02 Julho 2024
Depois que um arcebispo brasileiro criticou um argumento legal que visava limitar as reivindicações de terras por grupos indígenas, um congressista brasileiro apresentou uma moção para censurar o prelado por supostamente promover uma agenda política de esquerda durante uma celebração da fé.
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux, 01-07-2024.
O deputado Evair Vieira de Melo, um dos líderes da oposição ao governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e chefe da comissão de agricultura da Câmara dos Deputados, apresentou sua petição no dia 10 de junho, um dia após a missa que marcou o 10º aniversário da a canonização de São José de Anchieta.
Dom João Justino de Medeiros Silva, Arcebispo de Goiânia, um dos vice-presidentes da Conferência Episcopal Brasileira, cocelebrou a missa, que foi um grande evento no Santuário de São José de Anchieta, localizado no Espírito Santo.
A cerimônia, que foi transmitida pela emissora de TV do santuário, começou com uma apresentação de dança e música tradicional por membros do povo indígena Guarani, que vieram da aldeia Nova Esperança para o evento.
Anchieta, um padre jesuíta que veio de Tenerife em 1553, é lembrado por seu trabalho incansável entre os povos indígenas no Brasil. Um dos santos padroeiros do país sul-americano, ele dedicou quase cinco décadas de sua vida a espalhar o Evangelho entre os habitantes indígenas do território que havia sido colonizado pelos portugueses.
Anchieta dominou o tupi, então a língua indígena mais falada no litoral brasileiro, e publicou a primeira gramática tupi da história. Ele também escreveu e encenou peças de caráter religioso em tupi para estabelecer um diálogo direto com o povo. Ele é conhecido por sua feroz defesa da dignidade dos grupos indígenas, opondo-se às tentativas dos colonizadores de escravizá-los.
O legado de Anchieta foi parte da inspiração para o filme “A Missão”, de 1986, baseado no serviço dos jesuítas entre os Guarani.
Poucos minutos após a apresentação dos artistas Guarani, Silva foi chamado pelo mestre de cerimônias para falar brevemente sobre o evento antes do início da missa. Ele disse que a dança Guarani foi um “momento muito especial da comemoração dos 10 anos da canonização de São José de Anchieta” e que os povos indígenas no Brasil têm enfrentado o grande desafio de “garantir a outorga oficial de suas terras”.
“Como bispo desta Igreja e em nome da Conferência Episcopal, mais uma vez gostaria de pedir àqueles que têm o poder que decidam não retirar o direito dos indígenas de viver em suas terras. São os primeiros habitantes desta terra do Brasil, que certamente tem espaço para todos”, afirmou.
Entre outras coisas, Silva mencionou diretamente a chamada “tese jurídica do marco”, segundo a qual apenas grupos indígenas que ocupavam seus territórios tradicionais em 1988, quando a atual constituição brasileira foi promulgada, podem agora reivindicar tais terras do governo.
Recentemente, segmentos do setor do agronegócio e seus aliados no Congresso vêm avançando na tese marcante de restringir a concessão de terras. A tese foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no ano passado, mas pouco depois o Congresso aprovou uma lei contendo-a.
Agora, a Suprema Corte tem que analisar a nova lei. Até que o tribunal decida, a tese do marco está em vigor.
Embora o episcopado brasileiro tenha manifestado em diversas ocasiões sua oposição à tese do marco, o Deputado Vieira de Melo viu nas breves observações de Silva – ele esteve presente na cerimônia – uma expressão inadequada de “visões políticas” sobre o assunto.
No seu pedido de censura, disse que os comentários de Silva não só foram “inadequados, mas também transgrediram a sacralidade do evento e desrespeitaram a expectativa de devoção dos participantes”.
“O aparente tom ideológico de esquerda na declaração do vice-presidente da conferência episcopal aponta para uma preocupante manipulação da fé com objetivos políticos, contrariando a esperada missão da Igreja de promover valores espirituais e morais universais sem se envolver em agendas políticas e partidárias”, diz o pedido de Vieira de Melo.
A petição foi aprovada em 12 de junho pela comissão de agricultura, e uma nota de censura foi emitida contra o Arcebispo Silva.
Em seu site, Vieira de Melo se descreve como um católico observante. Ele diz que foi seminarista na juventude e atuou como coordenador diocesano da Pastoral Juvenil.
“Minha família é uma participante efetiva da comunidade onde trabalho. Minha esposa é ministra da palavra e ministra eucarística. Portanto, estou falando de algo que conheço e que vivencio”, disse ele. A conferência episcopal deve “entender que deve funcionar como uma instituição e, se se refere a temas políticos, tem que fazê-lo na esfera acadêmica, não nos altares das igrejas, onde a contradição não é permitida”, disse Vieira de Melo.
O confronto com Silva ecoa desentendimentos que o ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem Vieira de Melo é um aliado próximo, teve com o episcopado brasileiro em diversas ocasiões.
Durante sua primeira campanha presidencial em 2018, Bolsonaro chamou a Conferência dos Bispos de “parte podre” da Igreja brasileira. Em 2019, durante os trabalhos preparatórios do Sínodo para a região Pan-Amazônica, sua administração supostamente monitorou os encontros eclesiais.
Desde então, a conferência se tornou alvo regular dos apoiadores de Bolsonaro no Brasil, que acusam o episcopado de ser esquerdista e pró-Lula.
Na semana passada, a Comissão Pastoral da Terra da conferência (conhecida como CPT) divulgou uma carta de apoio a Silva. O documento enfatiza que suas palavras estavam de acordo com uma tradição de décadas da Igreja brasileira de defesa dos direitos dos povos indígenas e dos camponeses sem terra.
“Perguntamos ao deputado Evair Vieira de Melo sobre o que ele buscava naquela festividade religiosa: ele esperava ouvir superficialmente os feitos de São José de Anchieta no passado, ignorando sofrimentos e lutas contemporâneos? Não é assim que ministros de igreja dialogam com comunidades – desconectados do contexto em que vivem”, dizia a carta.
Carlos Lima, um dos coordenadores nacionais da CPT, ecoou o ponto. “O Evangelho não é estático. Ele não parou nos anos de Jesus. A Palavra se mantém viva. Quando o Arcebispo Silva falou sobre a tese do marco, ele não estava politizando a Palavra. Ele estava contextualizando-a”, Lima disse ao Crux .
Ele acrescentou que desde a década de 1970 a Igreja brasileira defende os povos sem terra e luta pela reforma agrária. “As terras indígenas são os territórios mais preservados do Brasil. Enquanto outras partes do país sofrem com o rápido desmatamento, os grupos indígenas cuidam da casa comum”, disse Lima.
O padre jesuíta Bruno Franguelli, que foi vice-reitor do Santuário de São José de Anchieta, afirmou que a Igreja sempre esteve ao lado dos povos indígenas no Brasil, desde os tempos de Anchieta. “Ele se opôs à escravidão e sempre trabalhou em seu benefício. Obviamente, Anchieta jamais deixaria de se opor a um projeto de lei que visa restringir o direito dos indígenas às suas terras”, disse Franguelli ao Crux .
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Deputado brasileiro censura arcebispo por defender reivindicações de terras indígenas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU