08 Agosto 2024
É justamente o boxe feminino, no centro de uma feroz polêmica, em grande parte propositadamente montada pela narrativa soberanista e antigênero até mesmo do esporte, que nos presenteia com uma maravilhosa história de redenção que se reconcilia com o mais autêntico espírito olímpico. A protagonista é a boxeadora de 25 anos Cindy Ngamba, de origem camaronesa, que, ao vencer a francesa Davina Michel na categoria até 75 kg no último domingo, garantiu de uma só vez acesso às semifinais e a uma medalha.
A reportagem é de Luca Attanasio, publicada por Domani, 07-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que há de tão especial? Cindy Ngamba não estava competindo por sua nação de origem nem por aquela que se tornou sua segunda pátria, porque faz parte da equipe olímpica dos refugiados e, com sua vitória, trouxe para sua equipe especial a primeira e histórica medalha.
A história da equipe olímpica de refugiados é bastante recente. Ela estreou no Rio nos Jogos de 2016 e se apresentou ao mundo com dez atletas vindos das áreas mais críticas do planeta, alguns deles hóspedes de campos de refugiados montados pelo ACNUR. A equipe de Paris 2024 é a maior, com 37 atletas competindo em 12 esportes, entre os quais judô, tae-kwon-do e breaking.
Alguns atletas que atualmente fazem parte da equipe olímpica dos refugiados já ganharam medalhas representando seu país de origem durante as Olimpíadas anteriores. No entanto, a situação degenerada dos países onde viviam ou uma condição pessoal de perigo os forçou a fugir. Ngamba é a primeira a vencer para a equipe dos refugiados, um símbolo que vai muito além de um lugar no pódio.
Cindy é uma verdadeira lutadora. Ela abriu seu caminho na vida em meio à pobreza da família, episódios de bullying durante a infância em Douala e fortes discriminações por causa de sua homossexualidade, que em seu país, assim como em muitos outros na África, é punida com a prisão por lei. Ela realmente não se deixou assustar por um público quase totalmente hostil, já que estava competindo com uma atleta da casa. "Hoje", declarou à margem da luta vencida por 5 a 0, "lutei contra uma adversária muito difícil, também porque muitas pessoas não estavam torcendo por mim, mas ouvi meus companheiros de equipe, meus técnicos e a mim mesma e mantive a calma”.
Na próxima luta, na noite de 8 de agosto, a atleta, agora refugiada na Inglaterra à espera da cidadania, enfrentará a panamenha Atheyna Bylon.
Em maio, Cindy se tornou a primeira atleta refugiada a participar do torneio de boxe nas Olimpíadas e a primeira em qualquer modalidade a conquistar um lugar nos Jogos por meio de qualificação, e não por seleção, depois de vencer um torneio na Itália.
E um dos artífices do projeto também é italiano, o atirador Nicolò Campriani, três vezes medalhista de ouro nos Jogos, ex-diretor do COI e agora no comitê organizador de Los Angeles 2028. Ele é o treinador dos atiradores/as da equipe. O documentário Taking Refugee contava três anos atrás o processo de seleção.
Se você se aproximar desses 37 atletas, que originalmente fugiram de países como Afeganistão, Sudão do Sul, Eritreia, Camarões, Congo, Sudão, Irã, Etiópia e vários outros, ouve o grito desesperado daqueles 117,3 milhões de migrantes forçados a deixar suas casas por causa de guerras, desastres ambientais, ditaduras, um número que tem aumentado constantemente na última década.
Quase a metade é composta de crianças, uma parte das quais vagueia pelo mundo em busca de refúgio, sozinha. A condição de uma grande maioria delas é marcada pela vida nos campos de refugiados, uma realidade tão generalizada quanto dramática, da qual, às vezes, nunca se sai. É lá que alguns dos atletas treinam, em estradas de terra transformadas em pistas de atletismo ou em ringues improvisados entre tendas e centros de distribuição de alimentos.
Quase todos os atletas que participam das Olimpíadas são selecionados pelo programa de bolsas de estudo do Comitê Olímpico Internacional para atletas refugiados. O COI colabora com os comitês nacionais anfitriões para identificar os atletas refugiados que vivem em seus países.
Entrega a eles bolsas de estudo para ajudá-los a treinar, não apenas com o objetivo de participar das Olimpíadas, mas também para desenvolver suas carreiras esportivas. A equipe é escolhida pelo COI, enquanto as bolsas de estudo e a equipe são gerenciadas pela Fundação Olímpica Refugiados (Orf), criada pelo COI para oferecer apoio contínuo aos refugiados por meio do esporte.
O ACNUR colabora com várias organizações locais, nacionais e internacionais para facilitar cada vez mais o acesso dos refugiados às atividades esportivas. “O resultado alcançado por Cindy Ngamba", explica Chiara Cardoletti, representante do ACNUR para a Itália, Santa Sé e San Marino, ao Domani, "é uma conquista que nos deixa muito orgulhosos e uma demonstração do que os refugiados podem fazer se tiverem a oportunidade.
A participação da equipe dos refugiados já é uma conquista muito importante que vai além do resultado, não apenas para os 37 atletas selecionados, mas também pelo que representa para a causa dos refugiados.
As pessoas que estão fugindo sonham em reconstruir seu futuro com segurança e dignidade.
Muitas vezes a narrativa sobre elas destaca apenas suas necessidades básicas, deixando de lado o talento, a coragem e a determinação que trazem consigo.
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A primeira medalha dos refugiados: quando o esporte protege das guerras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU