03 Setembro 2024
"Ezequiel 34 se desenvolve literalmente a partir das denúncias das ações dos maus pastores, traz o julgamento de Yhwh e sua salvação. Num primeiro momento, a própria divindade se tornará aquela que apascentará o rebanho, visto que os governantes não cumpriram sua tarefa e, ainda, exploraram e dominaram com força violenta e tirania", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos), Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) em resenha do livro: Livro de Ezequiel: “Eu vos darei um coração novo” (Ez 36,26).
Oferecer chaves hermenêuticas para a leitura do Livro de Ezequiel é o escopo da obra: Livro de Ezequiel: “Eu vos darei um coração novo” (Ez 36,26) – (Paulinas, 2024, 344 páginas), organizado pela doutora em Teologia Bíblica Ir. Zuleica Aparecida Silvano.
A Apresentação (p. 9-11) possibilita ao leitor uma visão panorâmica do Livro de Ezequiel ao destacar que o Livro da profecia de Ezequiel se destaca por antecipar a chamada apocalíptica judaica entre os textos considerados canônicos, sendo essa desenvolvida posteriormente pelo Livro de Daniel e Apocalipse de João. Ezequiel pertence aos chamados “profetas maiores”, sua pregação retrata vários períodos do ministério profético que exerceu no século VI a.C., porém tem partes que transparecem um trabalho redacional posterior. Sua profecia se dá na Babilônia, para onde foi exilado, durante a maior catástrofe de Judá e de Jerusalém. O cenário é de perda das lideranças, do Templo, da dinastia davídica, de queda da capital do Reino do Sul, Judá, ou seja, das bases fundamentais que sustentavam o povo de Israel. Por isso, o livro é perpassado por oráculos de juízo e salvação, há vários gestos proféticos, parábolas, visões de experiências de êxtase e alegorias, sendo impregnado de críticas, de forma especial contra as lideranças políticas e religiosas e pela infidelidade do povo, mas é também marcado pela esperança da restauração e da concepção de um Deus sempre disposto a perdoar e acreditar que é possível “recomeçar”.
Livro de Ezequiel: “Eu vos darei um coração novo”(Ez 36,26) de Zuleica Aparecida Silvano
O livro pode ser estruturado em duas partes, conforme as etapas do ministério de Ezequiel. A primeira parte compreende os capítulos 1‒32, também subdividida em dois blocos (Ez 1‒24 e 25‒32), a qual descreve o período antes da queda de Jerusalém, e visa evitar a invasão e a queda da cidade. Essa seção contém vários oráculos com ameaças e exortações dirigidos a diferentes interlocutores: a Judá e seus dirigentes (Ez 1‒24); aos povos, às cidades e aos chefes estrangeiros (Ez 25‒32) por se aproveitarem da situação desoladora de Judá e também pelos seus pecados. A segunda parte é composta pelos capítulos 33‒48, que retratam o período após a conquista de Jerusalém, pelo império babilônico (Ez 33,21), e objetiva confirmar a fé e encorajar os sobreviventes e exilados, propondo um plano de restauração para a “casa de Israel” (Ez 40−48)”.
O conteúdo segue a sequência interna do livro, porém seleciona perícopes ou blocos de textos que retratam as características teológicas principais desse profeta e que são importantes para o entendimento do conjunto da profecia de Ezequiel.
Trazendo elementos introdutórios sobre o profeta e o seu livro (p. 13-42), a doutora em Teologia Maria de Lourdes Corrêa Lima observa que o livro do profeta Ezequiel é o terceiro dos assim chamados “grandes profetas”. Pontua que com uma mensagem de força teológica e expressiva, este livro oferece não poucas dificuldades a seus leitores. Em vista de melhor compreender sua rica mensagem, a autora apresenta alguns passos se fazem necessários: em primeiro lugar a consideração do cenário histórico e religioso em que se localiza o anúncio profético, permite situar os diversos textos do livro e, assim, avaliar seu sentido dentro das situações nas quais surgiu, bem como de suas releituras posteriores. O detalhamento da atividade do profeta e sua colocação por escrito passam da abordagem histórica à abordagem intratextual propriamente dita, o que conduz à análise da organização da sequência das palavras no livro. O registro dos pontos nodais de sua mensagem ajuda a refletir sobre elementos relevantes da revelação registrada nesse escrito.
A vocação e a missão do profeta Ezequiel é o assunto do segundo capítulo (p. 43-72). Ressaltando que a missão do profeta pode ser resumida numa frase “tu lhes falaras as minhas palavras” (Ez 2,7), a doutoranda em Teologia Bíblica Andreia Cristina de Morais busca responder algumas questões: Qual a relação entre profetismo e missão? Existe profetismo sem missão? O que significa uma vocação profética? Estes questionamentos conduzem a presente análise exegético-teológica dos primeiros capítulos 1-3 e permitem aprofundar o sentido e mensagem teológica, oferecendo uma interpretação que leve a conhecer não apenas a mensagem, mas também uma proposta de interpretação que possa iluminar a realidade atual.
O terceiro capítulo analisa o bloco narrativo de Ez 4-11 (p. 73-95). Márcio Bezerra e Jackson Câmara Silva, ambos mestres em Teologia, esclarecem que o objetivo de Ezequiel 4-11 é responder às inúmeras perguntas surgidas durante o caos exílico – e que este bloco narrativo pode ser subdivido em duas partes: oráculos de condenação contra Jerusalém (4-7) e a glória de Deus que abandona o Templo (8-11). A partir desta subdivisão – no primeiro tema, serão estudadas duas tríades: 1) de ações simbólicas e 2) de oráculos de julgamento. Elas, segundo os autores, não visam preanunciar a tragédia sofrida por Israel, mas sim tentam promover sua conversão, denunciar os motivos de sua ruína, sobretudo a violência e a idolatria por parte dos próprios habitantes. O segundo tema trata da glória de Deus que deixa o Templo e a cidade de Jerusalém e, diante disso, os autores analisam o conceito de morada e de glória de Deus para, em seguida, se abordar o caminho delineado por ela no bloco narrativo de Ez 8-11. São, ainda apresentadas as etapas da ação da glória de Deus sobre o povo, destacando: a revelação sobre as infidelidades dos líderes religiosos de Israel, a purificação do Templo e da cidade santa, e, enfim, sua partida.
A visão teológica da história e a centralidade no culto, aspectos próprios da teologia de Ezequiel, são abordadas no quarto capítulo (p. 97-139). A doutora em Teologia Bíblica Zuleica Aparecida Silvano observa que a história de Jerusalém e a relação entre povo e Yhwh são retratadas em Ez 16, simbolizadas nas diferentes etapas do crescimento de uma mulher. As imagens são extraídas de contextos diversos, como a familiar (nascimento) e o matrimonial, mas também da realidade de prostituição e adultério. A referida autora ressalta que entre os aspectos teológicos peculiares de Ezequiel, destaca-se a centralidade do culto e a ênfase na idolatria como um dos pecados principais de Judá. Junto a esses está a injustiça, dado que a idolatria não se restringe ao âmbito religioso, mas afeta a esfera política, econômica, social. Essa infidelidade de Judá acarreta na destruição e no exílio babilônico. Nota-se que não há conversão por parte do povo, nem mesmo um reconhecimento de suas culpas, por isso a única possibilidade de salvação está em Deus, só ele é a esperança de Israel. Por ser fiel as suas promessas, ele renovará a Aliança com o povo. A autora ressalta, ainda que, outro aspecto da profecia de Ezequiel é a releitura teológica da história.
Liberdade e responsabilidade individual são os assuntos trabalhados no quinto capítulo pelo doutor em Teologia Bíblica Jaldemir Vitório (p. 141-171). A reflexão feita por Vitório parte de um rápido esboço do impacto teológico do exílio babilônico na fé do povo de Israel e da resposta que corria entre os exilados e os que ficaram na terra, segundo a qual o exilio resultou do castigo de Yhwh pela infidelidade de Israel, seu parceiro de Aliança. Com o passar do tempo, os nascidos no exílio se recusavam a carregar uma falta que não praticaram e a sofrer as suas consequências. O profeta Ezequiel lança-se na tarefa de oferecer uma saída para o imbróglio, servindo-se de suas habilidades de sacerdote acostumado a lidar com casuística. E o fará de maneira muito didática e esquemática, no capítulo 18 do seu livro, onde oferece uma posta para a superação do impasse, apelando para a responsabilidade de cada indivíduo no bom ou no mal uso da liberdade. O autor conclui a reflexão deste capitulo mostrando como os três filões: teológico, antropológico e ético se interlaçam para tecer a mensagem do profeta.
O olhar internacional do profeta Ezequiel e o oráculo contra Amon é o tema do sexto capítulo pelo doutorando em Teologia João Cláudio Rufino Rodrigues Silva (p. 173-191). Nestas páginas o autor esclarece que todos os livros proféticos, exceto Oseias, têm profecias sobre as nações. Isso ressalta que os profetas não apenas estavam atentos aos desmandos e equívocos de suas autoridades locais e compatriotas, como também se constituíam em observadores internacionais, capazes de tecer suas críticas aos povos que perpetravam injustiças. Em Ezequiel, esses oráculos estão situados em oito capítulos: 25-32, colocados num ponto estratégico do livro. Os oráculos contra as nações estrangeiras revelam de forma contundente a preocupação de Deus e de seus mensageiros por um mundo verdadeiramente universal, de paz e de justiça.
Uma crítica contra aqueles que deveriam apascentar o rebanho e também da visão de Deus como Pastor de Israel é a temática do sétimo capítulo escrito pela doutora em Ciências da Religião Sue'Hellen Monteiro de Matos (p. 193-217). Neste capítulo a autora analisa o capítulo 34, cujo conteúdo é a denúncia contra os que apascentam, bem como um projeto de reconstrução político-religiosa do povo de Israel. Matos pontua que Ezequiel 34 se desenvolve literalmente a partir das denúncias das ações dos maus pastores, traz o julgamento de Yhwh e sua salvação. Num primeiro momento, a própria divindade se tornará aquela que apascentará o rebanho, visto que os governantes não cumpriram sua tarefa e, ainda, exploraram e dominaram com força violenta e tirania. Essa intervenção divina resultará no julgamento do próprio rebanho, pois nele há ovelhas e cabritos que oprimem os seus. Num segundo momento, plausivelmente adicionado no período persa, próximo da reconstrução do Templo de Jerusalém, a esperança encontra-se na figura de um novo Davi, que apascentará o rebanho e que será chefe no meio do povo. A esperança está voltada para um novo projeto político e de governo, ainda que traga a tradição messiânica davídica.
No oitavo capítulo intitulado Justiça e santidade de Yhwh contra Edom (Ez 35), a favor de Israel e em honra de seu santo nome (Ez 36), o doutor em Teologia Bíblica Leonardo Agostini Fernandes traz um comentário exegético-teológico de Ezequiel 35-36 (p. 219-255). Fernandes observa que o livro de Ezequiel, no capítulo 34-23-31, atesta que Yhwh, além de reconduzir os exilados de Israel para Canaã, suscitaria um pastor que, eficazmente, os apascentaria e que seria designado: “Davi, meu servo” (v. 24). Na sequência, o juízo que Yhwh decidiu fazer recair sobre o monte Seir (Ez 35) é o oposto do que decidiu sobre os montes de Israel (Ez 36). Esses capítulos formam os dois lados do juízo divino, desfavorável para o “monte Seir’ e favorável para os “montes de Israel”. Se, em Ezequiel 34, Yhwh optou por defender seu povo, como o bom pastor defende seu rebanho, em Ezequiel 35-36, ele resolveu demonstrar sua soberania sobre a terra, defendendo, em particular, os “montes de Israel”. O ápice dessa decisão aparece na revitalização do povo eleito no cativeiro, representado pelos ossos ressequidos que, pela profecia da efusão do Espírito de Yhwh, retornam à vida em função da reunificação de Israel e Judá.
A intenção do nono capítulo escrito pelo doutor em Teologia Bíblica Matthias Grenzer (p. 257-275) é compreender a profecia de Ezequiel 37, 1-14. O autor entende que uma das visões marcantes de Ezequiel é narrada em 37, 1-14. No caso, Deus desafia o profeta a proclamar a vida no contexto de morte. A ordem é “profetiza” (Ez 37, 4.9.12). A consequência será “vivereis” (Ez 37,5.6.12). Ou, com o verbo flexionado diferentemente, a pergunta “acaso viverão?” (Ez 37,3) cede ao desejo “que vivam!” (37,9). Para Grenzer, nada disso acontece a partir do que o profeta pudesse fazer ou falar por conta própria. Ao contrário, Ezequiel acolhe e segue o que a Palavra de Deus lhe traz. Assim, num âmbito de morte, “profetiza” (Ez 37, 7. 10) em favor da vida. Com o exílio babilônico no século VI a. C., o Israel bíblico havia chegado à sua crise, até então, mais profunda. Não obstante, Ezequiel, um dos exilados, descobre o quanto a vontade de Deus consiste em sua saída em direção daqueles que equivaliam a numerosos ossos secos (vv. 12). Mais do que isso, ao contemplar a catástrofe e a deterioração total de seu povo, o profeta continua a ser sensível à voz divina (vv. 3-5.9.11-14). Dessa forma, repetidamente, percebe o quanto a Palavra de Yhwh (v. 4) continua a insistir na vida nova de quem se sente morto. Por fim, ao cumprir a quádrupla ordem profetiza (vv. 4.9.12) e profetizar de acordo com a ordem recebida do alto ( vv. 7.10), Ezequiel pôde, então narrar (vv. 7-8.10) o milagre visto (v.8) por ele. Os ossos se aproximam uns dos outros (v.7) e, cobertos outra vez de tendões, carne e pele (v. 8), vivem e se firmam sobre seus pés (v. 10), sobretudo pelo fato do sopro ( vv. 5.6.9.10) e do espírito de Yhwh (vv. 1.14) terem se juntado novamente a eles.
O projeto de restauração, com a construção do novo Templo, e de redistribuição da Terra Prometida entre as tribos de Israel são os assuntos do décimo capítulo (p. 277-319) de autoria do doutor em Teologia Bíblica Cássio Murilo Dias da Silva. Nas paginas deste capítulo o autor ressalta que a visão dos capítulos 40-48 condiz com o conjunto da profecia de Ezequiel, mais vinculada às tradições sacerdotais presentes no Pentateuco. De modo particular, observa-se a importância de dois conceitos interligados e interdependentes: santidade e perfeição. Por exemplo, o escrupuloso detalhamento das áreas sagradas e os acessos restritos no novo Templo; as dimensões exatas e harmônicas de muros, espaços e adornos; a equitativa distribuição dos territórios das tribos; a sensação de paz e serenidade decorrente das proporções do novo Templo; a restauração da natureza, graças ao rio de águas milagrosas que brota do edifício central do novo Templo; a convivência harmoniosa das tribos (incluindo estrangeiros residentes) em um país livre, seguro e próspero. Em outras palavras, a visão começa com uma arquitetura teológica e termina com uma geografia teológica.
Neste ano em que a Comissão de Animação Bíblico-Catequética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), escolheu como tema para o Mês da Bíblia 2024 o “Livro de Ezequiel” e o lema “Porei em vós meu Espírito e vivereis!” (Ez 37,14), na leitura da obra em apreço o leitor perceberá e chegara à conclusão de que o estudo do Livro de Ezequiel visa a uma tomada de consciência do papel profético de cristãos e cristãs ou de pessoas interessadas em viver a vontade de Deus nos mais diferentes contextos, denunciando as injustiças, anunciando a novidade do amor de Deus, pleno de misericórdia, e, ao mesmo tempo, despertando a esperança, para consolar aqueles e aquelas que experimentam a perda, o sofrimento, a aflição, de forma especial os exilados exiladas de sua terra por causa das guerras ou as pessoas em busca de melhores condições de vida. Outra finalidade do estudo, segundo a organizadora é avaliar os vários projetos de restauração política, econômica, social e religiosa na atualidade, tendo como critério o apelo do Senhor de substituir um coração de pedra, acomodado, sem esperança, e acolher um espírito novo e um coração novo.
Certamente num mundo repleto de crises e incertezas e de falta de esperança a profecia de Ezequiel continua a nos interpelar...