22 Agosto 2024
"A Igreja tradicional obviamente ainda tem dificuldade em aceitar a descriminalização da homossexualidade que aconteceu 30 anos atrás. Isso talvez se deva também ao fato de que uma alegria honesta por isso deveria ser acompanhada de uma revisão de suas próprias regras para as relações homossexuais", escreve Andreas Heek, em artigo publicado por Herder, 20-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Andreas Heek é doutora em teologia pastoral. É responsável pelo escritório para o trabalho e a pastoral masculina nas dioceses alemãs, onde também dirige o departamento para a pastoral queer, que conecta em rede os representantes queer nas dioceses e aconselha o bispo encarregado pelas pessoas queer. Ele é membro do Comitê Central dos Católicos alemães para o “Fórum dos Homens Católicos” e diretor administrativo do grupo de trabalho “Diversidade de Gênero” do Caminho sinodal. De 2022 a 2023, ocupou a cadeira de Teologia Pastoral na Universidade de Münster.
Trinta anos após a abolição do artigo 175 do Código penal alemão, pode-se constatar uma corresponsabilidade da Igreja Católica na criminalização da homossexualidade. O Comitê Central dos Católicos Alemães tomou uma posição sobre o tema.
Em 11 de junho de 1994, foi abolido o parágrafo 175 do Código Penal alemão após a decisão do Bundestag alemão de 10 de março de 1994. Essa decisão pôs fim a décadas de criminalização dos homossexuais, que havia começado em toda a Alemanha com a introdução do Parágrafo 175 no Código Penal do Reich em 1º de janeiro de 1872. O Código Penal adotou a norma do Código Penal dos Estados Prussianos de 1851, que dizia: “A fornicação ilícita cometida entre pessoas do sexo masculino ou entre homens e animais é punida com a reclusão; também pode ser imposta a perda dos direitos civis”. Durante o período do nacional-socialismo, o crime foi tornado mais grave em 1935. Ao eliminar a palavra “antinatural”, o crime foi ampliado para além das relações sexuais, incluindo todas as formas de relacionamento e ações que “objetivamente” violavam o senso geral do pudor e documentavam a “intenção lasciva” de “despertar o desejo sensual de um dos dois homens ou de uma terceira pessoa”. Além disso, as mulheres suspeitas de relacionamentos lésbicos podiam ser classificadas como “antissociais” e internadas para instituições psiquiátricas por tempo indeterminado.
Na República Federal da Alemanha os primeiros governos - inclusive com o apoio “espiritual e moral” de representantes da Igreja Católica e de seu clero, referindo-se à suposta “antinaturalidade”, ao “bom-senso do povo” ou à “lei moral cristã” - mantiveram a severa criminalização da época nacional-socialista. Foi somente com os governos social-liberais de 1969 que a criminalização foi atenuada, de modo que, a partir de 1973, somente as relações e os atos homossexuais entre um adulto e um homem com menos de 18 anos eram puníveis.
A RDA aboliu o delito criminal correspondente sem substituí-lo após as eleições de 1989 da Volkskammer. Após a adesão dos novos Länder ao estado federal, onde vigia a Constituição de 1990, a lei teve de ser harmonizada. Isso foi feito pela resolução do Bundestag alemão de 11 de junho de 1994.
Na época, a decisão foi recebida com silêncio pela Igreja Católica. Nem as associações católicas nem os bispos deram qualquer indicação de que a descriminalização da homossexualidade estivesse sendo acolhida favoravelmente. Pelo contrário, o representante oficial da Conferência Episcopal Alemã junto ao Governo Federal se manifestou, já em 1992, a favor da manutenção do crime penal de atividade homossexual por homens adultos.
O Comitê Central dos Laicos Católicos Alemães (ZdK) também não tomou posição. Aliás, excluiu os homossexuais católicos que, até a década de 1990, tinham lutado por sua visibilidade e aceitação dentro das igrejas cristãs como, por exemplo, a iniciativa ecumênica “Homossexuais e Igreja” ou a “Rede das lésbicas católica”. Como grande parte da Igreja e da sociedade como um todo, portanto, contribuiu para a discriminação de cristãos homossexuais e das pessoas de gênero diverso dentro da própria Igreja.
Por ocasião do 30º aniversário da abolição do § 175, a assembleia plenária do ZdK aprovou por ampla maioria uma resolução reconhecendo a corresponsabilidade do órgão na manutenção do § 175. Em uma declaração em 11 de junho de 2024, a presidente Irme Stetter-Karp afirmou: “Há tempo é necessário reconhecer positivamente o fim da perseguição criminal das pessoas homossexuais. Isso deixa claro que o mais alto órgão secular da Igreja Católica está oficialmente rompendo com seu passado. No passado, a hostilidade em relação às pessoas homossexuais e trans, às pessoas intersexuais e de outras identidades de gênero era muito difundida dentro da Igreja. Havia motivos: ainda hoje, o Magistério da Igreja considera o comportamento homossexual ‘irregular’, ou seja, ilegítimo”.
Isso foi sistematizado em termos magisteriais, especialmente durante o pontificado de João Paulo II. Sob a égide do Cardeal Joseph Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, esse ensinamento anti-homossexual foi consolidado no Catecismo da Igreja Católica em 1992. Ainda hoje, as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser legitimamente formalizadas de acordo com a lei da Igreja. Os homens homossexuais são excluídos do sacerdócio bem como as pessoas trans, ou seja, as pessoas que nasceram fisicamente do sexo feminino e fizeram uma transição para o sexo masculino. Também as pessoas intersexuais, ou seja, aquelas que apresentam características femininas e masculinas e reconhecem sua identidade como tal, não têm acesso aos sacramentos da ordenação e do matrimônio. O fato de as pessoas queer serem excluídas de dois sacramentos não é sem importância. Trata-se de um desideratum eclesiológico-teológico na medida em que existem pessoas com identidades legítimas (heterossexuais) e ilegítimas (queer). Estas últimas não desfrutam na Igreja dos mesmos direitos que têm no Estado.
Em nível social, uma liberalização em relação à “queeridade” já havia começado na década de 1970.
Essa liberalização foi incentivada justamente pela coragem dos próprios pessoas queer de admitir sua identidade e, assim, se expor. No entanto, a homossexualidade ainda não era amplamente reconhecida como uma forma consolidada de expressão sexual do amor, mas em alguns casos ainda era considerada imprópria.
A pandemia de AIDS, que chegou à Alemanha em meados da década de 1980, logo causou um contragolpe. O medo do contágio, mas também o profundo ressentimento em relação aos homossexuais, levou a algumas exigências obscuras no debate político, como, por exemplo, a de confinar os pacientes com AIDS.
A pandemia de AIDS levou muitos representantes oficiais da Igreja a descrever essa terrível doença como uma consequência do pecado representado pela homossexualidade, às vezes até como uma justa punição de Deus. Para os pacientes predominantemente do sexo masculino, que na época morriam nas enfermarias dos hospitais porque não havia quase nenhum atendimento médico para eles, essas declarações eram como um tapa na cara. Desde então, criou-se um enorme distanciamento entre a comunidade queer e a Igreja Católica, que continua até hoje. A confiança não foi restabelecida de forma alguma.
As contradições dentro da Igreja Católica incluem o fato de que bandeiras arco-íris foram penduradas em frente a muitas igrejas na Alemanha para celebrar a iniciativa “Out In Church” dos funcionários queer, de forma que a legislação trabalhista se tornou queer-friendly e vinte e uma dioceses agora nomearam comissários para a pastoral queer. Mas o magistério não mudou sua avaliação dos estilos de vida queer.
Embora até mesmo o “documento sobre a bênção”, Fiducia supplicans, se aproxime cautelosamente do fato de que possa se tratar de amor entre dois parceiros do mesmo sexo e não apenas de uma forma de sexualidade, tal união ainda é considerada “irregular”. Esses casais podem ser abençoados, mas não oficialmente em uma igreja e não em um serviço religioso. Contudo, é possível reconhecer o esforço para alcançar as pessoas queer, mesmo que a situação continue difícil do ponto de vista das pessoas envolvidas. As reações, às vezes terrivelmente hostis, a esse documento em algumas regiões do mundo católico também dão uma ideia de como a homofobia ainda esteja disseminada entre o clero e nas igrejas locais. Desse ponto de vista, a cautela do Vaticano poderia ser plausível para preservar a unidade. Entretanto, não pode ser justificada do ponto de vista teológico.
Portanto, parece ainda mais oportuno que seja realizada uma revisão fundamental da avaliação moral-teológica. O magistério da Igreja deve simplesmente incorporar na sua tradição tudo o que a pesquisa teológica tem desenvolvido há tempo, desde a exegese
até a teologia sistemática, a ética teológica e a teologia pastoral, assim como sempre incorporou os conhecimentos da filosofia e da teologia. O próprio Papa Francisco, no entanto, encarna em sua pessoa a ambiguidade em relação às pessoas queer. Com frequência se demonstrou extremamente empático em relação a elas, especialmente nos encontros pessoais. Ali percebe-se o pastor empático que conhece a vida e ama as pessoas. Em outros dias, uma homofobia profundamente enraizada parece emergir nele quando expressa a opinião exatamente oposta. Por um lado, pede que o Estado permita que casais do mesmo sexo se casem, para proteger sua relação. Do outro, não acredita que isso seja possível dentro da Igreja. Como uma pessoa queer pode confiar na Igreja e acreditar que ela seriamente esteja dizendo que as pessoas queer pertencem à Igreja sem restrições?
O ZdK, o mais alto órgão laico dos católicos na Alemanha, enviou um sinal antes do recém-concluído Dia dos Católicos de Erfurt com sua admissão de corresponsabilidade em relação ao parágrafo 175 do Direito penal alemão. Não foi por acaso. As bandeiras arco-íris em muitas igrejas não eram nada além de um sinal de 98% de aprovação da resolução da ZdK. A base católica não é de forma alguma homogênea, mas parece ter amadurecido a consciência de que a exclusão de pessoas queer da vida social da Igreja não pode mais ser justificada. Um motivo para isso poderia estar no fato de que os membros da maioria das associações familiares maiores já se assumiram. Assim, a “queeridade” faz parte da vida cotidiana e da formação da família. Os laicos da Igreja há muito tempo pararam de fechar os olhos para essa realidade.
Pelo contrário, as pessoas queer são vistas como enriquecedoras porque podem ter refletido mais profundamente sobre si mesmas e sobre como se tornaram do que algumas pessoas que cresceram nos papéis tradicionais de gênero e desejos. A determinação de aceitar pessoas queer nos círculos familiares e de amizade aumentou enormemente. Isso também se deve ao fato de que as pessoas parecem priorizar o amor por seus familiares e amigos em detrimento de uma ideia abstrata de “correção” humana.
A Igreja tradicional obviamente ainda tem dificuldade em aceitar a descriminalização da homossexualidade que aconteceu 30 anos atrás. Isso talvez se deva também ao fato de que uma alegria honesta por isso deveria ser acompanhada de uma revisão de suas próprias regras para as relações homossexuais. Deveria abolir o julgamento legal de tais relacionamentos como irregulares, assim como o estado aboliu o parágrafo 175 há 30 anos.
A presidente do Comitê Central, Irme Stetter-Karp, declarou por ocasião do aniversário da remoção: “Mesmo 30 anos após a remoção do parágrafo 175 do Código Penal alemão, ainda é absolutamente importante e necessário que os cristãos assumam uma posição firme em relação a hostilidade queer dentro da Igreja e da sociedade. Ser humano significa viver na diversidade. Todos nós devemos fazer a nossa parte para garantir que a igreja seja um lugar seguro e acolhedor para as pessoas queer”.
Essas frases são proferidas em um presente em que o acolhimento das pessoas queer não é considerado garantido. As pessoas queer ainda são uma minoria na sociedade. Em uma atmosfera acalorada que tende à polarização, as minorias são extremamente vulneráveis. Isso torna ainda mais importante o empenho do mais alto representante dos católicos alemães (de todos os gêneros) de tornar a igreja um lugar mais seguro para as pessoas queer. Parece que chegou a hora da base assumir o que os bispos ainda não estão aptos a fazer: não esperar que as normas sejam mudadas, mas contribuir eles mesmos para a normalização das identidades queer.