27 Julho 2024
Uma a cada 11 pessoas não tinha alimentos suficientes em 2023, de acordo com o último relatório de segurança alimentar da ONU, que indica que os países não conseguiram regressar aos níveis pré-covid. A situação na África piora, enquanto na América Latina melhora.
A reportagem é de Patrícia R. Blanco, publicada por El País, 24-07-2024.
Entre 713 e 757 milhões de pessoas não tinham alimentos suficientes em 2023, o que significa que uma a cada 11 pessoas no mundo passou fome no ano passado. O número, que pouco mudou nos últimos três anos – em 2022 estava entre 691 e 783 milhões – revela que o mundo ainda não conseguiu regressar ao nível anterior à pandemia de covid-19. “Cerca de 152 milhões de pessoas a mais do que em 2019” estão em situação de insegurança alimentar ou desnutridas, concluem os autores do principal estudo anual sobre fome, O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2024 (SOFI), publicado esta quarta-feira e preparado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), pelo Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA), pelo Programa Alimentar Mundial (PMA), a pela Unicef e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
“A pior coisa que pode acontecer aos mais de 700 milhões de famintos no mundo é aceitarmos os dados como algo normal”, lamenta Amador Gómez, diretor de Pesquisa e Inovação da Ação Contra a Fome, por telefone. Porque a fome, recorde-se, “não é uma fatalidade, pois não é um problema de disponibilidade de alimentos, mas de acesso a esses alimentos”. No entanto, se o rumo não for alterado, “as projeções indicam que em 2030 haverá 582 milhões de pessoas a sofrer de insegurança alimentar e fome”, um número muito distante da meta de “fome zero” que as Nações Unidas estabeleceram para essa data. Álvaro Lario, presidente do FIDA em entrevista a este jornal. Destes, “53% serão encontrados em África”.
O continente africano continua a ser a região do mundo com a maior percentagem de pessoas com fome (20,4%), em comparação com 8,1% na Ásia, 6,2% na América Latina e 7,3% na Oceania. Na verdade, a análise aprofundada dos dados indica que se o número de pessoas subnutridas permaneceu estável em 2023, é porque “a notável redução da fome na América Latina”, em cerca de cinco milhões de pessoas, compensou o aumento na África— na Ásia, quase não mudou. “O desafio no futuro vai ser maior e a situação pode ser ainda mais complicada porque a população africana é muito jovem e continua a crescer num contexto onde a desigualdade é muito grande”, conclui Lario, que lembra que se um em cada 11 pessoas passam fome no mundo, esta proporção, no caso africano, é de uma em cada cinco.
Os principais fatores pelos quais a situação da fome continua a deteriorar-se na África são o “aumento dos conflitos e da vulnerabilidade às alterações climáticas, porque são países com poucos recursos e menos resilientes, bem como o impacto tanto da recessão económica como do problema da dívida”, explica Máximo Torero, economista-chefe da FAO, em entrevista ao EL PAÍS. “A África é um continente que importa grande parte dos seus alimentos, por isso, quando as taxas de juro globais sobem, se o seu banco central não for muito forte, a taxa de câmbio local é desvalorizada e, ao mesmo tempo, os países têm de pagar mais pelos seus dívida”, acrescenta. Tudo isto provoca “fortes restrições à capacidade de comprar e pagar os custos das importações necessárias” para alimentar a população.
O caso oposto é o da América Latina, continua Torero, onde a fome foi reduzida porque há “uma melhor preparação em termos de mecanismos de proteção social, o que lhes permitiu concentrar mais as intervenções e responder mais rapidamente”. Precisamente nesta semana, será lançada no Brasil a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, promovida pela presidência brasileira do G-20, para ampliar as lições aprendidas na América Latina, como a criação de pequenas e médias empresas de pequeno porte produtores que promovam o emprego, especialmente nas zonas rurais, ou sistemas de proteção social, como o pequeno-almoço escolar.
O relatório destaca alguns dos progressos alcançados, como na alimentação infantil entre crianças com menos de cinco anos de idade e na amamentação exclusiva entre crianças com menos de seis meses de idade, embora “a prevalência global de crianças com baixo peso à nascença e com excesso de peso tenha estagnado, enquanto a anemia em mulheres entre 15 e 49 anos aumentou. As taxas globais de atraso no crescimento infantil caíram um terço, ou 55 milhões, ao longo das últimas duas décadas, demonstrando que os investimentos na nutrição materno-infantil valem a pena”, disse Catherine Russell, diretora executiva da Unicef. No entanto, lembre-se que ainda “uma em cada quatro crianças com menos de cinco anos sofre de desnutrição, o que pode causar danos a longo prazo”.
Outro dos dados “positivos” que o SOFI mostra, destaca Lario, é que em 2023 foi reduzida a disparidade de género na insegurança alimentar, que depois da pandemia era 3,6% superior nas mulheres e agora diminuiu para 1,2%.
Também em números globais, o número de pessoas com capacidade de acesso a alimentos saudáveis melhorou. Se em 2022 42% da população mundial (cerca de 3,1 mil milhões de pessoas) não o conseguiu, em 2023 esta percentagem caiu para 33% (2,8 mil milhões). Mas, mais uma vez, as desigualdades no acesso a alimentos suficientemente nutritivos são evidentes: “Os países de baixo rendimento concentram a maior percentagem da população que não pode pagar uma dieta saudável, com 71,5%, em comparação com os países de rendimento médio-baixo (52,6%). países de rendimento médio-alto (21,5%) e países de rendimento elevado (6,3%)”, destaca o SOFI 2024.
No entanto, apesar das melhorias no acesso a alimentos saudáveis, “novas estimativas da obesidade adulta mostram um aumento constante na última década, de 12,1% em 2012 para 15,8% em 2022”, lembra a Unicef, que alerta que as projeções apontam para isso em 2030 haverá mais de 1,2 bilhão de adultos obesos no mundo.
Uma das maiores utilizações do relatório SOFI de 2024 é que ele “define” o conceito de “financiamento da segurança alimentar” para entender melhor “quais são as lacunas de financiamento, quanto gastamos, quanto precisamos e onde devemos investir para acabar com a fome”, detalha Amador Gómez, diretor de pesquisa e inovação da Action Against Hunger.
Máximo Torero compartilha deste argumento. “Dependendo do que inclui a definição de financiamento da segurança alimentar” o valor das necessidades pode ser calculado em 6,9 mil milhões de dólares (6,354 milhões de euros) ou 62 mil milhões, cita como exemplo o economista-chefe da FAO, para sublinhar a importância de universalizar a definição .
Além de estabelecer quanto, onde e como utilizar os recursos, Gómez lembra a importância da Inteligência Artificial no combate à fome com sistemas de alerta para prever tanto fenômenos climáticos extremos como a evolução dos preços da cesta básica. Como explica o especialista, “estes dados permitir-nos-ão criar mapas quentes para identificar onde estão os focos de fome e as áreas mais vulneráveis e implementar medidas antecipadas”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Um mundo em conflito e com emergência climática ainda excede os números da fome anteriores à pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU