19 Julho 2024
"Quantos mais precisarão morrer para se perceber que o sistema capitalista é uma brutal máquina de moer vidas?", questiona Frei Gilvander Moreira.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
No livro de Ezequiel e em muitos outros livros da Bíblia, há narrativas afirmando que quando a voz de Deus não é ouvida, a pessoa ou o povo por ser “castigado”. Como compreender referência a eventual castigo, sendo o Deus da vida um mistério de infinito amor. Quem ama castiga? Não castiga. Em relação ao “castigado” (?), há consciência do fato que a exortação à conversão, quando não ouvida pela pessoa ou pelo povo, se torna uma condenação. Isto é, nada mais, nada menos, que a dinâmica das relações interpessoais. Quando duas pessoas se encontram, se atraem e começam a se conhecer. A relação amorosa pode evoluir, parar ou eventualmente morrer. Mas enquanto existe, cada ação e reação levam ao aprimoramento ou diminuição daquela relação. Todo ato (ou omissão) nas relações interpessoais e sociais soma e cultiva a relação ou a empobrece descultivando-a. Nenhum ato fica neutro. “Ação e reação” não é apenas a terceira lei da Física de Isaac Newton, que rege a relação entre corpos, mas permeia e perpassa as relações humanas, sociais e ecológicas. O apóstolo Paulo não se esqueceu da lei/princípio da “ação e reação”. Diz Paulo: “tudo o que a pessoa semear, isso também ceifará” (Gl 6.7). “Quem semeia vento colhe tempestade”, diz um ditado da sabedoria popular. Quem semeia ilusão colhe ilusão.
De modo semelhante, na relação do ser humano com Deus, cada ação que não melhora a relação, a piora, mas jamais a deixa igual. Se não se aceita um convite à conversão, como uma oferta de amizade, o recusa. E esta recusa tornará mais difícil que aconteça um novo convite. “Gato escaldado com água quente tem medo até de água fria”, diz a sabedoria popular. Além disso, aceitar uma nova oferta de amizade implicaria em reconhecer o erro precedente, o que pode exigir um grau maior de humildade.
Em relação aos profetas e profetisas, este processo se explica na medida em que os/as “intérpretes de Javé” sabem do paradoxo da missão deles. Os profetas e profetisas sabem que a palavra profética conduz às vezes à conversão de alguns poucos, mas na maioria das vezes leva ao endurecimento de muitos. Os oráculos de condenação no futuro, pronunciados com absoluta segurança, refletem a consciência dos profetas de que a advertência seria inútil.
Na parábola narrada em Ez 37,1-14, o povo no fundo do poço do exílio babilônico é comparado com um vale de ossos ressequidos, onde à primeira vista, só existem morte e esterilidade. Mas na perspectiva de Deus, com comunicação afetiva e efetiva, no vale – território que pode gerar condições de vida – com articulações, pouco a pouco, o povo se desperta e desencadeia um processo de “soerguimento”.
O profeta se movendo no meio das pessoas do povo, como ossos ressequidos, convivendo, ouvindo seus clamores, identificando suas forças e sabedoria, pouco a pouco se torna instrumento de um espírito de vida que vai surgindo no meio das relações humanas que vão se travando. Ao acordar no povo a utopia da libertação e da presença do Deus da vida junto ao povo, como ossos ressequidos, começa a se aproximar, a se unir, a se organizar e empreende um processo pedagógico de libertação do fundo do poço. O profeta “sopra” sobre o povo exilado da mesma forma que Deus soprou o barro com o qual criou Adão e Eva (cf. Gênesis 2,4-7). Ou seja, com a experiência do exílio o povo “re-escravizado” está sendo recriado e refazendo a história de libertação.
É inegável que o profeta Ezequiel conquistou pelo seu jeito de ser e agir o reconhecimento histórico como profeta e sacerdote, mas somando tudo, lendo nas linhas e nas entrelinhas, Ezequiel parece ter sido mais sacerdote que profeta. Ele deve ter sofrido de algumas formas o fato de ter sido arrancado de Jerusalém e da terra prometida, mas fez parte do grupo da elite que não foi escravizado na Babilônia, mas apenas deportado.
Não devemos também impor uma oposição radical entre sacerdócio e profecia, como se nenhum sacerdote pudesse ser também profeta ou, ao contrário, que nenhum profeta não pudesse de alguma forma desempenhar funções de sacerdote. Se considerarmos o sentido original e etimológico de sacerdote, que é aquele que revela o sagrado existente nas pessoas e em toda a criação, o profeta tem também esta dimensão na sua missão. A oposição principal acontece nas formas históricas do sacerdócio e da profecia, quando sacerdote se alia aos opressores e exploradores e quando o profeta também se torna falso profeta por ter se associado à elite dominante da política opressora, da religião manipuladora e da economia que idolatra o mercado e o grande capital.
O poder religioso está assentado sobre quatro pilares: o templo, o sacerdote, as leis eclesiásticas e o culto. Leonardo Boff não foi silenciado pelo cardeal Ratzinger e pelo papa João Paulo II por ter escrito sobre o Jesus Libertador, sobre o rosto materno de Deus, mas porque escreveu questionando o poder da Igreja, no livro Igreja: carisma e poder. Seguir o Evangelho de Jesus exige que não podemos evangelizar apenas na Galileia, mas temos que marchar para Jerusalém para enfrentar os opressores e exploradores dos poderes da economia, da política e da religião.
Quantos mais precisarão morrer para se perceber que o sistema capitalista é uma brutal máquina de moer vidas? A profecia é anti-instituição. “Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas e apedreja os que foram enviados a você” (Mt 23,37; Lc 13,34).
Obs.: As videorreportagens no link, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Ezequiel, que tipo de Profeta e de Sacerdote? E nós? Vem aí o mês da Bíblia 2024
2 – Ezequiel: a glória de Javé com os deserdados da terra? - Mês da Bíblia 2024
3 - Um Tom de resistência - Combatendo o fundamentalismo cristão na política
4 - Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética
5 - Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG.
6 - Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
7 - CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres
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Ezequiel: de ossos ressequidos à emancipação. Artigo de Gilvander Moreira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU