20 Junho 2024
"Da Teologia da Esperança, na qual Moltmann parte da promessa pascoal, o seu pensamento se dirige depois para a cruz (O Deus Crucificado, 1973). Para Moltmann ela constitui a chave hermenêutica da teologia cristã e define, assim, a dor e o sofrimento 'concretos' como lugar central do pensamento teológico. 'Só o Deus sofredor pode ajudar': essa afirmação de Dietrich Bonhoeffer na prisão (1944), torna-se o ponto focal de Moltmann", o artigo é de Elisabeth Sara Einrich, publicada por Riforma, 19-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Com Jürgen Moltmann morreu um dos teólogos protestantes mais influentes da segunda metade do século XX. Embora grande parte do pensamento teológico sistemático ainda girasse em torno das questões abertas do século XIX, a sua Teologia da Esperança (1964) entrava nos horizontes do século XXI inspirando numerosas teologias libertacionistas e pós-coloniais, especialmente as teologias da libertação da América do Sul e a Black Theology dos anos 1960 e 70. Moltmann, tentando reinterpretar a teologia evangélica no contexto da segunda metade do século XX, abriu caminho para uma teologia e uma fé que olham criticamente para a igreja e para a sociedade. Esse foi também o resultado do diálogo com a esposa, a teóloga Elisabeth Moltmann-Wendel e com o feminismo, que o levaram a reconhecer que a antropologia cristã não pode se esgotar na andrologia.
Deixando-se inspirar pelo Princípio Esperança (Ernst Bloch), a Teologia da Esperança de Moltmann sem dúvida interceptou o espírito do seu tempo (Zeitgeist). Mas o grande reconhecimento e a recepção internacional da obra são consequência de uma escatologia capaz de pôr em contato céu e terra e ler a sua relação em termos novos.
Na Teologia da Esperança, Moltmann critica a doutrina convencional das coisas últimas, que irrompem na história desta terra vindas do além e aqui colocam fim. O fulcro da escatologia teológica, ao contrário, reside na esperança dinâmica: “O cristianismo é escatologia do princípio ao fim, e não apenas no apêndice: é esperança, é orientação e movimento para frente e, portanto, é também revolução e transformação do presente”.
Dessa forma, a esperança torna-se o motor e o veículo do pensamento teológico e da praxe ética. Talvez mais do que qualquer outro na teologia, Moltmann levou a sério o que Karl Barth havia escrito em 1921: “Um cristianismo que não é completa e totalmente escatologia não tem absolutamente nada a ver com Cristo."
Da Teologia da Esperança, na qual Moltmann parte da promessa pascoal, o seu pensamento se dirige depois para a cruz (O Deus Crucificado, 1973). Para Moltmann ela constitui a chave hermenêutica da teologia cristã e define, assim, a dor e o sofrimento “concretos” como lugar central do pensamento teológico. “Só o Deus sofredor pode ajudar”: essa afirmação de Dietrich Bonhoeffer na prisão (1944), torna-se o ponto focal de Moltmann. Como lugar onde Deus se identifica com os perdidos e abandonados, a cruz se torna também crítica de cada tradição que desloca Deus para um espaço de eternidade apática e ao mesmo tempo atua como uma lupa para as estruturas políticas e sociais que subjugam as pessoas e as tornam vítimas. A teologia da cruz de Moltmann tem como ponto de partida não um conceito abstrato, mas uma crise.
Em seu livro Trindade e Reino de Deus (1980), Moltmann coloca no centro do discurso o pensamento trinitário tentando elaborá-lo fora dos esquemas hierárquico-patriarcais: “Só se o a doutrina da Trindade vencer a ideia monoteísta do grande monarca do mundo no céu e do divino patriarca no mundo, os poderosos, os ditadores e os tiranos na terra não encontrarão mais justificativa nos arquétipos religiosos".
Quando se reconstrói as linhas das suas grandes obras nota-se um movimento oscilatório no pensamento que leva o olhar do centro para a periferia, de cima para baixo, conectando a mensagem bíblica com o mundo existente. Por isso, a dimensão teológica e política, para Moltmann, andam de mãos dadas não no sentido de uma politização da teologia, mas de uma análise crítica e autocrítica da mensagem bíblica e das suas implicações políticas. Enquanto a contextualidade do que acontece na igreja, por influenciar o pensamento teológico, geralmente é reconhecido apenas indiretamente ou a posteriori, a teologia de Moltmann a aborda de uma forma consciente, reconhecendo justamente nela o objeto de reflexão (auto)crítica.
Uma teologia que vem da vida
A sensibilidade particular pelo contexto está ligada à fé pessoal de Moltmann, que nasce em um momento de crise. Criado em uma família abastada, mas sem nenhuma ligação particular com a igreja, Moltmann foi convocado aos 17 anos (!) para o exército alemão.
Como ajudante de aeronáutica, ele sobrevive por pouco à "Operação Gomorra" da Royal Airforce em 1943. O amigo que estava ao seu lado foi despedaçado por uma bomba. Em uma entrevista, Moltmann conta: “Naquela noite gritei pela primeira vez: ‘Meu Deus, onde estás?’”. O grito como forma existencial de oração, abre o diálogo com Deus para Moltmann.
Como prisioneiro e sobrevivente dos horrores da guerra, reconhece depois os crimes alemães contra a humanidade, que o levam à pergunta: “Deus, onde estavas?”. A partir da década de 1970, em Teologia depois de Auschwitz, Johann Baptist Metz, Dorothee Sölle e Jürgen Moltmann opõem-se à cultura do esquecimento e da repressão e procuram renovar o diálogo judaico-cristão.
Como prisioneiro de guerra dos ingleses, Moltmann, de dezenove anos, busca "conforto na vida e na morte [...] e encontra-o na leitura da Bíblia e na imerecida gentileza dos cristãos escoceses e ingleses."
Começa em seguida os estudos de teologia e filosofia em Göttingen “para descobrir se e, em caso afirmativo, qual verdade se encontra em Cristo”.
A teologia de Moltmann nasce como uma teologia contextual e dialógica e como tal está aberta a sugestões e impulsos de outras igrejas e religiões, o que permitiu a Moltmann tornar-se um interlocutor de destaque também no diálogo entre os movimentos carismáticos e a teologia acadêmica, estando entre os primeiros a lidar com as igrejas pentecostais que havia conhecido na América do Sul e na Coreia do Sul e também busca o diálogo com a ortodoxia oriental.
Por ocasião da sua morte, levantou-se novamente o lamento de que os grandes teólogos e as grandes teologias não existem mais. E é verdade que a teologia de hoje é muito mais fragmentária, menos “sistema” e mais pesquisa. Talvez possamos ler essa mudança de forma positiva, como prova da eficaz herança de uma teologia que não procura estabelecer escolas ou professores, mas se baseia na busca da verdade de Cristo no diálogo. Nesta perspectiva, a gratidão pela vida de Jürgen Moltmann supera também a dor do seu desaparecimento. (e.s.h.)
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Moltmann. No Deus sofredor uma nova escatologia. Artigo de Elisabeth Sara Einrich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU