni Biblioteca francescana publicou o ensaio teológico do padre Dario Chiapetti, San Francesco stigmatizzato (Milão 2024, 528 pp., 42,00 euros). Reproduzimos o posfácio assinado por Mons. Piero Coda, Secretário geral da Comissão Teológica Internacional.
Não são, certamente, as poucas linhas deste posfácio que podem explicar a atualidade atestada e a promessa contida nas páginas que irmão Dario Chiapetti nos oferece por ocasião do oitavo centenário da estigmatização de São Francisco em La Verna. Porque são páginas ricas e pontuais na documentação e absolutamente provocativas na interpretação teológica que propõem.
Trata-se, portanto, de retomar em nossas mãos, numa segunda e mais profícua análise, os testemunhos históricos e as perspectivas hermenêuticas que se entrelaçam estreitamente em um ensaio que, sem dúvida, promete ser significativo e, em muitos aspectos, surpreendente: para uma decifração pertinente e sempre mais generosamente receptiva e criativa daquela palavra na Palavra, feita carne no Espírito, que Francisco foi e é hoje em Jesus para nós e para todos.
Limito-me a três simples considerações. A primeira. O que extraio até mesmo de uma primeira leitura destas páginas confirma e, mais ainda, impele a intensificar a escavação no significado eclesial e, mais propriamente, histórico-salvífico - por seu envolvimento de toda a história da família humana - que é per si só revestido e transmitido pela aventura humana e cristã de Francisco.
Levando em conta o fato de que, como se pode arguir com fundamentada ponderação das páginas de irmão Dario, o escopo dessa extraordinária aventura é justamente iconicamente encerrado e relançado no evento da estigmatização. O que significa que, no corpo e no espírito de Francisco, pela primeira vez na história da Igreja e da humanidade, a própria exousía é inscrita em carne e sangue, ou seja, a luz e a força da Vida que, brotando do Pai, é transmitida à humanidade pelo Filho/Verbo que se fez carne e veio habitar entre nós, a ponto de compartilhar - no abandono vivido na cruz - os abismos e os infernos da história: para transfigurá-los em amor na ressurreição, introduzindo assim a humanidade ferida no seio do Pai no sopro vivo do Espírito Santo derramado “sem medida”.
Já aqui, já agora. No desejo, que de tal forma é ainda mais e decisivamente estimulado, da paz e da unidade na fraternidade e sororidade universais, propiciadas por e na altíssima pobreza nisso assumida. Paz e unidade que não mais conhecerão ocaso no eterno hoje de Deus.
De fato, é precisamente hoje - talvez como nunca antes – que se tornam manifestas e ativas a luz e a força da renovação radical da vida e da visão (sobre a história e o cosmos), que são guardadas e gestadas por e no evento da estigmatização de Francisco. E é exatamente algo disso que, talvez, São João Paulo II intuiu quando, visitando La Verna, concluiu profeticamente que aqui nasceu o franciscanismo e aqui renasceu a Igreja. Enquanto o Papa Francisco - o primeiro na história a assumir arriscadamente, mas providencialmente, esse nome, na esteira da implementação do magistério do Concílio Vaticano II - está explicitando as suas virtudes mais do que nunca atuais e até mesmo decisivas: começando pela Laudato si' e Fratelli tutti.
Mas o que isso significa, na missão da Igreja, nesta nova etapa da história do Evangelho? Eis a segunda consideração que sinto que posso fazer com base no que é oferecido nas páginas deste livro.
O que, de fato, aconteceu em La Verna no evento transbordante de mistério - e, com isso, de luz e vida nova que chovem do alto - da estigmatização de Francisco? O que aconteceu foi que, por pura e singular graça, não só Cristo, verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro filho do homem, por amor se imprimiu - objetivamente - no corpo e na alma do Poverello; mas, da mesma forma, aconteceu que Francisco se identificou com Cristo - subjetivamente - em plena resposta de amor. “Tu és eu e eu sou Tu": isso aconteceu na impressão dos estigmas.
Não que, até então, isso não tivesse acontecido. Toda resposta batismal de fé, no seguimento do Senhor Jesus que se consuma na participação do corpo e do sangue eucarístico dele, o realiza, no já e no ainda não do tempo, esse encontro ímpar entre o dom da graça e o acolhimento que responde em liberdade.
Mas em Francisco essa resposta, por dom, “satura” o corpo, a psique, o espírito. É a travessia de um limiar que marca um ponto sem retorno na história da Igreja para a humanidade: isto é, na história da vinda de Deus, em Cristo e por meio do Espírito, nela; e da entrada correlativa da humanidade na vida - trinitária - do próprio Deus, que o Filho no Espírito Santo nos comunica em superabundância.
Isso implica - eis a terceira consideração para a qual nos acompanha a leitura teológica do evento que Frei Dario nos disponibiliza - que Francisco não esteja sozinho a “entrar”, por Cristo que até nós desceu, no seio do Pai da Vida, onde ascendeu para nos preparar um lugar.
Seja porque ele - como todos nós, no apóstolo João, aos pés da cruz - foi confiado pelo Filho crucificado a Maria, a Mulher, a Mãe. De modo que entrar no seio do Pai com Cristo só pode acontecer depois de acolhidos no colo de Maria. Tanto porque o homem nunca existe sem a mulher: como Adão não existe sem Eva, como Jesus não existe sem Maria, como Francisco não existe sem Clara.
E isso é dirimente. Hoje mais do que ontem. Mesmo que o cristianismo ainda não pareça ter se dado conta e se apropriado plenamente disso: espalhar com abundância a semente da vida eterna na história dos desejos e das feridas humanas. Enquanto hoje, a profecia dessa relação entre Francisco e Clara, ao cruzarem juntos a ferida de amor do Crucifixo - sacerdote e sacrifício de amor da nova e eterna aliança - que está impressa neles e entre eles, propõe isso com uma nova luz e força: para nós e para todos. Na dramática e, aliás, em muitos aspectos até trágica conjuntura que nos interpela como família humana, dentro do lugar compartilhado, mas seriamente ameaçado, da casa comum que nos hospeda.
Provocando-nos - como desafio e como dom - a acolher o sempre novo e sempre mais daquela “transubstanciação” das relações que cada um de nós é: consigo mesmo, com o outro/a, com os irmãos e as irmãs no mundo criado, que é a graça de Cristo comunicada a nós no sopro sem medida do Espírito.
Com a promessa de novos céus e nova terra. Relações - doadas e vividas em Deus Trindade no ventre de Maria, a Mãe do belo Amor - aos quais o Cântico do Irmão Sol nos convida a participar, adorando e agradecendo: que do evento dos estigmas é a flor encantadora, desabrochada nas corolas multicoloridas do arco-íris em que se refrata infinitamente - na criação - a Luz branca, a Claritas, do Amor Puro.
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Sobre os estigmas de São Francisco. Artigo de Piero Coda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU