24 Agosto 2024
"A iconografia dos estigmas de Francisco, no entanto, associa seu aparecimento no corpo do santo à ação de um Serafim (um anjo da hoste celestial mais próximo de Deus), que apareceu em visão durante um momento de jejum e oração em La Verna", escreve Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão, em artigo publicado por Corriere della Sera, 06-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
No dia seguinte à morte de Francisco de Assis (3 de outubro de 1226), seu sucessor à frente da ordem, Frei Elias, enviou uma carta circular a todos os frades, cujo núcleo principal se resume nestas frases: “E agora lhes anuncio uma grande alegria, um milagre extraordinário. Nunca se ouviu falar de tamanho portento no mundo, exceto no Filho de Deus, que é Cristo, o Senhor. Algum tempo antes de sua morte, nosso irmão e pai (Francisco) apareceu crucificado, trazendo impressas em seu corpo as cinco chagas, que são verdadeiramente os estigmas de Cristo. Suas mãos e pés estavam perfurados como por pregos cravados de ambos os lados e tinham cicatrizes da cor preta dos pregos. Seu lado parecia perfurado por uma lança e emitia pequenas gotas de sangue”.
Outras informações nos permitem situar a recepção dos estigmas por Francisco dois anos antes, mais precisamente em 14 de setembro de 1224, oitocentos anos atrás, durante um jejum de quarenta dias no eremitério de La Verna. Até mesmo Dante registra o evento com admiração no décimo primeiro canto do Paraíso, em um terceto justamente famoso: “Na dura penha, que se interpõe ao leito, Do Tibre e do Arno, o derradeiro selo, Cristo lhe pôs: dois anos dura o efeito.”.
Na realidade, apesar das pretensões do Irmão Elias, episódios de aparecimento de estigmas já haviam ocorrido desde o início do século XIII, seguindo práticas de autocrucificação (provavelmente semelhantes às ainda em uso nas Filipinas durante a Semana Santa) ou formas de ascetismo extremo que levavam a consequências semelhantes. Naqueles primeiros momentos, a atitude da Igreja permaneceu ambivalente: enquanto temos notícias da condenação como herege de um inglês que se crucificou por volta de 1222, outras pessoas com estigmas foram imediatamente consideradas santas, como Pedro, o Convertido, um leigo de Villers, em Brabante, dedicado a práticas de ascetismo extremas, ou Maria de Oignes, uma beguina francesa que morreu em 1213 (sobre as primeiras manifestações desse fenômeno um estudo recente é de Carolyn Muessig, The stigmata in medieval and early modern Europe, Oxford University Press, 2020).
A inspiração para tais práticas era oferecida por uma passagem da Carta de Paulo aos Gálatas, em que o apóstolo intima com veemência: “Quanto ao mais, ninguém me moleste; porque eu trago no corpo as marcas de Jesus.”. Na realidade, o termo grego estigma, transliterado em letras latinas por Jerônimo na tradução da Vulgata da Bíblia, indica mais uma marca, um sinal de reconhecimento, do que uma ferida ou sua cicatriz; na exegese dos Padres da Igreja, portanto, era entendido em um sentido predominantemente metafórico, como participação espiritual nos sofrimentos do Senhor.
Essa interpretação foi mantida também no âmbito monástico latino; no entanto, o surgimento de uma sensibilidade diferente no mundo leigo, menos intelectualista e mais ligada à dimensão material da experiência humana, levou a uma interpretação mais literal e física desses “sinais”. O próprio caso do Francisco está ligado à contemplação das imagens do Cristo crucificado e de seus sofrimentos, de cuja iconografia os franciscanos foram os maiores promotores a partir do século XIII.
A iconografia dos estigmas de Francisco, no entanto, associa seu aparecimento no corpo do santo à ação de um Serafim (um anjo da hoste celestial mais próximo de Deus), que apareceu em visão durante um momento de jejum e oração em La Verna.
Como Chiara Frugoni (1940-2022) demonstrou em um estudo ainda fundamental (Francesco e l’invenzione delle stimmate. Una storia per parole e immagini fino a Bonaventura e Giotto, Einaudi, 1993), trata-se da fusão de dois episódios diferentes na vida de Francisco, na origem dos quais está o relato de seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano (c. 1190-1265): durante uma visão, não datada com precisão, mas em um momento distinto do episódio em La Verna, um Serafim apareceu ao santo, dotado de seis asas e com as mãos e os pés pregados na cruz. Francisco não compreendeu o que aquela visão significava e foi somente mais tarde, enquanto refletia sobre a “novidade daquela visão”, escreve o biógrafo, “que as marcas dos pregos começaram a aparecer em suas mãos e pés, assim como ele as tinha visto pouco antes no homem crucificado acima dele”.
Diferentemente das imagens que mais tarde se tornaram canônicas, no relato de Tomás não é o Serafim que impõe os sinais da cruz em Francisco, mas é a profunda meditação espiritual deste último que provoca suas manifestações visíveis no seu próprio corpo. Aqui está, exemplarmente, o ponto crucial para avaliar o fenômeno dos estigmas e a relativa prudência com que a Igreja aborda esses fenômenos: autossugestão patológica ou experiência mística efetiva, de contato imediato com a realidade divina, que também provoca, mas não necessariamente, manifestações de alteração psíquica e física?
A resposta não é fácil, como demonstram os eventos ligados ao caso mais famoso de estigmas do século XX, o do frade franciscano capuchinho Pio de Pietrelcina, primeiramente condenado em 1923 pelo Santo Ofício após algumas perícias médicas e psiquiátricas (incluindo a do padre Gemelli, que pertencia a um ramo diferente da família franciscana), para depois ser progressivamente reabilitado até o ato oficial de Paulo VI em 1964 e à sua canonização em 2002 por João Paulo II.
No entanto, a polêmica nunca diminuiu, e os estigmas foram o principal objeto de contestações contra sua figura, dentro e fora da Igreja Católica.
Ao todo, há notícia de cerca de trezentos casos de estimas ao longo da história desde o século XIII, reconhecidos como autênticos ou não. Entre os mais significativos está o de Catarina de Siena (1347-1380), marcada em 1º de abril de 1375 pelos estigmas que a consagraram como campeã da reforma da ordem dominicana e respeitado exemplo de autoridade religiosa feminina. No clima do confronto entre católicos e protestantes, típico do século XVI, os estigmas estiveram no centro de um amplo debate teológico, o que levou a uma drástica redução de seu significado teológico e espiritual, ainda mais posto em dúvida pelo Iluminismo. Entretanto, não faltam exemplos significativos mais recentes, além do já mencionado Padre Pio: da monja agostiniana Anna Katharina Emmerick (1774-1824), beatificada em 2004, mais conhecida por suas conversas com o poeta romântico alemão Clemens Brentano (1778-1842), que as publicou anos mais tarde sob o título La dolorosa Passione del Nostro Signore Gesù Cristo (A dolorosa paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo); à leiga de Lucca Gemma Galgani (1878-1903), que, tendo recebido os estigmas em 1899 após ter feito voto de castidade e ter tido inúmeras visões, foi proclamada santa pelo Papa Pio XII em 1940, apesar das dúvidas de seu confessor, posteriormente retratadas, sobre a autenticidade de tais manifestações.
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As feridas de São Francisco. Artigo de Marco Rizzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU