13 Junho 2024
A divisão israelense entre aqueles que querem um cessar-fogo e os que optam pela continuação da guerra "até a vitória final" está também presente entre as mães dos soldados israelenses; enquanto algumas sofrem pelo que pode acontecer com seus filhos em Gaza e desconfiam do que o governo de Netanyahu possa ordenar, outras não querem nem ouvir falar de uma trégua e priorizam o "estrangulamento absoluto" do inimigo, mesmo que isso mantenha seus filhos em combate.
A reportagem é de Joan Cabasés Vega, publicada por El Salto, 12-06-2024.
As tropas israelenses têm tão poucas baixas na frente de Gaza que os meios de comunicação de seu país podem nomeá-las. Eles até colocam rostos em fotografias e adicionam alguns detalhes de suas histórias pessoais, como sua cidade de origem ou o percurso que tiveram dentro do exército israelense. No último dia 29 de maio, foi o caso de Uri, Ido e Amir, três jovens soldados de 20 a 21 anos que morreram em Rafah. Eles entraram em um edifício onde havia explosivos a serem detonados e, quando o dispositivo explodiu, o prédio desabou sobre eles. Algumas fontes israelenses apontam que o explosivo poderia ter sido uma armadilha intencional.
Há outras mortes entre as fileiras sionistas que os meios de comunicação israelenses não estão contando nem com nomes, nem com fotografias, nem com histórias pessoais. Desde 7 de outubro, dia do ataque do Hamas contra o sul de Israel, pelo menos 10 soldados judeus teriam se suicidado após não conseguirem superar o que fizeram e viram na frente de guerra. Esse dado inclui a faixa de Gaza, mas também os arredores, já que alguns dos suicídios ocorreram enquanto a batalha ainda rugia nos kibutzim próximos ao enclave.
Uma investigação do jornal israelense Haaretz publicada em 11 de maio trouxe o tema à tona depois que as graves consequências psicológicas entre os soldados israelenses passaram a ser um tabu na imprensa do país. Semanas atrás, no El Salto Diario, relatamos alguns casos que sugeriam uma ruptura moral entre combatentes recentemente enviados à faixa de Gaza. Como o caso de um soldado israelense de 25 anos, diagnosticado com Transtorno de Estresse Pós-Traumático após retornar do enclave, que abriu fogo contra seu amigo em um apartamento em Tel Aviv. Antes, outro soldado retornado de Gaza abriu fogo contra seus companheiros de unidade ao acordar no meio de um pesadelo.
Alguns dos suicídios que ocorreram desde outubro surpreendem os especialistas consultados pelo Haaretz, pois ocorreram enquanto os combates ainda estavam ativos no sul de Israel. O padrão mais comum, indicam, é que o trauma apareça uma vez que a guerra tenha terminado, provocando despertares bruscos entre imagens, luzes e sons.
Embora vá protegido com o melhor equipamento de guerra, um filho é sempre um filho. Os milhares de soldados israelenses enviados a Gaza desde outubro deixam para trás famílias que sofrem por sua segurança e mães que prefeririam que seus filhos não tivessem que partir.
“Estou confusa e assustada”, explica Tally, israelense de cerca de 50 anos. Ela está concentrada em frente ao Knesset, o parlamento israelense em Jerusalém, em um acampamento que demanda um cessar-fogo que liberte os reféns. A concentração também pede a demissão do executivo e está repleta de cartazes com o rosto de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, riscado por uma cruz vermelha. Tally denuncia que os líderes israelenses não têm os cativos e os soldados no centro de suas prioridades. “Não consigo levar minha vida com normalidade enquanto os reféns estão em Gaza e enquanto me levanto todos os dias com notícias de outro soldado morto na faixa”, declara ao El Salto Diario.
A preocupação pelos soldados é algo que ela sofre na própria pele. Seu filho acaba de retornar para casa depois de passar três meses e meio em Gaza como reservista. Logo ele será chamado de volta às fileiras. “Não tenho palavras para descrever”, diz desviando o olhar com lágrimas quando é perguntada como é ter um filho na linha de frente: “estou assustada pela vida dele. E tenho medo do que possam mandar ele fazer. Do que ele possa ver. E de como tudo isso o afetará”.
Tally desconfia do governo de Netanyahu, que gostaria de ver fora do poder, e assegura que sua missão é fazer pressão para que, quando seu filho voltar a entrar em Gaza como soldado, o executivo que governe Israel seja um no qual ela possa se ver mais refletida: “quero que o governo que lhe dê ordens e diga o que fazer seja um governo que tome as decisões corretas”. Segundo essa mãe, seu filho retornou da faixa sem falar muito. “O que acontece lá é realmente horrível. Ele agora está em Israel tentando viver sua vida novamente. Minha responsabilidade é cuidar dele”.
Segundo o exército israelense, 291 soldados israelenses perderam a vida em Gaza desde o início da ofensiva terrestre no enclave. As forças armadas afirmam que mais de 40 dessas mortes são causadas por fogo amigo ou acidentes com seus próprios explosivos. O número de baixas supera 638 uniformizados se forem incluídos os que morreram durante a ofensiva do Hamas de 7 de outubro. Os relatórios de guerra israelenses incluem mais de 500 feridos graves. Embora as baixas sejam menores em comparação com os mais de 45.000 mortos que as tropas israelenses causaram em Gaza — se somados os 10.000 desaparecidos sob os escombros —, trata-se de números elevados se comparados com os padrões israelenses.
“É muito difícil entender o que estamos vivendo se você não mora aqui”, assegura esta mulher israelense em uma entrevista realizada antes da ofensiva terrestre contra Rafah: “somos um país muito diverso e todos vamos ficar neste território, então, pelo bem de todos, temos que encontrar uma maneira de fazer isso, porque acho que até agora não conseguimos”. Há meses, acrescenta, “todo mundo está muito sensível”, mas espera que com o passar do tempo “algo novo possa surgir”.
Quando a entrevista já havia terminado, Tally pede para adicionar mais algumas declarações. “Quero falar sobre as pessoas de Gaza”, diz esta mãe de um soldado israelense: “acho que fora de Israel pensam que não nos importamos com elas. Nos importamos, e muito. Mas estamos tão traumatizados e assustados que parece que não”. A israelense lamenta o sofrimento de crianças, mulheres e idosos na faixa. No entanto, manifesta que “muita gente do enclave se juntou ao Hamas” — uma ideia questionável, mas comum em Israel —, e reconhece que não sabe o que fazer com essa informação. “Ainda estamos tentando reconstruir nossa confiança”, lamenta Tally: “agora estamos tentando salvar nossa vida e a de nosso país”, proclama: “e acho que é compreensível que essa seja nossa prioridade”.
A poucos metros do acampamento contrário ao governo onde Tally protesta, há uma concentração de sinal oposto. As Mães dos Soldados, o grupo que a convoca, exigem que o executivo israelense abandone a ideia de um cessar-fogo e exerça máxima pressão sobre Gaza. São mães religiosas que, embora manifestem preocupação pelos seus filhos destacados na faixa, não querem que a guerra pare até a vitória “absoluta”. Uma de suas líderes, Hanna Katan, atende ao El Salto Diario. Ela é mãe de sete soldados. “Nossos filhos estão lutando em uma guerra que não escolhemos nem começamos”, justifica Katan, médica de profissão. “É uma guerra em que se vê a diferença entre o dia e a noite, entre a justiça e a crueldade, entre ser um ser humano e ser outra coisa”.
As Mães dos Soldados, que se reúnem frequentemente com ministros do governo para mostrar seu apoio, rejeitam um cessar-fogo temporário como medida para resgatar os prisioneiros israelenses. Alegam que isso daria tempo ao Hamas para se reorganizar e querem que Israel estrangule o inimigo para que sejam os líderes israelenses que estabeleçam o preço pelo resgate dos cativos. “É preciso forçá-los à rendição através do estrangulamento absoluto. Nem comida, nem água, nem remédios, nem combustível. É o mais humano que podemos fazer”.
Como todo Israel, Katan lembra que Yehya Sinwar, líder do Hamas em Gaza e um dos autores intelectuais do ataque de 7 de outubro, foi um dos presos palestinos liberados durante uma troca com cativos israelenses em 2011. Um novo pacto como esse, ela adianta, liberaria muitos “terroristas”. “Todos nós queremos que os cativos voltem agora mesmo. É preciso trabalhar com o coração, mas também com a lógica. Esses cruéis terroristas não sabem o que significa compaixão. Temos que usar nossas ferramentas para garantir que o preço desses cativos seja extremamente baixo porque o Hamas está se rendendo. Se fizermos um cessar-fogo, colocaremos mais pessoas em perigo”.
Embora os Estados Unidos patrocinem a ofensiva israelense em Gaza e façam pouco mais que propaganda política para se distanciar da barbárie que financiam, em Israel há quem veja a potência estadunidense como um fator limitante. “Se seus filhos estivessem em Gaza, vocês não ajudariam o inimigo com combustível e suprimentos”, argumentam as Mães dos Soldados. Elas remam em outra direção e “suplicam” ao governo israelense que aja com firmeza em Rafah.
Katan e suas companheiras asseguram que vão em nome da paz. “Queremos que o mundo saiba que, como nação judaica, queremos a paz. Rezamos três vezes ao dia pela paz. Shalom, que significa paz, é a palavra mais importante que temos em hebraico. Esta guerra não foi procurada por nós, mas não temos outra escolha senão garantir que isso nunca mais ocorra”, diz em referência aos ataques do Hamas de 7 de outubro. Se Israel não eliminar a milícia palestina, Katan prevê que ataques semelhantes poderiam se espalhar “pelo resto do mundo”.
Ambicionar a paz não significa que imaginem um futuro ao lado ou junto com os palestinos. “Não sei”, responde Katan quando perguntada se algum dia verá uma coexistência real entre israelenses e palestinos: “poderíamos falar da outra parte do mundo, mas o que quero antes disso é a coexistência entre judeus”. Nesse sentido, esta orgulhosa mãe de sete soldados israelenses celebra “as coisas boas que a guerra trouxe”: “sabemos o que ocorreu meses antes da guerra, quando havia questões políticas que dividiam nossa população”, diz em referência aos protestos contra o conhecido como golpe judicial do governo de Netanyahu: “mas esta guerra está nos fazendo mais fortes, mais unidos e mais judeus”.
Ela o relaciona com o que ocorre dentro da faixa de Gaza. Ao contrário do filho de Tally, que quando retorna para casa mal menciona uma palavra, Katan assegura que seus filhos soldados destacados no enclave palestino estão “muito contentes”. Ela diz que eles se unem “em um ambiente maravilhoso” e que “discutem seus sonhos entre irmãos” enquanto “sentem que estão fazendo coisas importantes”.
O cerco medieval contra Gaza tem causado dezenas de mortes por fome e inúmeros óbitos devido à falta de medicamentos e suprimentos médicos. Mesmo que sobrevivam, a severa desnutrição desses meses marcará milhares de crianças pelo resto de suas vidas com problemas psicológicos e físicos. Perguntada se, como médica, tem dúvidas sobre as consequências do cerco sobre a população de Gaza, Katan é taxativa: “Não”, diz, rejeitando a pergunta: “nossos cativos não estão recebendo atenção médica. Este é o assunto, e não outro”.
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“Tenho medo do que possam mandar ele fazer em Gaza” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU