09 Agosto 2024
"O Brasil optou pela teoria do choque. Em vez da inserção gradativa no mercado internacional, e um planejamento racional sobre a transição – preservando os setores estratégicos -, valeu-se do desmonte atrapalhado da estrutura pública brasileira, especialmente na área de energia", escreve Luis Nassif, jornalista, em artigo publicado por Jornal GGN, 07-08-2024.
O artigo “O sequestro da imaginação”, de André Lara Resende, publicado no jornal Valor Econômico, é o primeiro a romper com a comemoração oba-oba dos 30 anos do Real, do qual o ápice do ridículo foram as declarações de Edmar Bacha, sobre o tal bilhete azul, que ele teria endereçado a FHC e que teria sido o estopim para o Real. E de um dos dois pais autênticos do Real, não de coadjuvantes de terceira linha, como Bacha e Pedro Malan.
Diz André, em sua crítica amarga: “Um plano de estabilização, que partiu de uma ideia inovadora, para vencer uma característica da inflação crônica, nunca entendida pela teoria convencional, foi agora reinterpretado como uma camisa de força em defesa da ortodoxia macroeconômica.”
O artigo inteiro é uma crítica contundente ao dogmatismo levantado pelos profissionais da ideologia de mercado.
“Enquanto a austeridade exige corte de despesas e aumento da carga tributária para viabilizar um superávit primário, a política monetária fica livre para elevar os juros e impor um alto custo fiscal ao país. Sob pretexto de financiar um déficit fiscal cuja origem é exatamente a política de juros, o BC fica autorizado a manter os juros altos”, diz ele.
“O Real foi uma grande conquista, mas a esperança de que o fim da inflação, como diz o documento de base para a Exposição de Motivo do Real, pudesse por si só “melhorar a distribuição de renda, combater a fome, permitir o crescimento da economia e criar empregos”, não se confirmou. A estabilidade de preços não restabeleceu o rápido crescimento, não superou o “terrível abismo entre o Brasil rico, industrializado, moderno e eficiente, e o Brasil miserável, de tudo desprovido”, para o qual o documento chamava a atenção. A inflação foi vencida, mas os dois Brasis, tristemente, persistem”. Continua ele: “Comemora-se o fim da inflação, para não ser obrigado a refletir sobre as frustrações do passado recente e os desafios do presente”.
Ele só erra em um ponto: ao supor que esse irracionalismo suicida da política monetária começou no segundo mandato de FHC. Lá houve realmente a introdução das metas inflacionárias por Armínio Fraga, uma maneira de consolidar a ideologia de mercado. Mas o início efetivo dessa financeirização sem limites foi no próprio Plano Real, com as taxas exorbitantes praticadas a partir de 1995, com o desmonte do setor elétrico e de outros, que garantiam competitividade para a produção interna.
No final de 1994, houve uma corrida contra o Real. O então presidente do BC, Pérsio Arida, promoveu uma alta vigorosa na taxa básica. Passada a corrida, qualquer BC racional traria a taxa de volta, sabendo dos efeitos terríveis sobre o tecido econômico e as contas públicas.
Mas Pérsio foi afastado, depois de uma denúncia (falsa) de vazamento de informações, meramente por ter visitado Fernão Bracher em sua fazenda no interior de São Paulo. E o sucessor, Gustavo Loyola, persistiu naquela loucura sob o argumento de que, se baixasse rapidamente os juros e houvesse nova corrida, o BC teria que promover um novo salto nas taxas. Para não haver salto nas taxas, bastaria portanto manter as taxas elevadas, uma lógica circular aceita por quase toda a mídia com uma submissão quase humilhante.
Nos anos 80 houve o esgotamento do modelo de desenvolvimento calcado em empresas públicas. A nova onda tecnológica exigia uma rapidez impossível de ser acompanhada por uma economia amarrada.
Houve duas estratégias de transição.
A primeira, a da teoria do choque, praticada pela União Soviética, que consistiu na venda precipitada de todas as estatais e da abertura do mercado, sem nenhuma estratégia de transição.
A segunda, a chinesa, com uma transição planejada, preservando as empresas estatais estratégicas, e estimulando o empreendedorismo nas empresas que atuavam em nível de mercado.
O Brasil optou pela teoria do choque. Em vez da inserção gradativa no mercado internacional, e um planejamento racional sobre a transição – preservando os setores estratégicos -, valeu-se do desmonte atrapalhado da estrutura pública brasileira, especialmente na área de energia.
Esse modelo foi mantido no primeiro e segundo governo Lula, e só foi rompido quando a crise de 2008 obrigou Lula a enfrentar a ortodoxia do mercado, com resultados extraordinários e, inclusive, a começar uma ação de redução dos spreads, com a participação do Banco do Brasil.
A reação foi imediata: o governo vai quebrar o BB, conforme afirmava Mirian Leitão, em 2009. Dilma Rousseff aprofundou essa estratégia e o resultado foi um crescimento robusto do BB no mercado de crédito, com aumento substancial dos lucros.
O início efetivo da campanha do impeachment está ligado a essa iniciativa de Dilma, de reduzir os juros básicos e os spreads bancários, uma pressão tão forte que a fez, no início do segundo governo, a adotar o pacote Joaquim Levy, defendido pelo mercado, que praticamente liquidou com seu governo.
Agora, a pressão diuturna da mídia, a volta do jornalismo de guerra, também está ligado a dois movimentos de mercado. O primeiro, o de pressionar para a venda de estatais a preços vis. Foi o que aconteceu com Eletrobras, ainda no governo Bolsonaro e, agora, com a Sabesp, no governo Tarcísio de Freitas em São Paulo.
O lançamento da candidatura de Tarcísio a presidente – patrocinado pela revista Veja – é o pagamento por ter autorizado a mais obscura privatização dos tempos modernos no país. E consagra definitivamente o presidente do BTG Pactual, André Esteves, como a grande liderança do partido da Faria Lima. No futuro, o historiador que se debruçar sobre os anos de irracionalidade da mídia, terá nos editoriais da Folha, Estadão e Globo todas as provas desse jogo de interesses articulado pelo mercado.
O segundo grande assalto aos cofres públicos são as emendas parlamentares, por parte de um Congresso que surrupiou o poder do Executivo governar.
O terceiro fator é a alta burocracia pública, com seus privilégios permanentes e sua capacidade de superar até os tetos constitucionais.
Para equilibrar todo esse jogo, quais as saídas:
Cortar o orçamento de quem chia menos, a população. E tome cortes na educação, saúde e funcionalismo público na ponta que serve à população.
Cortar investimentos públicos, que são o maior indutor da atividade produtiva.
Demonizar peças centrais de industrialização, como compras públicas e conteúdo nacional.
E vender a ideia, de que se todas essas medidas forem adotadas, afetando setores essenciais para o desenvolvimento, trarão o desenvolvimento.
Haverá um novo ciclo de desenvolvimento no país, sim. Mas não está à vista. Não há um setor estratégico, uma massa crítica de pensamento capaz de aglutinar o país e devolver o sentimento de Nação.
Ontem, o ex-ministro de Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, deu uma entrevista fantástica à TV GGN. Nela, dizia que Lula foi o presidente que melhor entendeu a importância da ciência, tecnologia e da inovação para o país. Mas a herança política da década de 20, que começou com a guerra ideológica da mídia, a conspiração do impeachment e o advento de dois governos de negócios – Temer e Bolsonaro – ainda cobrará um enorme preço, antes de ser superada.
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A autocrítica amarga de André Lara Resende. Artigo de Luís Nassif - Instituto Humanitas Unisinos - IHU