12 Junho 2024
Páginas contemporâneas. Muitos autores olham para as Sagradas Escrituras: no “Corporale” de Paolo Volponi, por exemplo, existe, ainda que invertida, a simbologia da arca de Noé; no romance “Ritratto in piedi" de Gianna Manzini há vestígios dos Evangelhos.
O artigo é de Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 09-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A sequência dos aniversários, principalmente se forem centenários, tem pelo menos o mérito de remover o pó das obras de certos autores esquecidos, com raras exceções como, por exemplo, acontece este ano com a presença insone de Kafka, que morreu aos quarenta anos em 3 de junho cem anos atrás. Sobre ele foi escrito e muito se falará nos diversos suplementos ou secções literárias de jornais e revistas e talvez será possível identificar também a sua marca d’água “teológica” original modulada em sua matriz judaica. Nós agora gostaríamos de tentar uma operação semelhante e muito mais modesta com alguns autores italianos, dos quais se celebra um centenário ou aniversário. A colheita será escassa, também porque a Bíblia – que usamos como comparação – não é mais “o grande código” de imagens, símbolos, personagens, temas, narrativas a que se hauria abundantemente no passado.
Vamos começar pelo centenário de um escritor culto da nossa juventude e meia-idade, Paolo Volponi, nascido em 6 de fevereiro de 1924 e falecido em Ancona há trinta anos, em 1994, expressão sugestiva do romance industrial na Itália do boom econômico (no plano literário sobre essas páginas já interveio com eficácia Giuseppe Lupo no último 4 de fevereiro). Selecionamos dois de seus romances, o Caporale (Einaudi 1974) e o Pianeta irritabile (Einaudi 1978), fruto de uma nossa leitura um tanto remota, mas que deixou vestígios. No primeiro caso, na raiz está a simbologia bíblica da arca de Noé (Gênesis 6-9), embora invertida. A inundação é transformada numa temida explosão atômica e o protagonista chamado Girolamo, como o santo tradutor da Bíblia em latim, projeta uma “Arcatana” para salvar apenas a si mesmo e não tanto as outras criaturas viventes, como no caso do patriarca bíblico. Aquela cápsula torna-se uma “toca” de salvação pessoal: curiosa é a hipotética polissemia do título Corporale que também pode referir-se ao mobiliário litúrgico, uma pequena toalha de mesa sobre a qual são colocados o cálice e a hóstia da Eucaristia. O cenário catastrófico também envolve o outro romance, o Pianeta irritabile, uma Terra reduzida a uma região desolada, desprovida da humanidade cujo renascimento é confiado aos protagonistas da obra, três animais – o babuíno Epistola (!), o elefante Roboão (outro nome bíblico), um ganso – e um anão que, no entanto, renegou a sua humanidade.
Numa atmosfera apocalíptica, sob uma chuva oleosa semelhante à que caiu sobre Sodoma e Gomorra (Gênesis 19,24), imersos num dilúvio de água putrefeita, os quatro empreendem uma espécie de êxodo rumo a uma terra prometida, num cruzamento entre as histórias de Noé e Moisés. Nessa peregrinação surge uma figura misteriosa de um imitador do canto de todos os pássaros que se descobre ter sido um operador de um centro eletrônico, “Parnasonic”, precisamente um Parnaso onde eram guardados todos os dados e os feitos culturais da humanidade, reedição da arca de Noé que, ao invés disso, era povoada por todas as espécies viventes.
Eis que, finalmente, aparece diante desses refugiados uma espécie de Jerusalém celestial, cujo projeto é livremente modelado e variado naquele dos cap. 21-22 do Apocalipse, de “forma grande, não circular, nem retangular: entre dois vales, um lago e um rio, florestas dos dois lados." Estamos assim, agora em um Novo Testamento original onde é o macaco Epístola imola-se como Cristo pela salvação dos outros, enquanto cabe ao anão, chamado Mamerte, celebrar uma extravagante Eucaristia.
De fato, ele parte e compartilha com os sobreviventes uma folha de papel de arroz, na qual havia sido escrito por uma freira malaia, um poema de amor. Os três se alimentam daquela página cujo “Evangelho” de amor será a nutrição da futura geração de pessoas justas e pacíficas. Além disso, o símbolo de alimentar-se do livro sagrado da Palavra divina está presente no profeta Ezequiel e no Apocalipse.
Há meio século morria em Roma aos setenta e oito anos uma escritora que à primeira vista parecia distante do horizonte religioso, como ela mesma confessava a um sacerdote extraordinário e homem de cultura, padre Giuseppe De Luca. Era Gianna Manzini, de Pistoia, que lhe escrevia: “Não sou nutrida por sentimentos semelhantes aos seus... Circulo pelo mundo todo e gosto disso." Se é lícita uma aplicação anacrônica, a autora teria sido uma excelente interlocutora "laica" no "Pátio dos Gentios”, a instituição do Vaticano que organiza conversas entre crentes e não crentes. Na verdade, ela mais tarde reconhecerá ter sido impressionada por uma leitura tardia dos Evangelhos. Esse encontro deixará – em nossa opinião – uma marca no seu maior romance, Ritratto in piedi (1971), dedicado a seu pai Giuseppe. Embora ele fosse anarquista e ateu, a sua fisionomia existencial é desenhada pela filha recorrendo implicitamente à figura de Cristo.
De fato, era comum entre os dois a mensagem de amor, igualdade e fraternidade, a hostilidade das instituições oficiais, a fidelidade ao ideal apesar da traição dos amigos e, no final, o martírio num assassinato cruel. Nesta esteira gostaríamos, como fechamento, evocar um conto de Manzini incluído na coletânea Cielo adosso (1963).
No Evangelho de Lucas, Jesus é levado - durante o processo judaico - diante do rei Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que reinava sobre a Galileia, onde fica Nazaré. O evangelista nota que o soberano queria testemunhar algum gesto milagroso. Mas surpreendentemente, apesar de ter sido estimulado de todas as formas, Cristo “nada lhe respondeu” (23,6). Bem, o conto de Manzini é intitulado exatamente assim: E ele não disse uma palavra, uma frase evangélica que abre também uma famosa canção spiritual, He never said a mumblin’ word. No conto o protagonista era uma espécie de Christus patiens, um pianista negro muito habilidoso que, devido à discriminação racial, é rejeitado e humilhado.