12 Julho 2024
E se a misericórdia fosse a tradução teológica da categoria científica e filosófica da complexidade?
O artigo é de Sergio Ventura, jurista italiano, publicado em Vino Nuovo, 05-07-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em uma reflexão sobre a relação entre o barco de Pedro (cada vez mais poliédrico) e o atual mar da complexidade que pesa sobre as sociedades e as Igrejas (ameaçador para alguns, sinal dos tempos para outros), eu desejava que, pelo menos nas grandes cidades, pudéssemos reconhecer a “ambivalência” dos “desafios” emergentes das “culturas urbanas” (EG 71-75), especialmente neste tempo de meditação sobre o ano (pastoral) passado e o que está por vir. E solicitava, em forma de interrogações, cinco “mudanças de rota” na nossa navegação juntos [disponível em italiano aqui].
Nesse sentido, revelaram-se muito significativas as recentes linhas de programação pastoral da Diocese de Roma [disponíveis em italiano aqui], à qual pertenço e na qual trabalho e presto serviço como professor de religião e membro da equipe sinodal diocesana.
É claro que elas ainda não estão formalmente inseridas naquele marco da “complexidade” que o Papa Francisco sugeriu à sua diocese no discurso de 18 de setembro de 2021. Mas, como em uma tapeçaria, pode-se perceber a tessitura de tal complexidade por trás da trama das próprias linhas.
Também aqui, eu seguiria, resumindo, o esquema dos macrotemas propostos pela fase sapiencial do caminho sinodal italiano, como, aliás, fez o vicerregente da Diocese de Roma, Dom Baldo Reina, no ato de sua apresentação na Basílica de São João.
1 – Missão e proximidade: a Igreja de Roma recorda a importância da escuta profunda realizada nos últimos anos (e recolhida em uma preciosa síntese que não deve ser deixada de lado [disponível em italiano aqui]), junto com a imprescindibilidade dessa escuta em relação a toda forma de missão e evangelização. Não há missão evangelizadora se não houver a escuta das pessoas evangelizadas antes, durante e depois. De todos: próximos e distantes, velhos e jovens, simpatizantes e críticos. Nos lugares onde vivem cotidianamente.
Acima de tudo, na convicção de que é possível “procurar, captar e receber de qualquer pessoa mesmo que apenas um fragmento da Verdade”, e que “os ‘germes’ do Reino são descobertos e anunciados pela Igreja dentro e fora de si mesma”. Como disse o bispo Reina: “Uma Igreja que abraça o mundo e que se deixa contagiar pelo mundo”.
Por outro lado, ainda no Estatuto dos Conselhos Pastorais Paroquiais, pulsava o espírito de abertura radical da constituição apostólica In Ecclesiarum Communionem (IEC): tanto quando se recorda que “a voz do Espírito Santo se manifesta até mesmo além das fronteiras da pertença eclesial e religiosa” e “abre novas compreensões do conteúdo da Revelação” (IEC, Proêmio, §5); quanto quando se exige “atenção ao acompanhamento, ao discernimento e à integração (Amoris laetitia, §241-246; 291-312) das ‘situações imperfeitas’, ‘complexas’ ou ‘chamadas irregulares’ (Amoris laetitia, §§ 78-79; 247ss.; 301)”, relativas às famílias atuais.
2 – Corresponsabilidade e estruturas: certamente instigada pelo que foi pedido pelo Papa Francisco (IEC, 24), assim como pelo que surgiu durante o caminho sinodal diocesano, italiano e universal, a Igreja de Roma quer testemunhar que é possível – belo e fecundo – fazer surgir de baixo (e não fazer descer de cima) essas linhas de planejamento pastoral. Conselhos pastorais paroquiais (CPP), assembleias setoriais com os dirigentes dos mesmos conselhos, encontros entre diretores dos escritórios, prefeitos e a equipe sinodal diocesana, reuniões do conselho episcopal: todos participaram, apreciando o já consolidado método da conversação no Espírito e do discernimento comunitário.
É claro, devido à referida complexidade, reconhecem-se dificuldades, resistências e esforços, para além dos âmbitos em que ainda há trabalho a fazer: os outros níveis dos organismos de participação e o envolvimento neles dos jovens e dos batizados que já são Igreja-em-saída-no-limiar-ou-na-fronteira (cf. art. 10, Estatuto do CPP). Mas o caminho parece bem traçado e em curso.
3 – Formação e comunicação: pode parecer estranho em um país que (pelo menos na metade dele) não lê e que está desinvestindo cada vez mais em cultura, mas um dos pedidos “gritados” com mais força pelo povo de Deus em Roma é a urgência de uma formação renovada: espiritual e cultural.
Por um lado, emerge a necessidade de beber e de se alimentar cada vez mais da fonte e da mesa da palavra de Deus presente em ambos os Testamentos: um caminho espiritual para se descentralizar do Eu e para se abrir ao Outro e aos outros, para ser lido, provocado e (per)formado por cada experiência de a/Alteridade. Só assim se poderá, então, fazer amadurecer a própria fé com os mais variados caminhos de catequese, de redescoberta da fé, de teologia do povo etc.
Por outro lado, reconhece-se a necessidade de “elaborar uma linguagem mais adequada aos desafios complexos do nosso tempo”, a partir do desafio levantado pelos jovens: nesse sentido, convidam-se os “sacerdotes e as sacerdotisas comuns” que já são Igreja in loco a serem “antenas e ecos das suas necessidades e dos seus sonhos, ajudando-nos a compreender cada vez melhor seus interesses e suas linguagens", para assim podermos nos comunicar adequadamente com quem é posto – usando a conhecida imagem de Alessandro Castegnaro – “fora do recinto” (ou ad extra).
Toda essa evidente tensão eclesial, porém, não leva a nenhum impasse ou imobilismo, mas desagua na bela proposta jubilar de sermos sinais de esperança, de comunicarmos esperança com palavras e ações: “para os detentos, para os doentes, para as pessoas com deficiência, para os idosos, para os migrantes, para os pobres” e para quem é vítima da “pobreza educacional, habitacional, alimentar, laboral” (por meio do contraturno extraescolar paroquial, do housing social, dos refeitórios e empórios, das oficinas de oportunidades etc.).
Por outro lado, para sermos sinais de esperança, é preciso ter vivido, na própria pele, a passagem, a páscoa de conversão da tristeza e do desespero para a alegria e a esperança que, em seguida, gostaríamos de testemunhar.
A proposta que pode ser lida ao término dessas linhas é, portanto, um sinal corajoso: viver, no rastro do que ocorreu durante o Jubileu do ano 2000, “momentos de conversão eclesial (…) em relação às feridas provocadas por membros da Igreja". Corajoso, mas não surpreendente, porque, de fato, é precisamente onde reina a complexidade que não podemos entrar senão equipados de misericórdia, aprendendo “a tirar sempre as sandálias diante da terra sagrada do outro” (EG 169).
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Misericórdia e complexidade. Artigo de Sergio Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU